LITERATURA E AMBIENTE I. Introdução

Literatura e Ambiente

A Contribuição dos Poetas e Prosadores Portugueses para a Génese da Moderna Consciência Ambientalista

Nota Introdutória


Na altura em que a causa ambiental volta a mobilizar a nova geração de jovens europeus, este livro ganha maior relevância e utilidade, sobretudo para os educadores e os novos líderes ambientalistas, incluindo essa juventude.
Ele procura revelar e demonstrar que as sementes da moderna consciência ambientalista brotaram também nesta finisterra, que é Portugal e, de forma premonitória, ao longo dos últimos três séculos enfrentando ventos políticos adversos, alcançaram a Espanha, a Europa e o Mundo.
Os escritores portugueses integraram nas suas obras os princípios éticos e morais, as bases científicas, onde se fundamentam a filosofia do ambiente e as suas éticas e se apontam os caminhos para enfrentar e superar a crise ambiental.





2001/2017
Autor
© António dos Santos Queirós

ISBN 978-972-8659-41-7


©ANTÓNIO DOS SANTOS QUEIRÓS
Centro de Filosofia. Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
Alameda da Universidade 1600-214, Lisboa  Portugal
adsqueiros@gmail.com
T. 910506370

Professor. Researcher of Environmental Philosophy and Ethics in the Center of Philosophy of U. Lisbon, visiting the U. Salamanca and Sorbonne.
Member of Wah Ching Centre of Research on Education in China the University of Hong Kong.
It is also research of Cultural Tourism, Tourism of Nature and Sustainable Development in the U. of Aveiro.
His research interests include global bioethics, literature, higher education, international heritage and environmental projects.
Doctor of Philosophy (Ph.D.).
Master of Philosophy (Ph.M,. 
Master of Arts. (A.M.).
Post-doctoral Research, Field of Study: Economy and Tourism.  China, philosophy, history, economy and culture.
He published 13 books and directed 11 scientific films, 28 chapters’ books, 62 papers in international peer review journals and papers in conference proceedings and others multimedia products. Two dozen articles in newspapers and magazines.
Like editor he published more than 50 scientific tittles.
Association of Museum and Science Centers of Portugal_ MC2P (ONG) President
Secretary General of CCDPCh_ Chamber of Portugal-China Cooperation and Development 葡萄牙-中国合作发展 协会
Adviser and Researcher  of Fórum dos Serviços para uma Especialização Inteligente da Economia Portuguesa, Confederação do Comércio e Serviços de Portugal (CCP_ National Confederation of Services and Trader),

Professor. Investigador em filosofia ambiental e ética ambiental no Centro de Filosofia da Faculdade de Letras da U. Lisboa, visitando a U. de Salamanca e a U. da Sorbonne. 
Membro do Centro de Investigação em Ciências da Educação Wah Ching Centre of Research on Education in China the University of Hong Kong.
Investigador nas áreas de Turismo Ambiental e desenvolvimento sustentável (U de Aveiro), visitando as Universidades de Salamanca e Bordéus.
Os seus interesses de investigação incluem ainda a bioética global, os estudos literários, o ensino superior, o património, os projetos ambientais.
Doutor em Filosofia das Ciências. Mestre em Filosofia da Natureza e do Ambiente. Mestre em Teoria da Arte. Pós-graduado em Ciências da Educação.
Investigação de pós-doutoramento, Economia e turismo. China, filosofia, história, economia e cultura.
Publicou 13 livros e dirigiu 11 filmes científicos, 28 capítulos de livros, 62 artigos em jornais e revistas científicas. Duas dúzias de artigos em jornais e revistas. Como editor, publicou mais de 50 títulos científicos.
Presidente da Associação de Museus e Centros de Ciência de Portugal. MC2P.
Secretário-geral da Câmara de Cooperação e Desenvolvimento Portugal-China. CCPDCh.

           Consultor do Fórum dos Serviços. Confederação do Comércio e Serviços de Portugal. CCP.



Conteúdo
3. A crise de fim de século e a sua relação com o corpus literário



O ensaio de divulgação que nos propusemos realizar_ A contribuição dos poetas e prosadores portugueses para a moderna consciência ambientalista_ depara-se desde o início com uma inusitada riqueza de contributos, de tal modo que só um trabalho muito para além deste programa poderá avaliar completamente o seu alcance e significado.
A escolha do tema deste trabalho só se justifica, então, como contributo para uma nova frente de investigação, que conserva, ainda assim, um vasto campo de estudo, delimitado pelo conceito temporal da modernidade, no sentido de consciência ambientalista que nos é contemporânea.
Importa assinalar que o conceito de ambiente se constitui e adquire uma conotação “moderna” quando deixa de significar apenas conservação da natureza e oposição da cidade ao mundo rural,  enriquecendo-se com novas significações que comportam os valores denotativos do despertar social perante os perigos da industrialização e a resposta cívica aos problemas da saúde pública e da sobrevivência da humanidade gerados pela poluição generalizada e a destruição dos recursos naturais. Ele incorpora progressivamente uma dimensão científica plural, não só aquela que lhe empresta a Ecologia, enquanto ciência da relação dos seres com o meio, mas também um vasto leque de outros domínios científicos, a Geografia e a História quando estudam a humanização dos grandes quadros naturais, a Biologia que revela a importância da diversidade dos seres vivos, a Geologia que nos conduz ao reconhecimento das condições paleoambientais geradoras dos ciclos de extinção e expansão da biodiversidade... ao mesmo tempo que remete para a necessidade de avaliar o nosso modelo de crescimento nos planos da ética e da moral.
Falta-nos ainda a distância do tempo histórico para avaliar se o pensamento ambientalista é capaz de renovar ou substituir as ideologias e doutrinas da nossa época, constituindo e conservando o seu próprio corpo filosófico, ou, reduzido a algumas descobertas científicas e propostas ético-políticas avulsas, será incorporado e dissolvido por elas. Eis uma questão a que voltaremos mais adiante.
2.
O projeto de estudar os autores portugueses ao longo de sete décadas do século XX impôs-se, nos seus limites temporais, pala circunstância de os primeiros escritos e mesmo programas governamentais de conservação da natureza surgirem já nos finais do século XIX, inicialmente nos países industrializados; e a primeira Conferência das Nações Unidas sobre o Ambiente ter tido lugar no ano de l972 em Estocolmo, conduzindo em Portugal à criação da Comissão Nacional do Ambiente_ C.N.A., um ano antes, em 1971. A questão ambiental oficializou-se então, entrou no discurso político e no quotidiano da comunicação social, as denúncias e a intervenção no domínio do ambiente passaram a ser reconhecidas socialmente, sem que a crise ambiental deixasse de se agravar.
Em Portugal o triunfo da revolução democrática do 25 Abril de 1974 tornou possível que na consciência da nação portuguesa se começasse a ouvir claramente a impercetível fuga do tema ambiental, num crescendo de crise nacional e mundial, mas também de resposta cívica, sobretudo das novas gerações, fazendo intervir outros atores na questão ambiental e alterando profundamente o seu contexto social e político.
3
Cabe aqui uma referência acerca da importância concedida à literatura como recurso e instância de educação ambiental. No nosso país, pese embora a sua utilização no contexto das ações de formação orientadas pelo Dr. João Evangelista no antigo Instituto Nacional do Ambiente, que o Centro de Formação de Professores de Conimbriga retomou no início da década de 90, e de alguns textos que mereceram a curiosidade pontual de geógrafos e biólogos, esta perspectiva tem sido geralmente ignorada pelos especialistas de ambos os lados - o da Literatura e o do Ambiente. Salvo, talvez, algumas coletâneas de textos, entre as quais merece destaque o conjunto de volumes agrupados sob a designação de Portugal, a Terra e o Homem, organizados, primeiro, por Vitorino Nemésio e, depois, por David Mourão Ferreira e Maria Alzira Seixo para a Fundação Gulbenkian e as mais recentes conferências na Casa de Alorna e dos Marqueses de Fronteira, estas na perspectiva de análise das manifestações da natureza em alguns dos autores contemporâneos, sob orientação de  Maria Lúcia Lepecki.

É esse estudo sistemático, da literatura portuguesa como instância e recurso da questão ambiental, que nos propomos realizar a partir deste nosso trabalho de ensaio, mas no contexto de uma mais vasta reflexão filosófica, social e política, enquadrada pela categoria do ambiente.
4.
Por natureza, os escritores e poetas, os artistas em geral, são dotados de um grande apego à liberdade de pensamento e a sua sensibilidade recolhe os mais profundos apelos da terra e do homem. A sua consciência universalista leva-os a valorizar toda a cultura humana, desde as mais belas obras das civilizações clássicas, até aos signos misteriosos dos primeiros pintores, das catedrais góticas à revelação do planeta azul.
Por estas razões, intuem, pressagiam e dão testemunho antecipado dos problemas e perspetivas que a consciência coletiva de uma época ignora ou marginaliza como incómodas utopias ou inquietantes denúncias. Leonardo da Vinci teria deixado nas notas de rodapé do seu plano para o visionário submarino, como maior das preocupações, a interrogação sobre as consequências que a intrusão do homem no fundo dos mares poderia trazer para o equilíbrio da vida oceânica.[1] E António Machado, na Espanha contemporânea, escreveu as palavras-chave da crise geral que emerge neste fim de século:
“... caminante, no hay camino,
se hace camino al andar...”[2]
Aqui e agora, porque esse trabalho heurístico é globalmente pioneiro, optámos por anotar e citar os testemunhos menos conhecidos (ou mesmo ignorados) da obra literária dos nossos criadores contemporâneos, em relação com a moderna questão ambiental e partilhar a sua experiência estética da natureza, guardando para um trabalho de maior dimensão a sua inserção intertextual. Como afirma o coordenador do Guia de Portugal, obra premonitória, à escala universal, de defesa do Património Cultural e Natural:
“A literatura apresenta aqui a disciplina, a convergência de esforços e a harmonia das grandes massas   corais. É um uníssono coro que se ergue ao esplendor e à beleza da velha terra de Portugal”.[3]
A crítica e a análise literária tornaram-se instrumentos indispensáveis deste trabalho, mas não o seu objeto, assim como a evolução da cultura portuguesa que lhe subjaz. Dois referenciais se destacam neste processo: as obras de Óscar Lopes e Eduardo Lourenço, em paralelo com outros especialistas citados. Sempre que as opiniões expressas pelo autor desta dissertação surgiram anteriormente publicadas em trabalhos de análise ou crítica literárias, mesmo quando a elas chegou de forma autónoma, optámos pela citação direta das passagens em causa, não com o propósito de exibir erudição ou mascarar a falta de um pensamento ou modo de expressão próprios, mas escrupulosamente por obediência aos princípios da honestidade intelectual.
Para estes textos compactos solicitamos a atenção e a paciência benévola dos leitores críticos do nosso trabalho.
Fica então traçado o limite objetivo deste ensaio: Tornar visíveis as pistas que possam conduzir à revelação dos contributos dos escritores portugueses para a génese da moderna consciência ambientalista e à redescoberta das suas obras nesta perspectiva, os quais, celebrados embora na sua dimensão artística, permanecem na sombra enquanto mentores dessa outra consciência ambiental.
Como parâmetros, de onde emerge universalmente esta consciência, tomaremos a Proclamação e os Princípios da Declaração de Estocolmo, em 1972, nomeadamente, na sua perspectiva ecológica, que postula:
 “O homem é simultaneamente obra e artífice do meio que o rodeia… chegou-se a uma etapa em que, graças à rápida aceleração da ciência e da tecnologia, o homem adquiriu o poder de transformar, de inumeráveis maneiras e numa escala sem precedentes, tudo quanto o rodeia…e, no plano político, proclama no seu Princípio 1: “Ao homem assiste o direito fundamental à liberdade, à igualdade e ao usufruto de condições de vida adequadas num meio cuja qualidade lhe permita viver com dignidade e bem-estar, cabendo-lhe o dever solene de proteger e melhorar o meio para as gerações presentes e futuras”.[4]

“Quando oiço «isto é um país de poetas», lembro-me logo de outra coisa que o país também é: de romancistas”.[5]
1.
Não constituindo objeto deste ensaio o estudo da cultura portuguesa e da sua história literária, é óbvio que não pode nem quer alhear-se das suas problemáticas.
Eduardo Lourenço terá apreendido, primeiro que qualquer outro pensador, o advento de um novo período cultural no nosso país, que abria caminho por entre o confronto dualista que colocava frente a frente os intelectuais afetos ao regime fascista, que invocavam os valores do cristianismo, versus  a oposição, largamente influenciada pelo marxismo e pela estética neorrealista, pese embora a importância cultural dos escritores dificilmente enquadráveis numa determinada tendência. Os paradigmas do que denomina a “Nova Literatura” situa-os entre A Sibila (1953), de Agustina Bessa Luís, e Rumor Branco (1963), de Almeida Faria.
Com visível otimismo saudou a sua original modernidade.
 “Nem desinteresse pelo lá-fora cultural e literário, nem idolatria.  …a novidade é que desta vez a ressonância é de pura superfície, a imitação quase só reduzida a certos aspectos formais nalguns…Bessa Luís, Cardoso Pires, ou Almeida Faria”.[6]
E definindo a sua especificidade literária:
 “…admirável anacronismo,” alimentando-se“…da nossa realidade mais visível…”, incomum no contexto das literaturas contemporâneas“…cujo grande tema é a desmontagem e a contestação ao nível mais radical, o da linguagem mesmo_ do que a literatura foi ou quis ser”.[7]
Portugal e Espanha, esmagados pelas ditaduras, económica e socialmente retrógradas, respirando através da cultura os primeiros ares das novíssimas liberdades criativas. Aprendendo a servir-se das conquistas formais, estéticas e estruturais do modernismo e do pós-modernismo, mas continuando a escrever sobre a terrível e heroica aventura da condição humana, num tempo universal mas enraizado no drama da nação portuguesa.
E prossegue Eduardo Lourenço.
“A Nova Literatura é uma enorme parábola dessa ausência, mas como esta ausência pode efetivamente mascarar-se sob formas aceitáveis e até fascinantes, ela é a nossa verdadeira vida”.[8]
Passa em seguida à diferenciação da Nova Literatura, face ao movimento neorrealista, cujo proselitismo ético, das “soluções positivas“, questiona, e precisa o seu …”tema central (e obsessão quase única do Ocidente na poesia e no romance) do amor, ou, mais genericamente, da relação erótica…”[9]

2.

Julgamos que a definição deste novo contexto cultural e a sua assumida contestação das ideologias devem ser prudentemente analisadas, porque se há substância capaz da mais sofisticada e camaleónica metamorfose, essa é a que constitui o corpo doutrinário das ideologias dominantes.
Mas o valor inquestionável da reflexão de Eduardo Lourenço e a matriz da sua notável lucidez está na forma como concebe e aplica o seu policódigo interpretativo. Reconheçamo-lo neste comentário paradoxal acerca da autora da Sibila .
“Pouco importa que uma leitura de sentido imediato ou o comportamento ideológico ostensivo de uma autora como Bessa- Luís assinalem a sua obra como inequivocamente reacionária. Até importa mais do que o que ela pensa. É caso para dizer que não é reacionário quem quer. A autora da Sibila pode por vezes reenviar-nos ao paraíso arcaico da «roca e do fuso», uma tal convicção, ingenuidade ou pensada e profunda provocação, são pouca coisa ao lado da descrição da desordem sentimental, da crueldade das «relações humanas», da visão demoníaca do dinheiro que das suas páginas se levanta desmentindo sem cessar a litania azul da nossa celebérrima e trágica «brandura de costumes». O que Bessa -Luís mostra, importa mais do que ela «pensa»[10].
Com notável perspicácia e o talento de tornar simples de entender o que é complexo de analisar, Maria Lúcia Lepecki chama a atenção para a mestria dos nossos prosadores (- poetas), na gestão económica e rigorosa da sua “enxuta” escrita, mas também para as “volutas discursivas” de outros “redondos” textos, onde, em ambos, o implícito é adequadamente expresso, quantas vezes “Para (não) dizer o contrário”.[11]
Somos de opinião que estas chaves interpretativas são muito importantes para orientar a nossa análise das obras do novo período literário e da própria atualidade, estabelecendo as relações evidentes, mas também as “invisíveis,“ com a questão ambiental. É como se pedíssemos a nós mesmo e aos nossos pacientes interlocutores, leitores imaginários e reais, que percorram as novas imagens literárias, que vamos recolher, usando alternadamente a visão natural e, em certas sequências, recorrendo aos artefactos pós-modernos, qualquer coisa entre os óculos tridimensionais, os binóculos de infravermelhos e os capacetes da realidade virtual. Ou, dito de outro modo, procurando descobrir os percursos entrecruzados por onde a palavra ascende à condição de modo de ver e interpretar a natureza toda e passando a símbolo e a signo, fixa-se como imagem não naturalista ou realista, mas imagem literária depurada, com códigos e significados plurais. Apesar de que, por autodisciplina obediente aos limites do nosso projeto de ensaio, as obras mais recentes irão pesar no trabalho relativamente menos e o contributo premonitório da Geração de 70 permanecerá, por ora, na obscuridade.
É dentro daquela dupla linha interpretativa que encontraremos nos novos poetas e prosadores, mas também nos outros, um referencial mais de signos do que de matéria naturalmente configurada, e é nesses signos que vamos procurar o fio condutor ambiental.[12] Ficam, no entanto, por analisar quais as causas histórico-culturais e de “tradição literária” desse “admirável anacronismo” e o seu pleno significado político-cultural, por se situarem mais além da dimensão de um ensaio.
1.
Neste contexto, perguntamo-nos mesmo se a literatura portuguesa não representa, à sua escala modesta, face ao panorama da cultura mundial, um contributo de valor global para ultrapassar os paradigmas Modernista e Pós-Modernista, ao incorporar as suas audácias técnico-compositivas e conquistas formais, mas retomando os temas clássicos da arte e da literatura, a condição e a aventura humanas sobre a terra, iluminadas atualmente pelo espectro da crise ambiental e pela estagnação dogmática de todas as ideologias (estagnação que parece morte, mas é afinal morte aparente), a que começaremos a responder neste trabalho.
Veremos, por exemplo, a interpretação do Delfim, de Cardoso Pires, obra que utiliza técnicas compositivas inovadoras e aborda, num dos seus círculos interpretativos, algumas temáticas ambientais. Ou o Portuguex, de Armando da Silva Carvalho, a que noutro capítulo faremos referência, mas que nos conduz ao âmago da sociedade atual, transformada num gigantesco mercado onde tudo, mas tudo, se pode comprar e vender e onde a única lei de bronze é a da mais feroz concorrência e consumo.
Lugar de destaque nesta reflexão deve merecer a obra de Ruben A. A Torre de Barbela, “…impressionante romagem através do país e do mundo...”onde a lei dos mortos pouco a pouco superou a lei dos vivos.”[13] São oito séculos de história, de um ambiente humanizado pelo esforço de fidalgos e camponeses, que, na década de 60, o autor classificava como…
 “...uma das harmonias mais completas que se memoriava nos anais e incunábulos da fidalguia nacional...”consubstanciada“...naquele contacto e conjunto entre a natureza e o não estragar dos homens...Uma paisagem espetacular de sentido ignoto-limoeiros de São Cyro aveludados de um musgo cor de garrafa antiga, árvores de fruto comandadas pelas macieiras reinetas bem destacadas de um pelotão de cerejeiras, pereiras, damasqueiros e laranjeiras _ transmitia uma visão cheirosa e limpa a quem descesse as escadas da Torre e fosse a pé pela avenida dos plátanos perscrutar a margem do rio”.[14]
          Mas uma Torre, arquétipo da nação portuguesa e do seu património natural e cultural, que na época já era ameaçada pelo “africanista”, arqui-símbolo do ricaço novo-rico e da incultura política que lhe está associada; assim foram, nas décadas seguintes, os que haviam de construir nos Algarves, nas grandes cidades e nas paisagens mais vulneráveis, os seus impérios de betão, destruindo o equilíbrio ecológico da paisagem.
          E que contém uma prodigiosa reflexão sobre a alma nacional, acerca da nossa cultura e ambiente intelectual da época, onde pululam “trampolineiros...leva-e-traz que só sabem tecer camisolas de intriga”.[15] Arrivistas que, bem no fundo do seu atávico atraso, reverente para tudo o que é estrangeiro, destilam “um ódio medroso que arrepia. ”Ódio que na fábula do romance queima os que pelo amor e a liberdade quiseram encetar o caminho para uma vida nova.[16] Uma cultura e uma história onde “os mortos são vivos e os vivos são mortos”, imagens evocadoras da repressão e do conformismo social, que marcavam o início de um período de guerra em três frentes coloniais e de exaltado nacionalismo, de destruição do ambiente de comunhão entre a terra e o homem português, capaz, ainda, de preservar a ecologia da paisagem e a sua espiritualidade.[17] Leia­-se, paisagem humanizada, monumento ao esforço do homem e sustento da sua metafísica compreensão do mundo.
Eis, portanto, a primeira referência discursiva a um dos autores que melhor manifesta as duas faces da consciência ambientalista que nos propomos analisar neste percurso, pela sua obra e a nossa literatura. Começámos com a interpretação metalinguística de um intertexto subjacente à narrativa: ali estão os símbolos ancestrais da terra, a relação de harmonia do homem com a natureza, mas igualmente os sinais que ameaçam rompê-la; a consciência premonitória de que a ocupação desordenada da paisagem representa também a destruição das condições ambientais onde a vida floresce e, com ela, se põe em risco a dignidade do ser humano.
          Veremos adiante, sem o sentido mediador desta metafórica Torre, o apelo direto do autor contra a destruição do património construído na alta de Coimbra. Os elementos físicos que nos permitem reconhecer os objetos desse património ali estão objetivamente referidos, mas carregados de outras significações e é a memória poética que o autor evoca, para se insurgir contra o aniquilamento daquilo que transcende a materialidade das coisas: “o musgo quente de nomes que por ali viveram e sentiram”[18] Antecipamos assim dois conceitos chave da nossa metodologia de leitura das obras literárias, numa perspectiva que parte do aparelho concetual da filosofia ambiental: a ecologia da paisagem” e a “metafísica do ambiente”.[19] Deixamos, por agora, o leitor deste trabalho suspenso da sua própria intuição, com as referências às obras de Ruben A. como primeiro contributo para o pleno entendimento do significado daqueles conceitos.

2.

Ao longo deste estudo havia que fazer prova da contribuição dos poetas e prosadores portugueses para a génese da consciência ambiental contemporânea. Por razões de método, poderíamos ter escolhido apenas alguns autores de referência e seguir, na totalidade da sua obra, o fio condutor da reflexão sobre o ambiente. Deste modo contribuiríamos, seguramente, para desfazer alguns mal-entendidos e estigmas que rodeiam, por exemplo, a arte literária de Aquilino Ribeiro, mal compreendido na sua modernidade e apelidado de ruralista, apodo a que não escapa Miguel Torga, ou para proporcionar uma outra perspectiva de aproximação aos textos da Nova Literatura de Almeida Faria e Cardoso Pires, mas correndo, assim, o risco, de que a dimensão global e a diversidade daquele contributo se tomasse pouco significativo no panorama geral da nossa produção literária.
Ainda assim, não foi fácil optar pelo método que escolhemos, de ordem temática: Na Parte II, a experiência estética da natureza, que evolui das conceções conservacionistas para a categoria de ambiente, abordada literariamente como terreno de revelação e reflexão poética de todas as questões que gravitam em tomo dos conceitos de natureza e ambiente; na Parte III, a relação sistémica entre os seres e as coisas, com as suas correlações económicas, sociais, culturais e históricas, configurada no que chamamos de “paisagens humanizadas”, marcadas pelo dilema “crescimento ou desenvolvimento sustentável;” e, finalmente, na Parte IV, a análise do novo paradigma da natureza, onde se integra o ser humano, que emana do conceito de ambiente e se traduz na construção de uma nova ética global.
Este percurso temático, ao longo do qual se revelam os contributos e as obras dos nossos escritores, pareceu-nos mais adequado para demonstrar a sua amplitude e valor premonitório, a fim de provar que tal desiderato não é a exceção mas a regra. Vale também, num sentido inverso ao da demonstração inicial, como constatação da influência que a crise ambiental, quer disso tenham ou não consciência os escritores, exerce hoje sobre a arte literária e a cultura. De qualquer modo, os leitores deste ensaio encontrarão em evidência uma seleção de autores representativos das correntes, escolas e personalidades literárias mais marcantes do período onde concentrámos o nosso estudo.[20]






[1]   John Thomas, Leonardo da Vinci, pág. 102.
[2] “...caminhante, não há caminho, faz-se caminho ao andar...”Do poema Campos de Castela, 1912. Ver, António Machado, Antologia Poética, Edição Bilingue.
[3] Raul Proença, Guia de Portugal, Vol. I, pág. LXI.
[4] Texto editado pela C.N.A., Lisboa, 1968.
[5] Maria Lúcia Lepecki, Sobreimpressões, pág. 186.
[6] Eduardo Lourenço, O Canto do Signo. Existência e Literatura, pps. 259 a 263.
[7] Ibid..
[8] Ibid..
[9] Ibid., pág. 263.
[10] Ibid., pág. 261.
[11] Maria Lúcia Lepecki,  Sobreimpressões, pps. 186 e 187.
[12] Para elucidar melhor esta questão, recorramos agora à reflexão filosófica do professor Carlos João Correia, acerca da dialética da função simbólica, que implica “… dois movimentos aparentemente contraditórios sobre a experiência do sentido, ou seja, … uma estrutura transcendental do sentido  e  o poder operativo e transfigurador da experiência.” E noutro ponto da sua dissertação:”…o mundo da ficção distancia-se do mundo da  experiência (situação), só que essa distanciação vai permitir uma nova redescrição e transfiguração da experiência. Ora, só podemos ampliar o horizonte da nossa perceção elevando-nos a um ponto mais elevado que nos permita circunscrever o espaço em que estávamos imersos. É esse, a nosso ver, o sentido eminente das grandes criações literárias da humanidade. Oferecem-nos perspetivas novas nas quais podemos observar e transformar a experiência.”Carlos João Nunes Correia, Ricoeur e a Expressão Simbólica do Sentido, resumo da dissertação de doutoramento, Philosofica, nº3, pág.149.
[13] Liberto Cruz, no posfácio da obra, pág. 350, escrita em 1964.
[14] Ruben A., A Torre de Barbela, pág. 345, 1964.
[15] Ibid., pág. 265.
[16] Ibid., pág. 264.
[17]  Ibid., pág. 337.
[18] A Ultima Época Civilizada de Coimbra, texto de 1966, da autoria de Ruben A., publicado na coletânea Memórias de Alegria, organizada por Eugénio de Andrade.
[19] Usamos aqui o conceito de “metafísica” não como oposição à “física”, matéria e ciência, mas no sentido do que transcende a “física”, daquilo que é espírito e cultura da Humanidade.
[20]  Em notas ao texto delineámos as pistas de desenvolvimento e aprofundamento desta investigação, deixando para um outro e volumoso trabalho, a organização sequencial das citações completas extraídas das obras em análise, classificadas em referência aos conceitos imbricadas na categoria do ambiente, de modo a permitir a ligação do extrato à obra em referência e desta ao conjunto das questões em análise. Enfim, esta “compilação” é, para retornar à terminologia de Eco, também um proto ensaio, mas com a diferença de que os textos em causa não estavam publicados num contexto da relação entre a Literatura e o Ambiente e foi necessário investigar para descobrir essa peculiar ligação. Umberto Eco, na obra Como se Faz uma Tese em Ciências Humanas, escreve:”...pode haver uma boa tese que não seja de investigação, mas uma tese de compilação. Numa tese de compilação o estudante demonstra simplesmente ter examinado criticamente a maior parte da «literatura» existente (ou seja, os trabalhos publicados sobre o assunto) e ter sido capaz de expô-la de modo claro...,”pág. 25. O que vale igualmente para uma obra de ensaio.

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