Literatura e
Ambiente
A Contribuição dos Poetas e
Prosadores Portugueses para a Génese da Moderna Consciência Ambientalista
Nota Introdutória
Na altura
em que a causa ambiental volta a mobilizar a nova geração de jovens europeus,
este livro ganha maior relevância e utilidade, sobretudo para os educadores e
os novos líderes ambientalistas, incluindo essa juventude.
Ele
procura revelar e demonstrar que as sementes da moderna consciência ambientalista
brotaram também nesta finisterra, que é Portugal e, de forma premonitória, ao
longo dos últimos três séculos enfrentando ventos políticos adversos,
alcançaram a Espanha, a Europa e o Mundo.
Os
escritores portugueses integraram nas suas obras os princípios éticos e morais,
as bases científicas, onde se fundamentam a filosofia do ambiente e as suas
éticas e se apontam os caminhos para enfrentar e superar a crise ambiental.
2001/2017
Autor
© António dos Santos Queirós
ISBN 978-972-8659-41-7
©ANTÓNIO DOS SANTOS QUEIRÓS
Centro de Filosofia. Faculdade de Letras da Universidade
de Lisboa
Alameda da Universidade 1600-214, Lisboa Portugal
adsqueiros@gmail.com
T. 910506370
Professor. Researcher
of Environmental Philosophy and Ethics in the Center of Philosophy of U.
Lisbon, visiting the U. Salamanca and Sorbonne.
Member of Wah Ching
Centre of Research on Education in China the University of Hong Kong.
It is also research of
Cultural Tourism, Tourism of Nature and Sustainable Development in the U. of
Aveiro.
His research interests
include global bioethics, literature, higher education, international heritage
and environmental projects.
Doctor of Philosophy
(Ph.D.).
Master of Philosophy
(Ph.M,.
Master of Arts.
(A.M.).
Post-doctoral Research,
Field of Study: Economy and Tourism.
China, philosophy, history, economy and culture.
He published 13 books
and directed 11 scientific films, 28 chapters’ books, 62 papers in
international peer review journals and papers in conference proceedings and
others multimedia products. Two dozen articles in newspapers and magazines.
Like editor he
published more than 50 scientific tittles.
Association of Museum
and Science Centers of Portugal_ MC2P (ONG) President
Secretary General of
CCDPCh_ Chamber of Portugal-China Cooperation and Development 葡萄牙-中国合作发展 协会
Adviser and Researcher of Fórum dos Serviços para uma Especialização
Inteligente da Economia Portuguesa, Confederação do Comércio e Serviços de
Portugal (CCP_ National Confederation of Services and Trader),
Professor. Investigador em filosofia ambiental e
ética ambiental no Centro de Filosofia da Faculdade de Letras da U. Lisboa,
visitando a U. de Salamanca e a U. da Sorbonne.
Membro do Centro de Investigação em Ciências da
Educação Wah Ching Centre of Research on Education in China the University of
Hong Kong.
Investigador nas áreas de Turismo Ambiental e
desenvolvimento sustentável (U de Aveiro), visitando as Universidades de
Salamanca e Bordéus.
Os seus interesses de investigação incluem ainda a bioética
global, os estudos literários, o ensino superior, o património, os projetos
ambientais.
Doutor em Filosofia das Ciências. Mestre em
Filosofia da Natureza e do Ambiente. Mestre em Teoria da Arte. Pós-graduado em
Ciências da Educação.
Investigação de pós-doutoramento, Economia e
turismo. China, filosofia, história, economia e cultura.
Publicou 13 livros e dirigiu 11 filmes científicos,
28 capítulos de livros, 62 artigos em jornais e revistas científicas. Duas
dúzias de artigos em jornais e revistas. Como editor, publicou mais de 50
títulos científicos.
Presidente da Associação de Museus e Centros de
Ciência de Portugal. MC2P.
Secretário-geral da Câmara de Cooperação e
Desenvolvimento Portugal-China. CCPDCh.
Consultor do Fórum dos Serviços. Confederação
do Comércio e Serviços de Portugal. CCP.
Conteúdo
3. A crise de fim de século e a sua relação com o corpus literário
O ensaio de divulgação que nos propusemos realizar_ A contribuição dos
poetas e prosadores portugueses para a moderna consciência ambientalista_
depara-se desde o início com uma inusitada riqueza de contributos, de tal modo que
só um trabalho muito para além deste programa poderá avaliar completamente o
seu alcance e significado.
A escolha do tema deste trabalho só se justifica, então, como contributo
para uma nova frente de investigação,
que conserva, ainda assim, um vasto campo de estudo, delimitado pelo conceito
temporal da modernidade, no sentido de consciência ambientalista que nos é
contemporânea.
Importa assinalar que o conceito de ambiente se constitui e adquire uma
conotação “moderna” quando deixa de significar apenas conservação da natureza e
oposição da cidade ao mundo rural,
enriquecendo-se com novas significações que comportam os valores
denotativos do despertar social perante os perigos da industrialização e a
resposta cívica aos problemas da saúde pública e da sobrevivência da humanidade
gerados pela poluição generalizada e a destruição dos recursos naturais. Ele
incorpora progressivamente uma dimensão científica plural, não só aquela que
lhe empresta a Ecologia, enquanto ciência da relação dos seres com o meio, mas
também um vasto leque de outros domínios científicos, a Geografia e a História
quando estudam a humanização dos grandes quadros naturais, a Biologia que
revela a importância da diversidade dos seres vivos, a Geologia que nos conduz
ao reconhecimento das condições paleoambientais geradoras dos ciclos de
extinção e expansão da biodiversidade... ao mesmo tempo que remete para a
necessidade de avaliar o nosso modelo de crescimento nos planos da ética e da
moral.
Falta-nos ainda a distância do tempo histórico para avaliar se o pensamento
ambientalista é capaz de renovar ou substituir as ideologias e doutrinas da
nossa época, constituindo e conservando o seu próprio corpo filosófico, ou,
reduzido a algumas descobertas científicas e propostas ético-políticas avulsas,
será incorporado e dissolvido por elas. Eis uma questão a que voltaremos mais
adiante.
2.
O projeto de estudar os autores portugueses ao longo de sete décadas do
século XX impôs-se, nos seus limites temporais, pala circunstância de os
primeiros escritos e mesmo programas governamentais de conservação da natureza
surgirem já nos finais do século XIX, inicialmente nos países industrializados;
e a primeira Conferência das Nações Unidas sobre o Ambiente ter tido lugar no
ano de l972 em Estocolmo, conduzindo em Portugal à criação da Comissão Nacional
do Ambiente_ C.N.A., um ano antes, em 1971. A questão ambiental oficializou-se
então, entrou no discurso político e no quotidiano da comunicação social, as
denúncias e a intervenção no domínio do ambiente passaram a ser reconhecidas
socialmente, sem que a crise ambiental deixasse de se agravar.
Em Portugal o triunfo da revolução democrática do 25 Abril de 1974 tornou
possível que na consciência da nação portuguesa se começasse a ouvir claramente
a impercetível fuga do tema ambiental, num crescendo de crise nacional e mundial,
mas também de resposta cívica, sobretudo das novas gerações, fazendo intervir
outros atores na questão ambiental e alterando profundamente o seu contexto
social e político.
3
Cabe aqui uma referência acerca da importância
concedida à literatura como recurso e instância de educação ambiental. No nosso
país, pese embora a sua utilização no contexto das ações de formação orientadas
pelo Dr. João Evangelista no antigo Instituto Nacional do Ambiente, que o Centro
de Formação de Professores de Conimbriga retomou no início da década de 90, e
de alguns textos que mereceram a curiosidade pontual de geógrafos e biólogos, esta
perspectiva tem sido geralmente ignorada pelos especialistas de ambos os lados
- o da Literatura e o do Ambiente. Salvo, talvez, algumas coletâneas de textos,
entre as quais merece destaque o conjunto de volumes agrupados sob a designação
de Portugal, a Terra e o Homem, organizados, primeiro, por Vitorino Nemésio e,
depois, por David Mourão Ferreira e Maria Alzira Seixo para a Fundação Gulbenkian
e as mais recentes conferências na Casa de Alorna e dos Marqueses de Fronteira,
estas na perspectiva de análise das manifestações da natureza em alguns dos
autores contemporâneos, sob orientação de
Maria Lúcia Lepecki.
É esse estudo
sistemático, da literatura portuguesa como instância e recurso da questão
ambiental, que nos propomos realizar a partir deste nosso trabalho de ensaio,
mas no contexto de uma mais vasta reflexão filosófica, social e política,
enquadrada pela categoria do ambiente.
4.
Por natureza, os escritores e poetas, os artistas em geral, são dotados de
um grande apego à liberdade de pensamento e a sua sensibilidade recolhe os mais
profundos apelos da terra e do homem. A sua consciência universalista leva-os a
valorizar toda a cultura humana, desde as mais belas obras das civilizações
clássicas, até aos signos misteriosos dos primeiros pintores, das catedrais
góticas à revelação do planeta azul.
Por estas razões, intuem, pressagiam e dão testemunho antecipado dos
problemas e perspetivas que a consciência coletiva de uma época ignora ou
marginaliza como incómodas utopias ou inquietantes denúncias. Leonardo da Vinci
teria deixado nas notas de rodapé do seu plano para o visionário submarino, como
maior das preocupações, a interrogação sobre as consequências que a intrusão do
homem no fundo dos mares poderia trazer para o equilíbrio da vida oceânica.[1] E António Machado, na Espanha contemporânea, escreveu
as palavras-chave da crise geral que emerge neste fim de século:
“... caminante, no hay camino,
se hace camino al andar...”[2]
Aqui e agora, porque esse trabalho heurístico é globalmente pioneiro,
optámos por anotar e citar os testemunhos menos conhecidos (ou mesmo ignorados)
da obra literária dos nossos criadores contemporâneos, em relação com a moderna
questão ambiental e partilhar a sua experiência estética da natureza, guardando
para um trabalho de maior dimensão a sua inserção intertextual. Como afirma o
coordenador do Guia de Portugal, obra premonitória, à escala universal,
de defesa do Património Cultural e Natural:
“A
literatura apresenta aqui a disciplina, a convergência de esforços e a harmonia
das grandes massas corais. É um
uníssono coro que se ergue ao esplendor e à beleza da velha terra de Portugal”.[3]
A crítica e a análise literária tornaram-se instrumentos indispensáveis
deste trabalho, mas não o seu objeto, assim como a evolução da cultura portuguesa
que lhe subjaz. Dois referenciais se destacam neste processo: as obras de Óscar
Lopes e Eduardo Lourenço, em paralelo com outros especialistas citados. Sempre
que as opiniões expressas pelo autor desta dissertação surgiram anteriormente
publicadas em trabalhos de análise ou crítica literárias, mesmo quando a elas chegou
de forma autónoma, optámos pela citação direta das passagens em causa, não com
o propósito de exibir erudição ou mascarar a falta de um pensamento ou modo de
expressão próprios, mas escrupulosamente por obediência aos princípios da
honestidade intelectual.
Para estes textos compactos solicitamos a atenção e a paciência benévola
dos leitores críticos do nosso trabalho.
Fica então traçado o limite objetivo deste ensaio: Tornar visíveis as pistas que possam conduzir à revelação dos contributos
dos escritores portugueses para a génese da moderna consciência ambientalista e
à redescoberta das suas obras nesta perspectiva, os quais, celebrados embora na
sua dimensão artística, permanecem na sombra enquanto mentores dessa outra
consciência ambiental.
Como
parâmetros, de onde emerge universalmente esta consciência, tomaremos a Proclamação
e os Princípios da Declaração de Estocolmo, em 1972, nomeadamente, na
sua perspectiva ecológica, que postula:
“O homem é simultaneamente obra e artífice do
meio que o rodeia… chegou-se a uma etapa em que, graças à rápida aceleração da
ciência e da tecnologia, o homem adquiriu o poder de transformar, de
inumeráveis maneiras e numa escala sem precedentes, tudo quanto o rodeia…e, no
plano político, proclama no seu Princípio 1: “Ao homem assiste o direito
fundamental à liberdade, à igualdade e ao usufruto de condições de vida
adequadas num meio cuja qualidade lhe permita viver com dignidade e bem-estar,
cabendo-lhe o dever solene de proteger e melhorar o meio para as gerações
presentes e futuras”.[4]
“Quando oiço
«isto é um país de poetas», lembro-me logo de outra coisa que o país também é:
de romancistas”.[5]
1.
Não constituindo objeto deste ensaio o estudo da cultura portuguesa e da
sua história literária, é óbvio que não pode nem quer alhear-se das suas
problemáticas.
Eduardo Lourenço terá apreendido, primeiro que qualquer outro pensador, o
advento de um novo período cultural no nosso país, que abria caminho por entre
o confronto dualista que colocava frente a frente os intelectuais afetos ao
regime fascista, que invocavam os valores do cristianismo, versus a oposição, largamente influenciada pelo
marxismo e pela estética neorrealista, pese embora a importância cultural dos
escritores dificilmente enquadráveis numa determinada tendência. Os paradigmas
do que denomina a “Nova Literatura” situa-os entre A Sibila (1953), de Agustina
Bessa Luís, e Rumor Branco (1963), de Almeida Faria.
Com visível otimismo saudou a sua original modernidade.
“Nem desinteresse pelo lá-fora cultural e
literário, nem idolatria. …a novidade é
que desta vez a ressonância é de pura superfície, a imitação quase só reduzida
a certos aspectos formais nalguns…Bessa Luís, Cardoso Pires, ou Almeida Faria”.[6]
E definindo a sua especificidade literária:
“…admirável anacronismo,” alimentando-se“…da
nossa realidade mais visível…”, incomum no contexto das literaturas
contemporâneas“…cujo grande tema é a desmontagem e a contestação ao nível mais
radical, o da linguagem mesmo_ do que a literatura foi ou quis ser”.[7]
Portugal e Espanha, esmagados pelas ditaduras, económica e socialmente
retrógradas, respirando através da cultura os primeiros ares das novíssimas
liberdades criativas. Aprendendo a servir-se das conquistas formais, estéticas
e estruturais do modernismo e do pós-modernismo, mas continuando a escrever
sobre a terrível e heroica aventura da condição humana, num tempo universal mas
enraizado no drama da nação portuguesa.
E prossegue Eduardo Lourenço.
“A Nova
Literatura é uma enorme parábola dessa ausência, mas como esta ausência pode efetivamente
mascarar-se sob formas aceitáveis e até fascinantes, ela é a nossa verdadeira
vida”.[8]
Passa em seguida à diferenciação da Nova Literatura, face ao movimento neorrealista,
cujo proselitismo ético, das “soluções positivas“, questiona, e precisa o seu
…”tema central (e obsessão quase única do Ocidente na poesia e no romance) do
amor, ou, mais genericamente, da relação erótica…”[9]
2.
Julgamos que a definição deste novo contexto cultural e a sua assumida
contestação das ideologias devem ser prudentemente analisadas, porque se há
substância capaz da mais sofisticada e camaleónica metamorfose, essa é a que
constitui o corpo doutrinário das ideologias dominantes.
Mas o valor inquestionável da reflexão de Eduardo Lourenço e a matriz da
sua notável lucidez está na forma como concebe e aplica o seu policódigo
interpretativo. Reconheçamo-lo neste comentário paradoxal acerca da autora da Sibila .
“Pouco
importa que uma leitura de sentido imediato ou o comportamento ideológico
ostensivo de uma autora como Bessa- Luís assinalem a sua obra como
inequivocamente reacionária. Até importa mais do que o que ela pensa. É caso para
dizer que não é reacionário quem quer. A autora da Sibila pode por vezes reenviar-nos
ao paraíso arcaico da «roca e do fuso», uma tal convicção, ingenuidade ou
pensada e profunda provocação, são pouca coisa ao lado da descrição da desordem
sentimental, da crueldade das «relações humanas», da visão demoníaca do
dinheiro que das suas páginas se levanta desmentindo sem cessar a litania azul
da nossa celebérrima e trágica «brandura de costumes». O que Bessa -Luís mostra,
importa mais do que ela «pensa»”[10].
Com notável perspicácia e o talento de tornar simples de entender o que é
complexo de analisar, Maria Lúcia Lepecki chama a atenção para a mestria dos
nossos prosadores (- poetas), na gestão económica e rigorosa da sua “enxuta”
escrita, mas também para as “volutas discursivas” de outros “redondos” textos,
onde, em ambos, o implícito é adequadamente expresso, quantas vezes “Para (não)
dizer o contrário”.[11]
Somos de opinião que estas chaves interpretativas são muito importantes
para orientar a nossa análise das obras do novo período literário e da própria atualidade,
estabelecendo as relações evidentes, mas também as “invisíveis,“ com a questão
ambiental. É como se pedíssemos a nós mesmo e aos nossos pacientes interlocutores,
leitores imaginários e reais, que percorram as novas imagens literárias, que
vamos recolher, usando alternadamente a visão natural e, em certas sequências,
recorrendo aos artefactos pós-modernos, qualquer coisa entre os óculos
tridimensionais, os binóculos de infravermelhos e os capacetes da realidade
virtual. Ou, dito de outro modo, procurando descobrir os percursos entrecruzados
por onde a palavra ascende à condição de modo de ver e interpretar a natureza
toda e passando a símbolo e a signo, fixa-se como imagem não naturalista ou
realista, mas imagem literária depurada, com códigos e significados plurais. Apesar
de que, por autodisciplina obediente aos limites do nosso projeto de ensaio, as
obras mais recentes irão pesar no trabalho relativamente menos e o contributo
premonitório da Geração de 70 permanecerá, por ora, na obscuridade.
É dentro daquela dupla linha interpretativa que encontraremos nos novos
poetas e prosadores, mas também nos outros, um referencial mais de signos do
que de matéria naturalmente configurada, e é nesses signos que vamos procurar o
fio condutor ambiental.[12] Ficam, no entanto, por analisar quais as causas histórico-culturais
e de “tradição literária” desse “admirável anacronismo” e o seu pleno
significado político-cultural, por se situarem mais além da dimensão de um
ensaio.
1.
Neste contexto, perguntamo-nos mesmo se a literatura portuguesa não representa, à sua escala modesta, face ao
panorama da cultura mundial, um contributo de valor global para ultrapassar os
paradigmas Modernista e Pós-Modernista, ao incorporar as suas audácias técnico-compositivas
e conquistas formais, mas retomando os temas clássicos da arte e da literatura,
a condição e a aventura humanas sobre a terra, iluminadas atualmente
pelo espectro da crise ambiental e pela estagnação dogmática de todas as
ideologias (estagnação que parece morte, mas é afinal morte aparente), a que
começaremos a responder neste trabalho.
Veremos, por exemplo, a interpretação do Delfim, de Cardoso Pires,
obra que utiliza técnicas compositivas inovadoras e aborda, num dos seus
círculos interpretativos, algumas temáticas ambientais. Ou o Portuguex,
de Armando da Silva Carvalho, a que noutro capítulo faremos referência, mas que
nos conduz ao âmago da sociedade atual, transformada num gigantesco mercado
onde tudo, mas tudo, se pode comprar e vender e onde a única lei de bronze é a
da mais feroz concorrência e consumo.
Lugar de destaque nesta reflexão deve merecer a obra de Ruben A. A Torre
de Barbela, “…impressionante romagem através do país e do mundo...”onde a
lei dos mortos pouco a pouco superou a lei dos vivos.”[13] São oito séculos de história, de um ambiente
humanizado pelo esforço de fidalgos e camponeses, que, na década de 60, o autor
classificava como…
“...uma
das harmonias mais completas que se memoriava nos anais e incunábulos da fidalguia
nacional...”consubstanciada“...naquele contacto e conjunto entre a natureza e o
não estragar dos homens...Uma paisagem espetacular de sentido ignoto-limoeiros
de São Cyro aveludados de um musgo cor de garrafa antiga, árvores de fruto
comandadas pelas macieiras reinetas bem destacadas de um pelotão de cerejeiras,
pereiras, damasqueiros e laranjeiras _ transmitia uma visão cheirosa e limpa a
quem descesse as escadas da Torre e fosse a pé pela avenida dos plátanos
perscrutar a margem do rio”.[14]
Mas
uma Torre, arquétipo da nação portuguesa e do seu património natural e
cultural, que na época já era ameaçada pelo “africanista”, arqui-símbolo do
ricaço novo-rico e da incultura política que lhe está associada; assim foram,
nas décadas seguintes, os que haviam de construir nos Algarves, nas grandes
cidades e nas paisagens mais vulneráveis, os seus impérios de betão, destruindo
o equilíbrio ecológico da paisagem.
E
que contém uma prodigiosa reflexão sobre a alma nacional, acerca da nossa
cultura e ambiente intelectual da época, onde pululam “trampolineiros...leva-e-traz
que só sabem tecer camisolas de intriga”.[15] Arrivistas que, bem no
fundo do seu atávico atraso, reverente para tudo o que é estrangeiro, destilam
“um ódio medroso que arrepia. ”Ódio que na fábula do romance queima os que pelo
amor e a liberdade quiseram encetar o caminho para uma vida nova.[16] Uma cultura e uma história
onde “os mortos são vivos e os vivos são mortos”, imagens evocadoras da
repressão e do conformismo social, que marcavam o início de um período de
guerra em três frentes coloniais e de exaltado nacionalismo, de destruição do
ambiente de comunhão entre a terra e o homem português, capaz, ainda, de
preservar a ecologia da paisagem e a sua espiritualidade.[17] Leia-se, paisagem
humanizada, monumento ao esforço do homem e sustento da sua metafísica
compreensão do mundo.
Eis, portanto, a primeira referência discursiva
a um dos autores que melhor manifesta as duas faces da consciência
ambientalista que nos propomos analisar neste percurso, pela sua obra e a nossa
literatura. Começámos com a interpretação metalinguística de um intertexto
subjacente à narrativa: ali estão os símbolos ancestrais da terra, a relação de
harmonia do homem com a natureza, mas igualmente os sinais que ameaçam
rompê-la; a consciência premonitória de que a ocupação desordenada da paisagem
representa também a destruição das condições ambientais onde a vida floresce e,
com ela, se põe em risco a dignidade do ser humano.
Veremos
adiante, sem o sentido mediador desta metafórica Torre, o apelo direto do autor
contra a destruição do património construído na alta de Coimbra. Os elementos
físicos que nos permitem reconhecer os objetos desse património ali estão objetivamente
referidos, mas carregados de outras significações e é a memória poética que o
autor evoca, para se insurgir contra o aniquilamento daquilo que transcende a
materialidade das coisas: “o musgo quente
de nomes que por ali viveram e sentiram”[18] Antecipamos assim dois
conceitos chave da nossa metodologia de leitura das obras literárias, numa
perspectiva que parte do aparelho concetual da filosofia ambiental: a “ecologia da paisagem” e a “metafísica
do ambiente”.[19] Deixamos, por agora, o leitor
deste trabalho suspenso da sua própria intuição, com as referências às obras de
Ruben A. como primeiro contributo para o pleno entendimento do significado
daqueles conceitos.
2.
Ao longo deste estudo havia que fazer prova da
contribuição dos poetas e prosadores portugueses para a génese da consciência
ambiental contemporânea. Por razões de método, poderíamos ter escolhido apenas
alguns autores de referência e seguir, na totalidade da sua obra, o fio
condutor da reflexão sobre o ambiente. Deste modo contribuiríamos, seguramente,
para desfazer alguns mal-entendidos e estigmas que rodeiam, por exemplo, a arte
literária de Aquilino Ribeiro, mal compreendido na sua modernidade e
apelidado de ruralista, apodo a que não escapa Miguel Torga, ou para proporcionar
uma outra perspectiva de aproximação aos textos da Nova Literatura de Almeida Faria
e Cardoso Pires, mas correndo, assim, o risco, de que a dimensão global e a
diversidade daquele contributo se tomasse pouco significativo no panorama geral
da nossa produção literária.
Ainda assim, não foi fácil optar pelo método que
escolhemos, de ordem temática: Na Parte II, a experiência estética da natureza,
que evolui das conceções conservacionistas para a categoria de ambiente,
abordada literariamente como terreno de revelação e reflexão poética de todas
as questões que gravitam em tomo dos conceitos de natureza e ambiente; na Parte
III, a relação sistémica entre os seres e as coisas, com as suas correlações
económicas, sociais, culturais e históricas, configurada no que chamamos de “paisagens humanizadas”, marcadas pelo
dilema “crescimento ou desenvolvimento sustentável;” e, finalmente, na Parte
IV, a análise do novo paradigma da natureza, onde se integra o ser humano, que
emana do conceito de ambiente e se traduz na construção de uma nova ética global.
Este percurso temático, ao longo do qual se revelam
os contributos e as obras dos nossos escritores, pareceu-nos mais adequado para
demonstrar a sua amplitude e valor premonitório, a fim de provar que tal
desiderato não é a exceção mas a regra. Vale também, num sentido inverso ao da
demonstração inicial, como constatação da influência que a crise ambiental,
quer disso tenham ou não consciência os escritores, exerce hoje sobre a arte
literária e a cultura. De qualquer modo, os leitores deste ensaio encontrarão
em evidência uma seleção de autores representativos das correntes, escolas e
personalidades literárias mais marcantes do período onde concentrámos o nosso
estudo.[20]
[2] “...caminhante, não
há caminho, faz-se caminho ao andar...”Do poema Campos de Castela, 1912. Ver, António Machado,
Antologia Poética, Edição Bilingue.
[12] Para elucidar melhor esta questão,
recorramos agora à reflexão filosófica do professor Carlos João Correia, acerca
da dialética da função simbólica, que implica “… dois movimentos aparentemente contraditórios
sobre a experiência do sentido, ou seja, … uma estrutura transcendental do
sentido e o poder operativo e transfigurador da experiência.”
E noutro ponto da sua dissertação:”…o mundo da ficção distancia-se do mundo
da experiência (situação), só que essa
distanciação vai permitir uma nova redescrição e transfiguração da experiência.
Ora, só podemos ampliar o horizonte da nossa perceção elevando-nos a um ponto
mais elevado que nos permita circunscrever o espaço em que estávamos imersos. É
esse, a nosso ver, o sentido eminente das grandes criações literárias da
humanidade. Oferecem-nos perspetivas novas nas quais podemos observar e transformar
a experiência.”Carlos João Nunes Correia, Ricoeur e a Expressão
Simbólica do Sentido, resumo da dissertação de doutoramento, Philosofica, nº3, pág.149.
[14] Ruben A., A Torre de Barbela, pág. 345, 1964.
[15] Ibid., pág. 265.
[16] Ibid., pág. 264.
[18] A Ultima Época Civilizada de Coimbra, texto de
1966, da autoria de Ruben A., publicado na coletânea Memórias de Alegria,
organizada por Eugénio de Andrade.
[19] Usamos aqui o conceito
de “metafísica” não como oposição à “física”, matéria e ciência, mas no sentido
do que transcende a “física”, daquilo que é espírito e cultura da Humanidade.
[20] Em
notas ao texto delineámos as pistas de desenvolvimento e aprofundamento desta
investigação, deixando para um outro e volumoso trabalho, a organização
sequencial das citações completas extraídas das obras em análise, classificadas
em referência aos conceitos imbricadas na categoria do ambiente, de modo a
permitir a ligação do extrato à obra em referência e desta ao conjunto das
questões em análise. Enfim, esta “compilação” é, para retornar à terminologia de
Eco, também um proto ensaio, mas com a diferença de que os textos em causa não
estavam publicados num contexto da relação entre a Literatura e o Ambiente e
foi necessário investigar para descobrir essa peculiar ligação. Umberto
Eco, na obra Como se Faz uma Tese em Ciências Humanas, escreve:”...pode
haver uma boa tese que não seja de investigação, mas uma tese de compilação.
Numa tese de compilação o estudante demonstra simplesmente ter examinado
criticamente a maior parte da «literatura» existente (ou seja, os trabalhos
publicados sobre o assunto) e ter sido capaz de expô-la de modo claro...,”pág.
25. O que vale igualmente para uma obra de ensaio.
Sem comentários:
Enviar um comentário