2001/2017
Autor
© António dos Santos Queirós
ISBN 978-972-8659-41-7
Conteúdo
©ANTÓNIO DOS SANTOS QUEIRÓS
Centro de Filosofia. Faculdade de Letras da Universidade
de Lisboa
Alameda da Universidade 1600-214, Lisboa Portugal
adsqueiros@gmail.com
T.
910506370
A emergência da questão ambiental no mundo contemporâneo é indissociável do
nascimento da sociedade de consumo e da poluição generalizada, que corresponde
à expansão económica do pós-guerra no mundo ocidental e nas metrópoles da Ásia,
Pacífico e da América Latina, mas também nos países socialistas de Leste.
O volume de produção das mercadorias atinge uma dimensão paroxística. Todas
as lógicas tradicionais da vida social e da identidade nacional são subvertidas
pelo determinismo da produção mercantil estandardizada
que exige produzir cada vez mais e mais barato o mesmo tipo de voláteis
mercadorias em qualquer parte do globo, representando valores de gastos
energéticos e de recursos naturais que ameaçam exaurir o planeta, suportados
por níveis de consumo brutalmente desiguais no interior de cada nação e entre
os países ricos do Norte e os países dependentes do Sul.
A cultura desta civilização insustentável é de matriz urbana, mas agora ao
nível das megacidades, isto é, são os valores e produtos gerados na grande
metrópole que prevalecem, sendo a cultura cosmopolita e, neste sentido,
tendencialmente hegemonizadora e unificadora da conduta e do pensamento. A
cidade é uma mancha urbana cujo perímetro de influência chega à base das montanhas
e ao limiar das charnecas, ali encontra os velhos que resistem ou o deserto
humano. A “massa crítica” das sociedades contemporâneas concentra-se na urbe e
o retorno ao campo não é acompanhado por um processo global de desconcentração
económica ou administrativa, antes resulta de atos singulares, significativos
do mal estar do cidadão e do seu desejo de sacudir o ambiente sufocante das
grandes urbes. Surgem cidades de dimensão média, capitais regionais que se
expandem aos concelhos vizinhos, mas a aldeia, com a sua base agrícola autónoma
e a sua identidade cultural, falece lentamente e, com esta perda, o
“bicho-homem” perde o seu território e a sua diversidade, fontes primordiais da
natureza humana, que lhe permitiu triunfar da extinção e perpetuar a sua espécie
e as suas culturas.
A generalização de centros urbanos macrocéfalos, a desumanização da
paisagem rural, a metamorfose das cidades em labirínticas metrópoles, o consumo
alucinante, produziram os seus reflexos não apenas na biosfera mas também na
esfera cultural e no domínio literário, contribuindo para a crítica do
Modernismo e o nascimento do Pós-Modernismo, em paralelo com a continuidade de
outros códigos literários mais antigos, que se transmudaram nas neo propostas
realistas, expressionistas, barrocas, etc., acompanhados pela multiplicação de
inovações artísticas mais restritas e de incontáveis idioletos.
Neste contexto evolutivo, ocorre o salto no
pensamento ambientalista, de forma clara e universal a partir da década de
sessenta, quando diversas obras e autores se tornam referência internacional,
como veremos mais adiante e são revalorizados os textos premonitórios de outros,
bem anteriores.
Os anos oitenta conhecerão uma outra etapa no
desenvolvimento de reflexão ambientalista, que se caracteriza pela coexistência
de um arco-íris de conceções que emergem nas expressões culturais das elites
mas também das camadas sociais ditas “de massas”, com particular acento na
juventude. Como as nossas “lameiras” ou “prados de lima” é um rio que brota, não
se sabe bem de onde, e cria um leito de bacia para onde convergem diversas
nascentes, reparte-se finamente para se cruzar de novo em múltiplos sentidos,
tomando sempre novas qualidades e regressando a um outro leito comum que
continua a correr e a procurar a foz de outras correntes e o grande mar onde se
mistura hoje a informação, a ciência, a propaganda e a publicidade, o apelo dos
indivíduos, o pensamento cosmopolita e a multiculturalidade.
Admiráveis anacronismos, escrita de filósofos
mas também de cidadãos comuns, que parece desagregar-se nas suas múltiplas
cambiantes apocalípticas ou redentoras, vivificadoras de velhas e novas utopias,
do pequeno como ideal do equilíbrio ambiental, do equilíbrio como símbolo do
belo, isto é, da pureza moral, dos mitos regeneradores da tecnociência ou do
regresso à natureza e ao primitivo, por vezes radical e anti-humanista,
paradoxalmente próxima da profecia e do limiar de um novo paradigma científico,
que já não funda o progresso técnico e científico na base das disciplinas
tradicionais mas no emergir do conhecimentos científico integrador, mas capaz
de empolgar renovadamente massas humanas de milhões, a generosidade proverbial
da juventude, a sensibilidade das mulheres, depositárias de todos os mitos
órficos.
Admiráveis anacronismos, formas de luta que
pareciam ultrapassadas regressando às praças, terríveis visões e moderníssimos
recursos tecnológicos, antiquíssimas procissões e rituais, tudo posto ao serviço da nova causa,
enquanto, no terreno da epistemologia, a relatividade das leis científicas é
sedimentada em torno de um eixo aberto
de conhecimentos interdisciplinares que, mutuamente, se suportam, justificam,
ampliam e aprofundam, a física dos seres e das coisas ligados pela relatividade
geral e a visão quântica. Admiráveis anacronismos, como se a espuma dos dias cristalizasse
repentinamente, na peneira empunhada por mil mãos, hábeis, frágeis, maduras e
rudes e ali depositasse o que, afinal, permanece de valioso nas nossas culturas
comuns, depois de longos anos de milenário afastamento.
O paradigma da especialização científica e
tecnológica, que fundamentava o mito do crescimento irrestrito, sofreu
sucessivos abalos e abriu brechas, por onde irrompem novas abordagens das
relações entre o ambiente e o progresso, de onde emergiu o conceito da
sustentabilidade, com um valor científico interdisciplinar mas também uma
dimensão de ética social.
Mas ao
dizê-lo, não afirmamos que a razão ambientalista moderna representa o triunfo
da consciência comunitária e da ética da vida sobre o indiferentismo e a
barbárie dos tempos, dizemos apenas que é contra o vazio ético, a selvajaria e
a indolência sociais que ela se manifesta, recusa a morte, o sem sentido e a
noite da nossa civilização, e, ao fazê-lo, penetra todas as esferas do pensamento
humano e da(s) cultura(s), obriga mesmo à reinterpretação dos textos mais
conservadores, os livros sagrados de todas as religiões e o modo de entender as
suas doutrinas, enfim, questiona os principais paradigmas político-ideológicos
novecentistas que o marxismo e o pensamento
demoliberal ofereceram ao nosso século.
A literatura foi instrumento e objeto desta
formidável mudança, ainda em pleno curso.
Indizível
e invisível foi a crise ambiental, encarada globalmente, durante quase todo o
período contemporâneo que temos vindo a analisar, não merecendo então, dos
sistemas científico e educativo e dos principais órgãos de comunicação social,
o relevo que hoje tem.
O
pensamento etnocêntrico, que predomina na filosofia política, consegui mesmo
justificar moralmente as guerras de agressão e conquista, em nome da prática de
uma ética individualizada e utilitarista.
A visão
trágica e intemporal do Menino de Sua Mãe, de Fernando Pessoa, surge no
nosso panorama literário como um lamento singular contra as desgraças da
guerra.
“... No plaino abandonado
Que a morna brisa aquece,
De balas trespassado,
_Duas, de lado a lado_,
Jaz morto e arrefece...
O menino de sua mãe.”[1]
A 1ª guerra mundial, apesar da sua trágica
mortandade, que sangrou até à inacção os Corpos Expedicionários Portugueses na
Flandres e em África, não gerou, na época, nenhuma expressão significativa de
protesto por parte dos artistas e escritores portugueses,
senão no manifesto pessoano contra os senhores da Europa, que lhe é posterior.
Ao contrário e comungando do momento de emoção nacionalista, o próprio Jaime
Cortesão, que participou como militar no conflito, escreveu exaltados
versos ao soldado desconhecido!
Mais tarde, a consciência da tragédia ecológica da guerra surge nos nossos
escritores não apenas entendida no massacre da vida humana, mas
premonitoriamente associada à perceção da gravidade dos problemas da poluição
que a conflagração engendra. José Gomes Ferreira é autor de um notável conjunto
de poemas, contemporâneos da guerra civil espanhola e que, como ela, visionaram
o holocausto do conflito moderno, retrato metamorfizado de um mundo onde
campeiam os fantasmas das suas vítimas e as violências da opressão social.
“ Terra seca
em que só o
drama dos homens
povoa as
árvores e as pedras
de
imaginação de cinzas,
e transforma
o mundo num planeta podre
da carne de
todos os mortos...”[2]
A poesia de Carlos de Oliveira
transporta-nos para um cenário onde jazem montanhas de cadáveres deixados pela
confrontação, pressentidos no sinistro trabalho dos vermes que os consomem. E
poluições invisíveis, como “o caruncho“, sinais de um mundo alucinado pelas
indústrias da guerra (“Vulcanos temíveis”) e pelos financeiros de…“Wall
Street”.[3] Uma realidade oculta que lança para o futuro sementes
corrompidas, que não permitirão que a vida se renove, semeando o desespero, a
loucura e a esterilidade…No Pesadelo visionado de uma terra nua e morta pela
poluição e a guerra total:“…Terra, vista dos astros, morta e nua:/Na luz de
azebre flutua…”Imagens sinestésicas e tragicamente premonitórias, que um
satélite atual registaria, das manchas de poluição atmosférica e da devastação
das florestas…
“ … E a
nuvem cor de verdura apodrecida,
forma de
névoa sufocante,
vai,
gradual, tornando dúbia e hesitante
a hipótese
da vida”. [4]
A
consciência clara de que a crise ambiental atravessa todas as fronteiras e é
universal, ameaçando “sujar“ todo o planeta e condenar todas as comunidades
humanas à impotência face ao holocausto da guerra e da poluição.
“ Lá onde é
possível, mais
que em
qualquer outro chão do espaço sujo,
erguer sobre
alicerces excecionais
a Pátria do
Refúgio!”[5]
“…Na insólita
fortuna da desgraça,
à luz do
cogumelo cor de fogo
que
vitrifica areias do deserto
…à luz que vem
oh só em
poeiras inofensivas, rezo
a mim mesmo
para não perder a memória,
por vós,
para que saibais sempre lembrar-vos
de que tudo
se perde onde se perde a paz,
e primeiro que tudo se perde a liberdade…”[7]
Interessa-nos sublinhar os versos finais
pelo que eles contêm de lúcida compreensão da natureza extrema da guerra, já
que o “estado de guerra” permite suspender as mais democráticas constituições e
anular os seus direitos e liberdades fundamentais, enunciando um novo
imperativo categórico mais além do significado político do imperativo kantiano
da “paz perpétua”, como um dos fundamentos da nova “razão ambiental”.
Na linha de denúncia das novas
tecnologias nucleares e de condenação dos efeitos da guerra foi escrito o poema
emocionado de Egito Gonçalves, a indignação contida em patéticas metáforas,
perante o horror e martírio da condição humana em Hiroxima e Nagasáqui
…”durante alguns segundos correu o esqueleto./Mas a rua já não estava, estava toda
no ar…”[8]
Tal como os versos de António Gedeão“...As
rubras flores vermelhas não são papoilas, não./ É o sangue dos soldados que
está vertido no chão…”[9] Na poesia de
Casimiro de Brito encontramos o questionar do progresso científico antinatural e
da sua expressão mais brutal, a guerra tecnológica: “Terra viva”,
rosto constelado de frutos deformados,
sacrificada ao deus ex-máquina, as
máquinas perfeitas de fazer guerra; ”… lâminas de brasa viva, abrasando o
rio, as casam, as searas e o rosto anónimo de Miko Taka, cidadão de
Hiroxima”!...“Terra ensanguentada, devastada…”...mas não morta! [10]
Num tempo que vivia já a guerra colonial, a censura obrigava os poetas a
falar como se de outras guerras se tratasse e a deitar a mão a todas as figuras
de estilo, no caso, a metonímia da resistência dos homens transfigurada na
resistência simbólica da terra ao impacte ambiental das mais modernas armas
tecnológicas e o labor contínuo e silencioso da vida vegetal como
imagem-semente da paz que germinará.
“…As sementes no entanto prosseguem
em seu ofício
de
liberdade. Indiferentes
aos
mecanismos
da usura e
da guerra. Operários
da paz
no centro da terra.”[11]
E a condenação das guerras de conquista (onde é identificável a guerra
colonial) e da ideologia belicista, corporizada no mito da glória, do poema com o mesmo nome e
simbolicamente referenciado à propaganda hitleriana. A censura e a repressão
policial mostraram-se intransigentes no que respeita à guerra em África.[12] Mas não deixa de ser motivo de interrogação, mesmo depois
de conquistada a paz e a liberdade política, o doloroso e lento aparecimento de
obras literárias sobre esta temática, até que, no final de década de 70, a
catarse se desencadeia avassaladora; factos históricos a merecerem uma reflexão
mais profunda que mergulhe na “consciência nacional”, e nos seus fantasmas coloniais,
que parecem atravessar, obliquamente, todo o leque ideológico da direita à
esquerda. Neste contexto se destacou a trilogia de António Lobo Antunes, Memória de Elefante, (1979), Os Cus de Judas, (1979) e o Conhecimento do Inferno, (1980). E
surgiria, já em 1995, o romance Nó Cego,
de Carlos Vale Ferraz, pseudónimo de Carlos Matos Gomes.
Foi à margem do panteão dos escritores consagrados, mas também dos que
então protagonizavam a renovação cultural das letras portuguesas, que
emergiram, para o grande público, clandestinas ou não, as obras dos
poetas-militantes Manuel Alegre e José Afonso.[13] Recordemos, de entre outros, os versos panfletários.
“Já lá vai Pedro soldado…”[14] e “…Lá no Xepangara…”[15]
Mas os primeiros romances e novelas, críticos da guerra, foram escritos e
publicados antes da revolução democrática iniciada em 25 de Abril de 1974.
Álvaro Guerra escreve, sucessivamente, O Disfarce, 1969; Memória,
1971; O Capitão Nemo E Eu, 1973.
Fernando Assis Pacheco, Cuidar dos Vivos, 1963; Câu Kie : Um
Resumo, 1972. Os contos de José Correia Tavares, Três Natais, datam
de 1967; os de Mesquita Brehm, Despertar da Consciência, em 1962; e o
poeta, morto na guerra, em 1965, José Bação Leal, autor de Poesias e Cartas,
publicadas em 1971.
Do outro lado, na apologia da guerra, destacaram-se Fernanda de Castro,
Homem de Mello e Couto Viana.
No período em análise, o formidável desenvolvimento da ciência e da técnica,
sob a base da revolução tecnocientífica e o progresso da democracia política e
social, criaram uma expectativa generalizada de advento de um mundo de bem-estar
e paz, logo ameaçada pela guerra fria mas renovada continuadamente pelo estado
de equilíbrio relativo entre as grandes potências e o desenvolvimento da atividade
diplomática e das instâncias de cooperação e decisão internacionais.
Neste contexto sociopolítico emergiu, em paralelo com os biólogos,
geógrafos, físicos e agrários empenhados na proteção da natureza, uma nova
classe de cientistas e técnicos capazes de entender toda a complexidade e
importância do mundo rural e da sua paisagem humanizada, sob a designação comum
de paisagistas. Recordemos o pensamento de um dos seus mais ilustres representantes:
“É tempo de
afirmar que se a cidade é indispensável à organização da sociedade e ao
progresso da humanidade, se a indústria muito tem contribuído para facilitar a
vida e lhe dar conforto, é da paisagem rural que depende a sobrevivência da humanidade,
porque é ela com o mar, a única fonte de alimentos, a única fonte de água
potável, e o último suporte de atividade biológica autónoma e equilibrada,
indispensável à continuação da vida na terra. Por isso a atividade da Sociedade
Rural é a única que continua a ser obrigatória, sendo todas as outras facultativas,
quer a sociedade urbana-industrial se aperceba ou não desse facto.”[16]
A revalorização do mundo rural surge assim depurada de qualquer sentimento atávico
e enquadrada pela preocupação de introduzir no campo, de forma harmoniosa, toda
a mais-valia científica da época. Encontramos na literatura uma forma
particular dessa cosmovisão, a do reencontro com a terra e o homem do campo,
como em Irene Lisboa e Miguel Torga; a par da crença nas potencialidades do
desenvolvimento técnico científico, entendida como capacidade de realizar os
mais velhos sonhos humanos e triunfar da morte, que atravessa os versos de A.
Gedeão e Jorge de Sena.
A condição humana: filhos da terra
(e do mar) e da sua agricultura
Tomemos os versos de Irene Lisboa.
“Quem
não sai da sua casa,
Não
atravessa povos, montes, vales,
Não vê as
cenas bíblicas das eiras,
…Cria mil
olhos para nada...” [17]
São os mil-olhos do Poeta e é nesta linha que evoluiu a ficção neorrealista,
mas o seu fio condutor, a Terra e o Homem, não é exclusivo dessa corrente
literária, antes constitui um dos arquétipos que percorre as obras mais
representativas da nossa literatura contemporânea. Vejamos como se manifesta
essa constante, através da diversidade dos autores e textos.
A propósito do Diário escrito por Torga, a professora Maria Lúcia
Lepecki assinala o “…encontro eucarístico, também ele nutricial e energético…do
escritor… com a Terra Mater”.[18] E enfatiza:
“Vendo e dizendo a Terra Mater, Torga escreve a sua peculiaridade de
português, continente e conteúdo da sua peculiaridade de pessoa. Faz a ponte da
comunhão com o sofrimento do seu povo, com o que ele foi, é e poderá vir a
ser”.
Num contexto político em que se desfazia o desacreditado sonho republicano,
penetrado já pela atmosfera repressiva do salazarismo, Rodrigues Miguéis
revela-nos um país…sempre inconformado com a sua estreita tira sufocante, a
parvónia terna e triste, dominada por um ambiente de loucura contagiosa e de
pulsão suicidária, uma das vias possíveis para escapar a esse universo
concentracionário e onde o exílio e a emigração são a outra saída, na 3ª classe
dos expressos e dos porões dos navios. [19]
Mas aquele estado de alma é também um reflexo do sentimento de exílio
interior, da angústia filosófica do indivíduo solitariamente colocado perante o
cosmos e que procura encontrar um sentido para a sua existência, Rodrigues
Miguéis, antigo leitor de Schopenhaur e Espinosa, intelectual solidário com
essa raça de corações partidos pelo
mundo, que nunca regressou nas caravelas dos Lusíadas e peregrinava pelos
orientes na pele de Fernão Mendes Pinto.
O personagem principal das suas aventuras e desventuras, emanação autobiográfica
do próprio autor exilado, é o anti-herói dostoevskiano, é o kafkiano inocente-culpado
de Uma Aventura Inquietante, o estrangeiro, o métèque de quem a
ordem burguesa desconfia sempre, ciosa da sua tranquila prosperidade ou o
herói-absurdo, culpado-inocente que se evade pelo crime sem sentido, em Páscoa Feliz.
A experiência estética da natureza, como temos vindo a assinalar, é permanentemente
vivida em duas dimensões: a ecologia da paisagem e a metafísica do ambiente. E
a natureza humana numa dupla metamorfose, órfica e proteica.
Eis o homem português que se revê no percurso individual do romancista,
criatura solitária no caos universal, duplo exilado que procura o seu destino
metafísico nas quatro partidas do mundo e nelas sofre a outra ausência, da
paisagem da sua pátria e da infância de Lisboa, a que regressam sempre, mesmo
no burburinho cosmopolita de Nova Iorque, em Um homem enfrenta a morte com meia cara.
O exilado, confortado com a vida tranquila e próspera que transpira das
pequenas metrópoles belgas, enriquecidas pelos negócios e pela cultura, procura
sair da sua condição pela porta do amor em Léah
, mas recua, no último momento, com medo de se perder quando se entregava
totalmente. E é pelo sonho, que ainda em terra estranha se evade, regressa a
Lisboa e à natureza, aos ares do cimo da Pena e à adolescência em Sintra. No dizer
de Eduardo Lourenço, o passado sufocante, a aventura exaltada e amarga do
exílio, confundem-se e anulam-se numa reconciliação suprema, através do
regresso à cúpula da Pena, êxtase vivencial que é o oposto do crime e da
loucura, sublimação derradeira do destino do expatriado. Rodrigues
Migueis,“…morto de solidão às portas do Paraíso, que sempre buscou para fugir a
ela e se encontrar consigo.” [20]
Subamos à Penha, com Rodrigues Migueis, para exorcizar as tristezas do
exílio“ … a ouvir suspirar esta
brisa do Atlântico, cheia de longes, de Índias, de ilusões, de apelos, quimeras, sereias e mundos.”[21]
E é o humanismo pessimista de Afonso Lopes Vieira que nas Écloga de Agora nos remete para a
diáspora nacional, o Mar, por oposição à terra madrasta, caminho de exílio e de
regresso das vidas frustradas dos emigrantes.[22]
“... Olha os
rebanhos trágicos que emigram
para campos
longínquos,
abandonado
aos mares,
…até que o
desamparo e a fome nova
os torne a
remeter à fome antiga…”[23]
Casais Monteiro resume no seu percurso poético a passagem de uma relação
solitária e nocturna com a terra, em que “…nem mesmo o apocalipse
concentracionário e arrasante da guerra 39-45 conseguiu arrancar-lhe mais do
que apóstrofes às vítimas...”, para a consciência da relação universal com todos
os seres, elemento fundamental, no plano filosófico e ético, para o despontar
de uma consciência ambientalista.[24] A conceção, expressa em Considerações Pessoais, de que a poesia é a “…transcrição em vozes
da terra, imprecisas e incertas, duma sublimidade que transcende o poeta…”[25]. Arquétipo platónico matizado com uma reminiscência
goethiana:”…a de que o cume da vida atinge-o aquele que percorre o desespero e
lhe sobrevive.[26]E de “…saber-se que se está com toda a gente mesmo
quando (e às vezes, sobretudo) se está só.”[27]
Finalmente, como testemunho e apelo, a confissão direta do próprio poeta.“…
AH! Só quem veio das trevas e das noites escuras/pode amar assim o imenso mundo
do sol”![28]
Essa noite que para Páscoas significava a Noite Primitiva, a Noite virgem-mãe
do Criador”…Aquela Noite universal de outrora/Donde tudo descende.”[29]
Com Aquilino…
“É o mesmo
povo, que vive em terras onde... nunca Cristo ali rompeu as sandálias, passou
el-rei a caçar, ou os apóstolos da Igualdade em propaganda. Bárbaras e agrestes,
mercê apenas do seu individualismo se têm mantido, sem perdas nem lucros, à
margem da civilização…”[30]
Celebradas na sua biodiversidade, são as Terras do Demo, em que...”Quando se
ergue uma lancha em terra húmida de lameira, acontece fervilhar aos nossos olhos
toda uma fauna prodigiosa multicor.”[31]
Personagens e ambientes que se erguem nas páginas de Ferreira de Castro
como “pão levedado” entre o contraste da
paisagem e as almas que as povoam.“...
Apanhei o contraste da paisagem e procurei surpreender a atmosfera das almas...”[32]
“...O Minho do emigrante e da religião pagã...” e os cidadãos das Beiras, forja da raça; algarvios de sangue mouro,
cidadãos do Porto... na obra de Cortesão. E sempre, a relação
homem-natureza.“... Trás-os-Montes e o Marão, espécie de província
poética-fragosa e titânica, cujas Fisgas são «estranha panóplia de longas
lanças de xisto» - têm dois génios tutelares... (...) Camilo e Teixeira de
Pascoaes….”[33]
A epopeia torguiana do Homem do Douro:“... Ser nesse chão árido e hostil um
novo criador de vida...”[34]Dos ceifeiros de Redol na Lezíria e no
Alentejo:“...Vai para o sol-posto, mas nos seus corpos já o dia morreu...”[35] Como no Cerro
Maior, de Manuel da Fonseca:
“... O
manajeiro olhou o relógio…A labareda do sol derramava-se sobre as espigas
amarelas e era uma brasa viva nas costas dos ceifeiros... Muito devagar, o
manajeiro guardou o relógio…E, ao darem com os olhos no raso da seara,
entrou-lhes pela vista aquele amarelo de lava derretida. Ficara, por momentos,
cego, de cara enrugada, dentes à mostra...”[36]
Epopeia e tragédia, da nação e do homem português, na terra e no mar, com Os Pescadores de Raul Brandão:
“...O arrais é encontrado ao outro dia morto no
cabedelo. O mar partiu o barco pela quilha, enterrando na areia a carcaça
intacta da ré, e torceu-lhe o braço como quem torce uma corda. Mas nem o mar
nem a morte conseguiram arrancar-lhe o leme das mãos crispadas…”[37]
A condição humana: triunfar da morte.
Prossigamos agora para a outra dimensão do encontro com a paisagem
humanizada, a celebração do engenho humano no respeito pela sua inserção
harmoniosa na natureza, numa metafísica que procura elevar a condição humana
para além da precariedade da obra humana e do destino individual, numa
perspectiva heroica e estoica da existência, quando o poeta António Gedeão
proclama, “o sonho comanda a vida e é
..ouro, canela, marfim florete de espadachim…… cisão do átomo, radar, ultra
som, televisão… desembarque em foguetão
na superfície lunar…”[38]
E Jorge
de Sena, no poema A Morte , o Espaço e a Eternidade, exorciza a morte, dizendo que “…
não foi para morrer que nós nascemos…”
…desde que
anfíbios viemos a uma praia
e quadrúmanos
nos erguemos. Não.
Não foi para
morrermos que falámos,
que
descobrimos a ternura e o fogo,
e a pintura,
a escrita, a doce música.
Não foi para
morrer que nós sonhámos
ser imortais,
ter alma, reviver,
ou que
sonhámos deuses que por nós
fossem mais
imortais que sonharíamos…”[39]
Justificam o remate épico de ambos os versos. “O Mundo Pula e Avança “ e “
Não há limites para a Vida”! Cada qual a seu modo, um professor de Ciências da
Natureza, o outro, engenheiro-poeta, apesar do testemunho crítico sobre a época
contemporânea e os seus valores, partilham da esperança que a cultura e a
civilização humana, várias vezes milenárias, depois de na nossa época terem
criado as condições tecnocientíficas para um mundo de progresso e abundância,
possam também encontrar um projeto de sociedade e ética social que torne
realidade o advento desse futuro comum, hoje tão desigual e distante.
Este princípio, de restabelecer o equilíbrio entre a condição social do
homem e o seu quadro natural humanizado pelo trabalho e a atividade científica,
surge noutros autores como um autêntico plano de reforma do modo de produção
social, de filosofia política e da sua ética.
Obras premonitórias
Raul Brandão, no final do seu livro Os
Pescadores, escreveu um detalhado programa da proteção dos recursos
marinhos e de modernização e democratização do sector, que permanece atual: “Proteger eficazmente o planalto…Regulamentos severos…
Proibir…a pesca…durante a desova…Vapores de arrasto poucos…Aperfeiçoamentos
técnicos…”[40] E estávamos ainda em … 1923!
Ao mesmo tempo, Afonso Lopes Vieira questionava os responsáveis municipais
sobre a evolução contemporânea do urbanismo, produzindo reflexões de uma
prodigiosa lucidez e dramaticamente atuais.[41] Dirigindo-se aos autarcas de Coimbra, em particular,
recomendava- lhes”…que tivessem cuidado em que a alma da cidade, que guarda a
sua expressão no conjunto panorâmico e arqueológico, se não embaciasse pouco a
pouco, até ficar muito menos expressiva…”[42] Para concluir com uma surpreendente e radical
advertência. De que seria preferível que “…as indústrias de Coimbra se
extinguissem, a que secassem os choupos das margens do Mondego.”[43]
Mais adiante e em defesa do modesto mas precioso Arco de Almedina, relíquia
das portas medievais da muralha, denunciava a confraria dos especuladores
urbanos“…Mestres destruidores de Coimbra… delirantemente inspirados no imitar
do ideal da civilização hodierna - A Baixa de Lisboa …”, verberando a “…miséria da educação que não permite
perceber…como todos nós, os Europeus, de há tanto sabemos, que mesmo acima do
seu valor arqueológico, um monumento nos é caro pela sua adaptação no aspeto em
que se emoldura. Pode ser pobre e ser precioso. Precioso pela integração do seu
vulto na paisagem”.[44] O seu “pessimismo de inteligência“, expresso no
libelo acusatório contra o economicismo e o nepotismo, surge-nos hoje trágica e
universalmente premonitório, bastando escrever em vez da cidade do Mondego o
nome de qualquer das grandes e pequenas metrópoles que concentram a população
contemporânea.
A apóstrofe do poeta surgiu nove anos antes das conclusões da Conferência
Internacional de Atenas sobre a Restauração dos Monumentos, vulgarmente
conhecida como Carta de Atenas. Publicada em 1931.[45] A transcrição de alguns dos seus princípios e
sobretudo do capítulo dedicado à Valorização
dos Monumentos permite - nos evidenciar a oportunidade das preposições do
poeta.
“ A
Conferência recomenda respeitar, na construção dos edifícios, o carácter e a
fisionomia das cidades, sobretudo na vizinhança de monumentos antigos cuja
envolvente deve ser objeto de cuidados particulares.
Mesmo em
alguns conjuntos certas perspectivas particulares pitorescas devem ser
preservadas.
Há também
lugar para estudar as plantações e ornamentações vegetais convenientes a certos
monumentos ou conjunto de monumentos para lhes conservar o carácter antigo. Ela
recomenda sobretudo a supressão de toda a publicidade, de toda a presença
abusiva de postes ou fios telegráficos, de toda a indústria ruidosa, mesmo as
altas chaminés, na vizinhança dos monumentos de arte ou históricos.”
A Conferência constata mais adiante as ameaças constituídas pelos “agentes
atmosféricos”, no quadro da vida moderna e prescreve um trabalho interdisciplinar
e de cooperação internacional, para evitar a degradação dos monumentos e
proceder ao seu restauro e conservação com materiais adequados, aplicados com
sensatez, e enfatiza o papel da educação das populações.
Tal é o programa do Guia de Portugal, obra com a qual iniciámos este
trabalho e de que extraímos a próxima reflexão crítica de Raul Proença.[46] Depois de reconhecer a pobreza monumental de Lisboa e
a frieza da geometria jesuítica ou pombalina, pontuada embora pelos rendilhados
de pedra manuelina dos Jerónimos e da Torre de Belém, ou pela magnificência do
Terreiro do Paços e do portal de S. Vicente, é o enquadramento natural da
cidade no estuário do Tejo que o autor valoriza. E deste contexto extrai todo um programa de reabilitação da
cidade, que antecipa os princípios da Carta de Atenas e os projectos dos arquitetos
paisagistas contemporâneos.[47]
O protesto de Ruben A. contra a destruição da Alta de Coimbra, pelo
camartelo municipal do “estado novo“.
“…De uma
cajadada matavam a casa do Eugénio de Castro, a velha Associação Académica na
Bastilha, o Pirata, as ruas pitorescas como mais não havia na Europa. Os
aselhas e os pataratas de Lisboa, aliados aos colaboracionistas traidores,
avançavam metodicamente na destruição da coisa mais bela do nosso património -
o musgo quente de nomes que por ali viveram e sentiram”[48]
Mas se fosse preciso identificar um poeta da causa ambientalista, no
sentido que atualmente este conceito comporta, de crítica ao modelo de desenvolvimento
dominante, de projeto de mudança profunda da sociedade humana no sentido da
democracia participada e da solidariedade entre os homens e destes para com a terra
e todos os seres da natureza, de defesa do património natural e cultural, a escolha
recairia seguramente sobra a escrita e os versos do poeta timorense Ruy
Cinatti.
Recorremos de novo ao seu livro Paisagens
Timorenses com Vultos , para a documentar, na linha do que anteriormente
ficou expresso a propósito dos versos Parâmetro
Ecológico, agora com referência ao património cultural.
“ Um Património
Sonegado
São braços
cruzados
de Cristo na
cruz
o que em
Timor fica.
As pernas, a
face,
o tronco
esculpido,
remoçam as
salas
de várias
famílias
metropolitanas
ou saldam as
dívidas
por engano havidas
nos
antiquários
de países
vários…”[49]
Cabe aqui uma referência a Alberto Osório de Castro e ao seu livro A Ilha Verde e Vermelha de Timor,
descoberto por Cinatti, que nele reconhece um primeiro e valioso contributo para
a conservação da floresta timorense e da sua biodiversidade.[50] Esta obra, além de abundante informação científica e histórica sobre aquela ilha, contém uma
visão geral acerca das Índias Orientais, nesses mesmos domínios. Também o
problema da captura excessiva e da ameaça de extinção de algumas espécies com
valor industrial, provocados pelo uso brutal das tecnologias modernas, surge com
grande antecipação na obra de Raul Brandão, emblematicamente representada pela
Pesca da Baleia.
A descrição dramática desta atividade, justificada como elemento vital para
a sobrevivência dos pescadores do Pico e das Lajes, surge no primeiro quadro do
texto.
“…Deixam um
casamento ou um enterro em meio, um contrato ou uma penhora, as testemunhas e a
justiça e correm desesperados a arrear à baleia...”[51]
Vale a pena alongar a citação do texto de Raul Brandão sobre as baleias,
porque ele é demonstrativo de um profundo conhecimento científico do seu ciclo
natural, mas sobretudo pelas reflexões de carácter ambiental e valor ético que
o acompanham, no que respeita aos conceitos do humano e animal.
Sublinhamos, também, certos passos da reflexão do autor, pelo que eles
contêm de irrecusável preocupação ética, para passarmos, depois, á sua crítica
ao massacre industrial da espécie pelos baleeiros sem pátria que ostentam a bandeira
dos EUA, retrato-tipo dos barcos-fábrica e das companhias multinacionais que
ameaçam extinguir a fauna e a flora marinhas.
“…A
baleia é um bicho muito tímido…Viajam em grupos de vinte e trinta. É um espetáculo
majestoso reencontrar pela manhã um bando de baleias, resfolgando pela ventas _
é um espetáculo do princípio do mundo…Pastam… Contam que a mãe acompanhada pelo
filho…é mais fácil de subjugar, chegando o ambaque (baleia preta) a deixar-se
matar…Quer dizer: esta coisa monstruosa e zincada, com óleo na cabeça, não só
come e digere, não só dorme e digere-
é capaz de ternura e sacrifício”... [52]
Creio que
hoje só os barcos dos Açores a caçam pelo processo primitivo, que é muito mais
perigoso. Os americanos usam um canhão…A baleia é apanhada, suspensa, cortada e
derretida em grandes caldeirões que fumegam a bordo. Essa aventesma besuntada,
fedorenta e resumando óleo, todo o dia navega, vomita fumo e cheira que tolhe, e
mais parece um açougue ambulante que um barco…E isto nunca mais cessa: o navio
enche o mar de fedor e de sangue e lá dentro a caterva derrete sem cessar…”[53]
Triunfar da morte
Prossigamos, até encontrar, num sábado de Aleluia de 1961, Os Sinais de Fogo, do poeta Jorge de
Sena, mas agora como heroica odisseia humana sobre a terra.[54] A síntese admirável da nossa relação original com as
cadeias evolutivas da vida e com os antepassados comuns, habitantes do mar e
das florestas pantanosas, e do nascimento da condição humana como produto
combinado do trabalho, da comunicação e da expressão simbólicas, que a
linguagem e a arte representam.
“... A MORTE
, O ESPAÇO , A ETERNIDADE
ao José Blanc de Portugal , em memória
de
um seu ente querido que eu muito
estimava…
“De morte
natural nunca ninguém morreu…
... Não.
Não foi para
morrermos que falámos,
que
descobrimos a ternura e o fogo,
e a pintura
, a escrita , a doce música.
Não foi para
morrer que nós sonhámos
ser
imortais, ter alma , reviver ,
ou que
sonhámos deuses que por nós
fossem mais
imortais que sonharíamos…
Reflexão primordial acerca da natureza humana, do carácter peculiar da
espécie humana, gerada pela mesma matriz cósmica que fez nascer as estrelas e
delas emergir a Terra, mas a única que sonhou ultrapassar, a nível da
consciência individual, a lei de bronze da sobrevivência de todas os outras
espécies: os indivíduos têm de morrer para que a sua descendência específica
prossiga e evolua. Por isso, ousámos negar a própria natureza! A referência à
ligação cósmica do homem com o universo.
“…Para
emergirmos livres foi que a morte
nos deu um
medo que é o nosso destino…”
Essa consciência, da morte inevitável, que se
interroga até ao fim acerca do destino inexorável, é a face terrível da nossa
própria liberdade.
“…Não há
limites para a Vida. Não
aquela que
de um salto se formou
lá onde um
dia alguns cristais comeram…”
O retorno aparente do antropocentrismo, em Jorge de
Sena, não significa o assumir do reinado místico ou racionalista do homem sobre
a Terra. Esta condição humana está, na sua poesia, contida pelos traços da
animalidade próprios da existência do ser humano e pelo respeito supremo por todas
as formas de vida, semelhantes e diversas.[55]
…A Vida
Humana , sim, a respirada ,
suada ,
segregada , circulada ,
a que é
excremento e sangue , a que é semente
e é gozo e é
dor e pele que palpita
ligeiramente
fria sob ardentes dedos.
Não há
limites para ela…
À espécie humana, dotada de sentimentos e
ideias, da capacidade de trabalho e da faculdade de se interrogar a si própria,
pertence a epopeia de semear a vida através do Universo. E nessa obra comum, preparada
laboriosamente desde os primórdios da humanidade e que hoje dá apenas os
primeiros e balbuciantes passos no caminho das estrelas, reside a libertação da
lei da morte, que já Luís de Camões celebrou.
“…O Sol , a Via Láctea , as Nebulosas ,
teremos e veremos , até que
a Vida seja de imortais que somos…”
A perspectiva científica dos bioquímicos, da
ecologia global, a que fizemos anteriormente referência a propósito do seu
desconhecido criador, o soviético Vladimir Vernandsky, contida nos versos
“…Fechados sobre a terra, ela nos sendo e sendo ela nós todos”
A morte de Deus sem Apocalipse nem desespero
metafísico, o destino humano, pavor configurado no limite da existência de cada
ser, mas também epopeia nesse singular contributo para que a Vida prossiga e
alcance novos Mundos.
…Para emergir nascemos. O pavor nos traça,
esse destino claramente visto :
podem os mundos acabar, que a Vida
voando nos espaços, outros mundos
há-de encontrar em que se continue…”[56]
E a crença final na Vida, que transportamos na
nossa humana condição, mas que não se resume ao Homem e nos ultrapassa, por ser
como uma espécie de ária de fuga, quase impercetível, que emergiu do silêncio
gelado do Universo em expansão; a vida como capacidade de sentir, desejar,
amar, há-de preencher por si só o lugar dos Deuses e, brotando do nada
universal, ocupar esse espaço e o da Eternidade.
1.4 A magnificação do indivíduo e do seu corpo.
A globalização, na sua dualidade trágica e épica
(porque aprofunda a crise ambiental ao mesmo tempo que atinge o cume da
revolução tecnocientífica), conduziu os poetas contemporâneos ao reencontro,
quer disso tenham consciência ou não, com os temas clássicos do fluir da vida e
da morte, à reflexão sobre os seus múltiplos significados e à renovada tentativa
de instaurar uma qualquer esperança ou alegria breve. E, neste ponto, se
diferenciam outra vez os destinos estéticos: cada círculo poético que é hoje a
obra individual do seu autor original, abriu-se mais (evoque-se aqui a obra de
José Saramago) ou menos, aos novos e velhos problemas sociais, através das alegorias
e das metáforas tradicionais ou dos novíssimos valores simbólicos da imagem e
das suas conquistas formais e estruturais. Ou, então, a opacidade da imagem e o
sem sentido do discurso estético cerrou-se fortemente, tornou-se hermético e
iniciático, quando não proclamou a precaridade e o fim da arte e da própria
possibilidade de comunicar.
Talvez que uma parte substancial da obra mais
recente dos nossos escritores e poetas, a partir da década de 60, cujo final
serve de baliza ao nosso trabalho, se possa interpretar, neste contexto, como
um desafio permanente ao finito destino individual de cada ser, através do amor
pessoal (e da sua dimensão erótica) e do
esforço de recriação literária tendente a
abarcar toda a paisagem natural e humanizada, objetiva e interior, onde
o poeta se transmuda nos elementos naturalizados que compõem a própria matéria
poética: leia-se, por exemplo, As Mãos e Os Frutos, de Eugénio de Andrade, ou Sobre o Rosto da Terra, de António Ramos Rosa. Vejamos, deste última obra,
alguns versos, datados de 1961, do poema Um Caminho de Palavras.[57]
“…Sem dizer o fogo _ vou para ele. Sem enunciar as pedras_ sei que as piso
duramente, são pedras e não são ervas. O vento é fresco; sei que é vento, mas
sabe-me a fresco ao mesmo tempo que a vento. Tudo o que sei, já lá está, mas
não estão os meus passos nem os meus braços. Por isso caminho, caminho, porque
há um intervalo entre tudo e eu, e nesse intervalo caminho e descubro o meu
caminho.”
Encontramos em Fernando Pessoa e nos seus
heterónimos o elo moderno deste fio condutor. Escutemos Ricardo Reis.
“ Coroai-me em verdade
De rosas _
Rosas que se apagam
Em fronte a apagar-se
Tão cedo !
Coroai-me de rosas
E de folhas breves
…E Alberto Caeiro:
“…E quando se vai morrer, lembrar-se que o dia
morre,
E que o poente é belo e é bela a
noite que fica…
Assim é e assim seja…” [59]
Atente-se agora na continuidade temática
presente nos versos de dois poetas, escolhidos entre os seus pares a título de
exemplo, os quais corporizaram a transição entre as décadas de 50/60 e as de 70/80, respetivamente, António José Maldonado e Gastão Cruz.
Do primeiro, a poesia Êxodo :
“ Para onde partiram os camponeses, as aves e os peixes ?
Deixaram os rios e as muralhas das flores desertas,
deixaram os sulcos e os destinos da Terra…“( 1960 ) [60]
Do segundo, a poesia retirada da obra Teoria da Fala:
“…Não penses nas canções da primavera que
duraram o tempo que deviam é do outono o som destas
planícies
destes corpos talvez demasiado
consumidos…
…A beleza que deve então
morrer
dentro da alegria escolherá
ruína terra som melancolia…”(1969) [61]
Ao referir-se aos grupos de poetas organizados em torno da revista Árvore,
que apareceu em 1951, e da publicação coletiva Poesia 61, o crítico literário e
seu companheiro poético, Fernando Guimarães, demarcava assim o seu lugar
histórico-cultural:
“Recusava-se,
pois, não só a imaginação em excesso da poesia surrealista, mas também uma
outra espécie de expansão verbal que resulta do apego a uma construção de
natureza alegórica capaz de provocar, de acordo com as intenções dos neorrealistas,
a segunda leitura de um sentido político ou ideológico.”[62]
Façamos um curto percurso na obra de alguns dos novos poetas da época,
utilizando para esse fim a coletânea de ensaios de um deles, António Ramos Rosa,
denominada Incisões Oblíquas, com data de 1987 .
A poesia de João Rui de Sousa emerge da “noite”, arquétipo do vazio, do sem
sentido e da morte, para celebrar as mais singelas manifestações da vida e da
experiência estética da relação entre o homem e a natureza, mas aqui sem o
bálsamo místico que certas poesias de Sebastião da Gama evocam.[63] Procuremos os versos de Rui de Sousa“…de recordar as
terras orvalhadas/é que se esquecem mortes tão diárias…”[64] Em Albino Martins, poeta da Árvore,
encontramos a unidade ontológica do ser e das coisas, como produto do seu
próprio percurso existencial de relacionamento e metamorfose.“…E tudo
permanece. E tudo é teu./Tu és o sangue, o verão e a pedra…”[65]
Na poesia de Fernando Guimarães, o movimento cósmico de celebração da vida
perante a face da morte. “De
novo crescem as rosas pelo interior da sua forma/ e as pétalas da morte vêm
ornamentar o centro de cada rosto…”[66] Mesmo na poesia de pendor negativo de José Augusto
Seabra se abrem espaços para escassos momentos de harmonia cósmica.“…Viria o
tempo de alongar os remos /Cais desmaiando, proa aguda, vento/dócil aos braços
e ao desejo... “[67]
A unidade cósmica realiza-se em Fernando Echevarria com a abolição dos
conceitos mecânicos de espaço-tempo, o poema como lugar relativo dessa nova reflexão
poética. “Anoitecia/Como nos foi antiga
a luz de agora…”[68] E a opacidade e o sem sentido irredutíveis da poesia
de Pedro Tamen constituem, por vezes, um paradoxo para o real, de súbito transparente
na sua sensualidade.“…E agora:
a tua pele./Revejo: é manso o mar...”[69] Em Alberto de Lacerda o esplendor da vida e da terra
irrompe do próprio amor físico.“…Quem
até ao fundo se perdeu/nos teus olhos de mar e de recusa/viu através da carne o
cântico do mundo...” [70] Mas a sua poesia conhece também “a porcaria e o caos”
do mundo e a violência que campeia entre a espécie humana“…A curva das garras,
a força dos dentes.”[71]
Anote-se, finalmente, que, mesmo os surrealistas, cujas imagens poéticas
são marcadas pelo distanciamento do referencial realidade e por uma maior
opacidade, também eles procuraram esse indizível universal comum a todos os
seres e falar a temática do amor. Vejamos os versos de Mário Cesariny:
“Amor
amor humano
amor que nos devolve tudo o que
perdêssemos
amor da grande solidão povoada de
pequenas figuras
(
cintilantes...”[72]
A Magnificação do Corpo
Um particular aspeto dessa descida às profundezas do ser e da natureza
humana foi a revelação do erotismo, assumido com a desenvoltura que Eduardo
Lourenço assinala. No contexto da crítica
às conceções filosóficas judaico-cristãs, acusadas hoje de serem as
responsáveis pelo antropocentrismo e pelo ego e etnocêntrico modo de estar no
mundo (objeto, mais adiante, da nossa reflexão), importa acentuar, no plano da
sexualidade, que a voz dos poetas se ergueu contra o pudor religioso e a
repressão que, na nossa tradição cultural, lhe está associada.
Basta seguir agora a linha de leitura que Eugénio de Andrade nos sugere, na
última edição da sua coletânea Eros de
Passagem.[73]
À descoberta do corpo, ou como afirma o autor, ao espírito de magnificar o
corpo e as suas pulsões, permaneceu fiel todo um escol de poetas, desde os
simbolistas, como Camilo Pessanha: “Sem
vil pudor! De que há que ter vergonha”? Ou Eugénio de Castro…“Num doido
frenesi, entrar parecem qu’rer/Ela - no corpo dele, ele - no corpo dela!
”Afonso Duarte, companheiro de Pascoaes no grupo da “ Renascença Portuguesa”:
“Seu corpo era uma púbere mendiga,/E ele é que estava pedindo,/Lindo,/O meu
sexo.” O erotismo casto de Fernando Pessoa, poeta do Orpheu: “Apetece como um
barco./Tem qualquer coisa de gomo./Meu Deus, quando é que eu embarco?/Ó fome,
quando é que eu como”? Para a
transgressão de Álvaro de Campos, na Ode Marítima: “Ó meus peludos e rudes
heróis da aventura e do crime!/Minhas marítimas feras, maridos da minha
imaginação!/Amantes casuais da obliquidade das minhas sensações!/Queria ser
Aquela que vos esperasse nos portos”. Ou de António Botto…“Venham ver a
maravilha/Do seu corpo juvenil!…/Anda nu- saltando e rindo”. O mais famoso dos
autores da “Presença“, nas páginas de Régio menos conhecidas: “E em duas bocas
uma língua…,- unidos,/ Nós trocaremos beijos e gemidos,/ Sentindo o nosso sangue
misturar-se”. Ao neo-realismo do poeta-militante José Gomes Ferreira, que
começa um poema dedicado ao desejo, com a frase irónica: “(Finjo que não vejo
as mulheres que passam, mas vejo)”…escritores presencistas e neorrealistas onde
a alusão erótica é contida e recatada:
“…o maduro pomo…”, na metáfora de Carlos Queirós e o “seio de ouro e outro de prata” em José Gomes
Ferreira, são para Torga, afinal, “tetas de donzela”.
É Jorge de Sena, na sua admirável prodigalidade estilística, que reúne e desdobra
os discursos alegórico e direto: “...da
crepitante música tangida, /húmida e tersa, na sangrenta lida/que a inflada
ponta penetrante trila”. Que em David Mourão Ferreira assume a mistura do
requinte intelectual e físico: “ Entre as duas nádegas/o pávido sulco /tem
aroma de áfrica/e de uvas de outubro.“ E atinge em Natália Correia a
desenvoltura: “…abro-te as coxas e deixo-te crescer/duro e cheiroso como o
aloendro. ”Tal como em Maria Teresa Horta... (Maria Velho da Costa e Isabel
Barreno): “...e tu dentro de mim/vais descobrindo vales. Nuno Júdice: “Abre as pernas, ao negro triângulo /acrescentando o
húmido risco entre/ os secretos lábios…”Al Berto: “…sorri ao enumerar os restos
que a manhã encontraria pelo chão/manchas de esperma, ténis esburacados, calças
sujíssimas.”
E reafirme-se, finalmente, que, mesmo os
surrealistas, cujo
universo onírico parece substituir a realidade, também eles procuraram esse indizível universal comum a todos os seres e
falar a temática do amor. Vejamos os versos de Cesariny:“ Amor
/amor humano / amor que
nos devolve tudo o que perdêssemos”.[74]
E, nesta última nota, afirmamos que nos limitámos a selecionar, sem nenhuma
intenção de estabelecer qualquer escala de mérito, apenas alguns poetas,
deixando de lado outros excelentes escritos, suscetíveis de nos fornecerem um
testemunho de igual valia.[75] É o caso do “arquipélago de ensaios” de Vasco da
Graça Moura, no dizer de Eduardo Lourenço, cuja obra poética herda e recrie os
grandes temas da fugacidade da vida, do amor (do erotismo) e da morte (que já
habita tudo o que é refulgência de vida).
[76]
Regressemos agora a outro referencial da Nova Literatura, anunciada pelo
livro Rumor Branco, de Almeida Faria.
Interessa-nos analisar aqui esta obra e a Trilogia
que lhe é posterior e desemboca no romance Cavaleiro Andante como paradigma da presença (ou será imanência?) da questão
ambiental e da crise geral da cultura do ocidente, na obra dos nossos
escritores, na sua expressão mais moderna ou pós-moderna. [77]
Recorramos de novo a Eduardo Lourenço.
“O mundo dos personagens dispersos, mais do que errantes, do romance de
Almeida Faria, não é o dos Gerais de Guimarães Rosa, é o mundo-deserto da
cultura ocidental procurando às cegas uma saída para o sem-sentido com que se
vive enquanto História e Destino”.[78]
“Cavaleiro Andante que foge da Europa e da sua ilusão cultural, foge de
Lisboa que o enjeita”, para encontrar em África e no amor a sua redenção
espiritual. Símbolo de uma família e de um país, que foi de latifundiários, viveu
a mais tardia revolução democrática da Europa deste século e, como ela, viu
perecer os melhores e mais exaltantes sonhos de emancipação social.
Paixão que Óscar Lopes interpreta como reinvenção da filosofia pascaliana, na
linha dos mitos de Prometeu ou de Lúcifer, onde o homem transcende a sua
precária e finita condição e transcende-a sobretudo quando aceita sofrer por
mais do que ele próprio, pela plenitude humana a que todas as revoluções modernas
aspiram através da consumação do seu programa vitorioso.[79] A relação com o pensamento pascaliano surge no
romance através da metáfora de uma Páscoa anunciada pelo sacrifício do corpo de
Cristo, símbolo do humano sacrifício de todos os que, ao longo da História, não
hesitaram em “crucificar” o seu individual e mortal destino, em prole da Humanidade.
Derrotadas embora (as revoluções) e os seus autores ou simples
protagonistas, o que importa afinal é essa procura eterna de um Graal que nos
liberta “do labirinto da morte onde a vida nos depôs sem pedir licença.”[80] É a demanda que conta, como o que dignifica a
condição humana, é “...o Pecado Original...de desobediência à Ordem pretensamente
Natural.”[81]
A crise multilateral do nosso modo de produção, que é nacional, europeia e
ocidental, avaliada na sua dimensão ambiental, surge nesta Tetralogia de
Almeida Faria enquanto revelação e ausência,
quando, numa das cartas da personagem Marta esta exalta os artigos de
Pasolini, lidos religiosamente no “Corriere
de La Serra “, onde “Pela 1ª vez alguém associa, por exemplo, o problema do
aborto ao da ecologia.”[82]
Na Lusitânia dos anos 60 e 70, de que nos
fala Almeida Faria, a questão ambiental era sobretudo uma visão dos “estrangeirados”.
Que significado tem, para o desenvolvimento do nosso tema, a poesia de
Herberto Hélder, poeta órfico (da terra), nesses aparentes passos em volta,
construídos como signo de uma civilização labiríntica (que se confunde hoje com
a própria condição humana), que fragilizou e confundiu a condição do indivíduo,
ao mesmo tempo que elevou o homem, pelo amor, até à morada dos Deuses (
“... e em ti principiam o mar e o mundo…”)?[83]
(“ ...e eu
me transmude na zona de uma idade
antiga e Deus
fale de em mim no mais puro alto da carne...”)[84]
Há na poesia de Herberto Hélder um ritual de passagem para uma nova e muito
antiga (porque evoca os mitos órficos) cosmovisão:[85] “…a maneira como tudo se enreda em tudo”.[86]Onde, a face animal (lorenziana) da natureza humana
é”… limpa como a luz”. [87] E o amor a sua mais natural expressão: “...precisamos
amar, e não temer e desrespeitar.[88] Nesta poesia, a criança é o símbolo iniciático que
renova a esperança de glorificar a vida:”…Nelas se festeja a imensidade/ dos meses,
a melancolia, a silenciosa/ pureza do mundo”.[89] E a mulher, a amante que realiza os atos mais
sublimes do amor e mais próxima aparece dessa natureza que é geradora da vida:
“…Beijarei em ti a vida enorme, e em cada espasmo/eu morrerei contigo.”[90] Enfim, o amor como
expressão, no ciclo da vida, da ligação de cada ser com a Terra- Mãe, lugar
órfico onde estamos destinados a viver: “E através da mãe o filho pensa/ que
nenhuma morte é possível e as águas/ estão ligadas entre si…”[91]
Tarefa dos poetas, como foi do herói
clássico, parece ser a de, através desta espécie de música que são os seus
versos, nos iniciarem na sublime e terrível visão onde tudo se liga com tudo e
cada um dos nossos atos ganha um peso ético universal.
Para que, como Orfeu, não tenhamos medo de olhar de frente o Inferno em que
o nosso mundo se transformou.[92] E, por amor a essa Mãe-Terra e às novas gerações que
avançam para o futuro, ousemos “desrespeitar” a ordem aparente das coisas:
“Porque não haverá paz para aquele que ama.”[93]A eterna busca da causa primeira, da unidade cósmica
entre a matéria e o espírito, apaziguará então a angústia da nossa existência e
conferir-lhe-á um sentido. Não podemos exigir- lhes (a eles, os poetas) que
também escrevam o programa social dessa mudança.
Seguindo a asserção de Eduardo Lourenço, que evidenciava a náusea dos
escritores do fim do século na transição para o século XX, face ao surgimento
de uma sociedade de massas laicizada e destruidora do indivíduo e sabiamente a
situa na geografia social, conotando-a com o “espírito da época” típico dos intelectuais
das metrópoles capitalistas de Paris, Berlim e Londres, julgamos reconhecer na
literatura contemporânea, como marcas distintivas deste nosso fim de século, as
imagens da vertigem alucinante do consumismo e do símbolo do labirinto, típicas
das megacidades e da interdependência internacional e transmudadas em
arquétipos estéticos omnipresentes.
Reconhecemos as marcas deste espírito de fim do século XX/XXI, na expressão
semântica, mas também inscritas na estrutura sintática e compositiva do texto
literário: a junção plural dos géneros na mesma obra artística, o predomínio da
descrição sobre a interpretação da realidade, que sugere opacidade,
incapacidade ou desinteresse na sua interpretação; ou o desmontar das suas
imagens, ideológica e finalisticamente construídas, reconstruídas sob um novo
olhar; a consciência acronológica, o
aparente ou intencional sem sentido, a duplicação, a multiplicação, a
sobreposição e o palimpsesto, a integração das artes e o papel saliente dos
multimédia; enquanto, no panorama nacional, prevalece ainda e sempre a presença
ou a ausência-presente do destino trágico do ser humano. O nosso tempo volta a ser
um tempo de tragédia para a condição humana, não como fatídico destino que a
crise ambiental prenuncia mas sobretudo enquanto esforço do homem moderno para
procurar, como Nietzsche, o sentido da terra e nela ocupar, definitivamente, o
lugar dos Deuses.
De facto, a fugacidade das imagens que têm o condão televisivo de nos
mostrar, em tempo real, as desgraças do mundo, não se interrogam, em regra,
sobre “o como ultrapassá-las” e o “porquê aconteceu,” não questionam eticamente
o contexto político, social e moral que as gerou e não interpelam e perturbam a
nossa própria consciência. Funcionam como espetáculo alienante, num comprazer
trágico que nos evoca a asserção de Schiller, contudo sem a compaixão
espiritual do homem culto, cuja atitude e conduta obedece à sua consciência
ética.[94] Mas o homem já não está prisioneiro de vagos deuses e
não precisa de transferir para o Olimpo o advento da beleza como mediadora de
um mundo novo. Nunca como então a Humanidade foi chamada a desafiar o seu
próprio fado, mas agora o pessimismo estético também pode ser o ponto de
arrancada para a realização dos mais velhos sonhos do ser humano. Frederico Nietzsche
já não blasfema sozinho contra os céus:[95] Muito longe do seu pensamento filosófico, multidões
imensas sacrificarão tudo para forjar, neste mundo, o carro de Apolo. O
resplendor trágico da sua luta, o retrocesso brutal das sociedades prometidas à
emancipação do Homem, reconduziram depois a natureza humana à sua condição
trágica, num eterno retorno. Mas o caminho ficou aberto e o ser humano toma
definitivamente consciência da sua grandeza e finitude, já não apenas como uma
questão filosófica, mas também e universalmente, como um problema pragmático. Veremos
adiante, neste trabalho, como a literatura de Miguel Torga, invocando Os
Bichos, a alegoria do corvo na Arca de Noé face a face com o Criador, nos
transporta à mesma encruzilhada onde os tempos modernos colocaram a Humanidade.
[1] Fernando Pessoa, Poemas
Escolhidos, de Jorge Fazenda Lourenço, do Cancioneiro,
O Menino da Sua Mãe, 1926.
[6] Nos anos 50, a Agência
atómica norte americana desdobrou-se em múltiplas campanhas de branqueamento
dos efeitos nocivos do nuclear, anunciando a chegada de uma nova era de energia
limpa e inesgotável, de origem atómica, que a ironia de Jorge de Sena fustiga
nos versos “..à luz que vem /oh só em poeiras inofensivas,
rezo…”
[10] Casimiro de Brito, do livro Jardins
de Guerra, poemas escritos
entre 1961/64, os versos As Sementes, publicados em Ode e
Ceia, pps. 122 a 124 .
[11] Casimiro de Brito,
do livro Solidão Imperfeita, poemas escritos entre 1955/58, publicados em Ode e
Ceia, pág. 35.
[12] Leia-se, por exemplo, o prefácio de Alexandre Pinheiro Torres à Nau
de Quixibá, obra escrita em 1957, mas que o autor
só conseguiu publicar no pós 25 de Abril.
[13] Rui de Azevedo Teixeira, na obra A Guerra
Colonial e o Romance Português, trabalho de Tese publicado em 1997, refere que, o tema da guerra,”…até ao início da década de sessenta, não dá à Literatura Portuguesa
sequer uma dezena de grandes, definitivas obras…”, contabilizando depois, face à Guerra Colonial, os trabalhos de cerca
de 150 escritores e críticos nacionais!
[14] Manuel Alegre escreveu as suas obras maiores de poesia em 1963, Praça da
Canção e em 1967, O Canto e
as Armas.
[16] Intervenção do Prof. Francisco Caldeira Cabral no Congresso da
Federação Internacional de Arquitetos Paisagistas, organizado em Tóquio no ano
de 1964, no tempo em que era Presidente da Federação. Contém, ela própria, uma
visão prospetiva das modernas ciências ambientais. E ilustra magnificamente a
tradição de “humanismo ecologista“ e uma superior visão ética, que emerge na
cultura contemporânea nacional pela
obra, insuficientemente reconhecida e divulgada, de um escol de homens sábios e
literatos. Recolhida junto do seu filho e continuador, o
engenheiro e professor João Caldeira Cabral. Vamos encontrar
Francisco Caldeira Cabral, dezasseis anos antes, entre os
fundadores da Liga de Proteção da Natureza.
[19] A obra de
Rodrigues Miguéis não aparece normalmente nas recensões críticas sobre o
Modernismo, embora pareça aceitável que
lhe cabe um lugar único e por isso à parte, na charneira dos modernistas da
primeira (Cesário, Pessoa, Sá Carneiro, Almada Negreiros) e segunda
gerações (a da Presença). Talvez porque a sua obra ficou inédita, dispersa por jornais e revistas,
reduzida a folhetins, emergindo sob a forma de livro, sobretudo a partir da
década de 50.
Contudo a sua
escrita, situada nas décadas de 1930 a 1970, abarca a generalidade dos temas e
inquietações que atravessam as correntes estéticas e a obra dos autores da
Modernidade, isto é, do Modernismo e do Pós-Modernismo, transmitindo-lhe uma
feição particular que parece caracterizar todas as sínteses históricas entre a
cultura nacional e a influência das culturas internacionais: Desse encontro, em
diferentes épocas, resulta sempre um esforço de domesticação das tendências
estéticas originais e, no caso vertente, um aportuguesamento do modernismo.
Vejamos os sinais de modernidade que marcam a sua obra.
[20] Eduardo Lourenço, O Canto do Signo, Existência e Literatura (1957-1993), obra de referência deste texto, amplamente citada.
[22] Afonso Lopes Vieira, Éclogas de Agora, 1935. No prefácio desta obra, Cecília Barreira revela-nos o sentido moderno do texto de
Lopes Vieira “... conscientemente repudia o espírito inicial das éclogas- a
tradição que remontava a Bernardim e Camões, Sá de Miranda, Rodrigues Lobo-
na exaltação duma vida campestre. É o Mar - na
dupla significação de renascimento pátrio e de veículo da única saída que se
impõe na Porta, o exílio - que consubstancia e povoa esse horizonte existencial,
carregando-o, por um lado, de grandiosidade e, por outro, de frustração. E nesse sentimento contraditório inculca Lopes Vieira o confronto
entre um passado glorioso e um presente imerso em brumas e inquietação…”
[28] Citado da obra A Poesia
da Presença, de Maria Teresa
Arsénio Nunes, pág. 50. Trata-se do poema Desfloramento, publicado na revista Presença, nº 36.
[41] Afonso Lopes Vieira, Em Demanda do Graal, 1922, reeditado na coletânea Memórias
da Alegria, organizada por
Eugénio de Andrade.
[45] E ampliado depois pela Carta de Veneza (1966) e a Carta Europeia do Património Arquitetónico, adotada em Outubro de 1975 em Amsterdão, sob a iniciativa do Conselho
da Europa. Veremos no pós- Fácio, como Fernando Namora se identificava com os seus princípios e como
por eles se bateu com a sua escrita.
[48] A Última
Época Civilizada de Coimbra, texto de 1966,
da autoria de Ruben A., publicado na coletânea,
Memórias de Alegria, organizada por Eugénio de Andrade.
[54] O que Eduardo Lourenço representou nos domínios da cultura e da
filosofia heterodoxas, provavelmente cabe a Jorge de Sena no plano literário e,
talvez por isso, o destino do nosso engenheiro-poeta tenha sido o de sofrer na
sua e nossa terra as andanças do demónio e do exílio.
[55] Veremos adiante, noutro poema de Jorge de Sena, Carta aos meus filhos, sobre Os Fuzilamentos
de Goya, como o conceito
de Vida defendido pelo poeta está para além do antropocentrismo clássico.
[58] Ricardo Reis, Odes, pág. 99.
[59] Alberto Caeiro, Poemas, XXI.
[61]
Ibid., pág. 75.
[64]
António Ramos Rosa,
Incisões Oblíquas, Estudos Sobre Poesia Portuguesa Contemporânea, pps. 61 e 62, 1987.
[72]
Ibid., pág. 30.
[74] Citado da obra de António
Ramos Rosa, Incisões Oblíquas, Estudos Sobre Poesia Portuguesa Contemporânea, pág. 30.
[75] Eduardo Lourenço escreve, no texto Uma Literatura Desenvolta ou Os Filhos de Álvaro de
Campos,
publicado na revista O Tempo e o Modo, nº 42 _ de Outubro de 1966: “Para apreciar como convém e merece a novidade da Nova Literatura basta considerar
atentamente o que advém nela o tema central (e obsessão quase única do Ocidente
na Poesia e no Romance) do amor, ou mais genericamente da relação erótica.“
[76]
Ver 366 Poemas Que Falam de Amor.
Escolhidos por Vasco Graça Moura, de Vasco Graça Moura, Poemas que nunca se
esquecem. Por amor. Última edição da Quetzal, 2009.
[85] “…E não sabemos escutar
o barulho
nem vemos os roseirais dominados pelo
silêncio
oh nem
deliramos nos enormes inóspitos campos
de
Deus. “Ibid., pág. 145.
[92] “O Inferno somos nós próprios”, dirão, mais
adiante, os cientistas franceses, citando Lévi-Strauss.
[94] “Cada sacrifício de vida é inconveniente,
pois a vida é condição de todos os bens; mas sacrificar a vida num propósito
moral é conveniente em alto grau, pois a vida nunca é importante por si própria,
nunca como um fim, apenas como meio para alcançar a ética. ”Friedrich Schiller,
Textos Sobre o Belo, o Sublime e o Trágico, pág. 33.
[95]
“Cristianismo foi desde o início, essencial e profundamente, repulsa e
saturação por parte da vida em relação à
vida, apenas disfarçada, apenas escondida, apenas adornada sob o manto
da fé numa vida «diferente» ou «melhor». O ódio ao «mundo», a maldição dos
afetos, o receio da beleza e sensibilidade, um
Além inventado para melhor caluniar o aquém, no fundo uma demanda do nada, do fim, do repouso,
até ao «sabat dos sabats»...pois perante a moral (em particular a moral
cristã, ou seja, a moral incondicional), a vida tem constantemente e
inevitavelmente de sofrer uma injustiça, uma vez que a vida é algo de
essencialmente imoral,_ a vida tem finalmente, oprimida sob o peso do
desespero e do eterno não, de ser sentida como indigna de ser desejável, em si
desprovida de valor.” Frederico Nietzsche, O Nascimento da Tragédia, pps. 15 e 16.
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