2001/2017
Autor
© António dos Santos Queirós
ISBN 978-972-8659-41-7
Conteúdo
©ANTÓNIO DOS SANTOS QUEIRÓS
Centro de Filosofia. Faculdade de Letras da Universidade
de Lisboa
Alameda da Universidade 1600-214, Lisboa Portugal
adsqueiros@gmail.com
T.
910506370
A crítica ao antropocentrismo postula em diversos autores a responsabilização
da cultura judaico-cristã e do iluminismo cristão do século XVIII em
particular, como estando na base da atitude de domínio arrogante da espécie
humana sobre a natureza, princípio que partilha com a religião muçulmana.[1]
O Homem, criatura eleita por Deus para presidir à criação divina, seria com
esta perspectiva moral induzido a apropriar-se da natureza para os seus fins,
sem qualquer limite ou restrição. O iluminismo racionalista, ao atribuir à
condição humana a missão de triunfar não apenas sobre o obscurantismo da
sociedade nobiliária e eclesiástica, mas também de decifrar e controlar as
forças da natureza, teria aberto o caminho à utilização desenfreada dos
recursos naturais e ao emergir da crise ambiental da Idade Contemporânea.
Parece-nos que esta relação não é linear nem imediata. O iluminismo de
orientação cristã entendia a existência e a conservação das criaturas como a
continuidade do ato criador.[2]
A ser assim, poderíamos ser tentados a atribuir ao positivismo e ao
cientismo o papel dessacralizador (e foi-o certamente mas noutro sentido) do
mundo natural, apesar da forma peculiar como estas correntes filosóficas foram
assimiladas pelos nossos intelectuais de oitocentos, quando, como Antero,
procuraram conciliar a metafísica com as leis científicas do Universo. Mas
também aqui a relação com a crise ambiental não é direta nem historicamente
determinante.
Somos de opinião que a utilização dos elementos naturais como meros objetos
de uso mercantil está associada ao nascimento da ideologia do capitalismo
mundial, que nos finais do século XIX fez avançar as últimas fronteiras do
mercado, ao partilhar na Conferência de Berlim de 1885 os espaços coloniais e
as terras virgens, e programar a sua integração na esfera das metrópoles europeias,
dando origem ao Ultimato de triste memória para o nacionalismo português, que
viu ocupado pela Inglaterra o seu “mapa cor-de-rosa“ de expansão territorial
entre Angola e Moçambique. Então sim, todos os recursos naturais e mesmo o
homem, criança, velho ou mulher, obra prima da criação divina, foram
transformados em mercadoria e a condição humana reduzida ao estatuto mercantil
de “força de trabalho “.
E uma nova ética surgiu, emergindo lentamente dos alvores do capitalismo
rural para a industrialização setecentista e oitocentista: a da amoralidade
empreendedora, onde o objeto do lucro acrescido, despojado definitivamente do
estigma da censura cristã medieval e sem temor ao purgatório nascido nos
alvores do capitalismo moderno para o remir, postula que tudo lhe é permitido e
legítimo para acumular capital.[3]E este procedimento, obter crescentes mais valias
através da concentração do capital industrial e depois financeiro, torna-se natural,
enforma toda a ordem jurídica do estado e o ambiente cultural e espiritual das
nações, para proclamar depois as novas relações
de produção e de troca como definitivas,
o cume do progresso e da civilização e, por isso, destinadas a serem eternamente
reproduzidas e ampliadas pelo devir histórico da sociedade.
Foi esta tremenda mudança social que gerou a cultura moderna e fez nascer
as raízes profundas das diferentes ideologias, escolas filosóficas e correntes estéticas,
não de forma mecânica mas dialética, nem tão pouco como meros reflexos
superestruturais da nova base económica da sociedade: os protestos contra o
cosmopolitismo revalorizaram o papel da ruralidade, fizeram nascer doutrinas
conservacionistas da natureza, de inspiração científica ou metafísica, ou
procurando a sua síntese contemporânea. Recordemos, nesta procura de conciliação
entre a metafísica e a ciência, a obra de Sampaio Bruno. Pertence-lhe o
pensamento claríssimo que aqui citamos: “Esta orgulhosa ilusão antropocêntrica,
que faz do homem o objeto único e final da Criação, vai cedendo com o progresso
da cultura mental“ e com o avanço da diferenciação mental. Criticava o filósofo
uma passagem do Alcorão mas também os defensores da imutabilidade da obra
divina, para logo a seguir sublinhar: “O
homem faz compartilhar os animais da vastidão do seu império”. E logo depois citar
o Génesis e dele retirar a ideia científica de que as plantas estão na base da
cadeia alimentar dos seres vivos, animais e aves e “ tudo quanto tem vida e
movimento sobre a orbe”. Concluindo com uma renovada crítica ao
antropocentrismo egocêntrico: “Acabamos por personalizar a natureza e
procedemos para com a criação, como se a houvéssemos criado.” [4]
Sobre este vazio ético, construiria o capital, apátrida e amoral, o seu
império de interesses, gerador da crise ambiental do mundo contemporâneo, enquanto
no Leste a consolidação do estado dos Sovietes era acompanhada de uma lógica
economicista que não poupou recursos naturais e abandonou os ensinamentos dos
primeiros biólogos do “socialismo científico”. [5]
Vejamos então as obras e os autores que apelam para a comunhão universal,
numa dimensão metafísica.
Escolhemos Teixeira de Pascoaes para ouvir em primeiro lugar esse apelo.
Recorremos de novo à obra citada de Maria das Graças Moreira de Sá. “...todo o
texto é um hino à harmonia cósmica, à ligação Terra/Céu, símbolo da ascensão
espiritual para Deus ou de uma procura ansiosa do Absoluto...[6] E, em seguida, à citação que a autora faz da opinião
de Jorge de Sena:
“…E, ao
ficarem os poetas e os críticos muito fascinados pelo carácter passivo e
provinciano da «saudade» (uma saudade tão radicada na paisagem natal do poeta),
não se davam conta de que essa saudade se voltava muito menos para o passado do
que era para um futuro em que tal sentimento desempenhava o papel de uma
reminiscência platónica que fosse o motor de uma crescente humanização do
Universo»... “[7]
Por último, a palavra ao poeta, para nela encontrar essa saudade do futuro,
que é também “sonho e aspiração” e ele acreditava poder partilhar através da
poesia com a humanidade sofredora. Já que, para Pascoaes, a natureza é uma
lágrima de Deus, que partilha connosco o sofrimento da condição humana.“... Sou
velho tronco, a arder, homens gelados!/Ó trevas, vinde a mim: sou claro dia”.[8] E é na paisagem portuguesa que Pascoaes, na asserção
de Eduardo Lourenço, “…decifra e inscreve o drama da criação inteira…”,
sobretudo no seu Marão, a partir do qual revela a própria essência metafísica
de uma história e de um povo singulares, a que chamamos Portugal.[9]
Como indicámos no início deste trabalho, o poeta sonha e deseja a comunhão
dos homens com a terra-lar onde arde o “fogo eterno”; terra-lar, símbolo original de Pascoaes que é
reminiscência dos afetos e da função protetora do lar associada ao eterno
retorno ao seio da terra de onde se nasce e sobre a qual se morre. E a comunhão
surge da “romaria espiritual” ao Tâmega, às montanhas e rochedos que são o
lugar sagrado da união cósmica do ser individual com o universo, porque aqui
“terra e solidão” a que se aspira significam sobretudo o atingir da paz de
espírito perante o grande mistério da vida que enfrenta a morte, não através de
um ritual religioso que o verbo “rezar” parece introduzir, mas daquela outra
metamorfose panteísta que é o reencontro com a natureza. E a humildade do Marão
e do poeta não representa a aceitação da menoridade da nossa cultura e do nosso
património natural, porque a verdadeira grandeza está no alcançar dessa Serenidade espiritual
“Que é para Deus a verdadeira luz!”
“…Ó meu
Tâmega obscuro, água dormente…
Ó rio, à
noite, a arder todo estrelado!
…Montes da
minha aldeia, quem me dera
Ser como vós, de terra e solidão!
…Ó rochedo
do Cáucaso onde eu vou
Em romaria
rezar
Ó fogo
eterno que o Titã roubou
Ó fogo humilde e brando do meu lar!”
A
elegia mística de Florbela Espanca transforma-se em identificação metafísica
com a terra renovada “…Olhos a arder em êxtases de amor,/Boca a saber a sol, a
fruto, a mel:/Sou a charneca rude a abrir em flor“![10]
Sophia de Mello Breyner Andersen.[11] O poema de Sofia, que transcrevemos a seguir,
transporta-nos a uma metafísica para além da morte, onde os átomos e as almas
se fundirão com a natureza e os seus elementos vitais: Água - o mar. Terra - os
pinhais. Ar - o vento. E nós, “irmãos vivos do mar e dos pinhais”, renasceremos
(“floriremos”) como jovens “… o vento levará os mil cansaços …”e voltará...“aos
nossos membros lassos a rapidez dos animais”, simbolizando a agilidade juvenil.
E a morte será apenas o ultrapassar do mistério da vida eterna, irmanados com o
supremo criador e a sua obra, o Homem, a Terra e todos os seus seres e
criaturas:“…em nós germinará a sua fala.” [12]
Também aqui, mas com uma dimensão metafísica, se pugna por uma nova ética
que reenquadre o homem na natureza, à escala da mãe-terra integrada no Cosmos.[13]Pouco tempo antes, Sebastião da Gama escrevia o seu primeiro livro, Serra Mãe. Poeta Integral, segundo
Jacinto Prado Coelho, Ruy Belo recusa confiná-lo à dimensão do poeta da
Arrábida. Basta, como diz, abrir no primeiro poema daquele livro.[14]
“... A corda tensa que eu sou,
o Senhor
Deus é quem
a faz vibrar
...
Ai linda
longa melodia imensa!...
- Por mim os
dedos passa Deus e então
já sou
apenas som e não
se sabe mais
da corda tensa...”
O homem é um instrumento de Deus, mas não uma parte da sua divina condição.
Ele é causa segunda do movimento criador
da natureza.[15]
A natureza, como imagem e manifestação da obra de Deus, surge nos versos de
Poesia depois da chuva, de Sebastião
da Gama, sem concessões ao panteísmo, pois Deus está para além da substância natural,
mesmo da natureza humana, os Seus dedos criadores passam imaterialmente pelas
criaturas, que medeiam a sua revelação,
mas esta é, para a condição do homem, apenas uma imagem limitada do divino inacessível “… já
sou apenas som e não se sabe mais da corda tensa…”, reminiscência da estética
cristã medieval da contemplação agostiniana do sagrado. Vejamos a Sua imagem,
de “causa primeira” de todo o movimento da vida, no poema:
“ Poesia
depois da chuva
... Depois
da chuva o sol- a graça.
Oh ! a terra
molhada iluminada !
E os regos
da água atravessando a praça
luz a fluir,
num fluir impercetível quase...
... Tão
alegre este sol ! Há Deus. (Tivera-O eu negado
antes do
Sol, não duvidava agora).
Ó Tarde
virgem , Senhora Aparecida! Ó Tarde igual
às manhãs do
princípio”![16]
A obra do poeta Sebastião da Gama dedicada à defesa da Serra-Mãe, congregou
eminentes homens da ciência e da cultura da época, unidos, primeiro, na
preservação do património natural da Arrábida e, depois, na fundação da Liga de
Proteção da Natureza, em 1948.[17]
Ato premonitório de poetas, cientistas e visionários, retoma o testemunho
dos escritores dos primórdios do século, o qual, como assinalámos, atingira um
dos seus pontos mais altos no esforço intelectual e propagandístico do Guia
de Portugal, obra coletiva da fina flor dos nossos criadores culturais e
científicos.
Seria preciso esperar quase 40 anos para que aquele exemplo de organização
frutificasse no actual movimento ambientalista, mas o combate ecológico dos
escritores portugueses permanece como uma constante histórica que atravessa
todo o século XX.
Ruy Belo apreende, no interior dos
versos de outro Ruy Cinatti, “... a conceção cristã do homem”..., entendida aqui
nas dimensões estética e afetiva, da relação harmoniosa entre a Natureza e o Homem,
obra comum de Deus.[18]A mesma mensagem de amor (divino) que Sebastião da
Gama dedicou à natureza e à condição humana irrompe da poesia de Cinatti.[19]O espetáculo maravilhoso da natureza é expressão do
finalismo da obra divina, que ele traduz numa mensagem de felicidade e de amor.
“…Quem pode
impedir a primavera
Se estamos
em Maio e uma ternura
Nos faz
abrir a porta aos viandantes
E o amor se
abriga em cada um dos nossos gestos !
Quem?...
Se os sonhos
maus do inverno dão lugar à primavera !…”[20]
As ideias de ordem e finalidade como símbolos da presença de Deus na
natureza e anúncio do advento do seu reino de bondade, tolerância e felicidade,
que o progresso científico, desde que orientado pela mensagem de amor divino,
instaurará sobre a Terra, quando o Homem já caminhar pelo vasto Universo,
constituem o fio condutor do pensamento religioso de Jaime Cortesão.
Será o reino do Menino-Deus, nas suas palavras.[21] Retomemos de
novo a obra de Jaime Cortesão, Portugal,
a Terra e o Homem, esse “franciscano laico“, nas palavras de Urbano Tavares
Rodrigues.[22] Para quem...“A beleza peculiar das grandes estâncias
de arte compõe-se de três elementos, em proporções variáveis: os monumentos
históricos e artísticos; as paisagens que os enquadram; e o passado que lhes marca
a origem no tempo…” [23] Para citarmos o remate do seu livro: “...Penso em
tudo isto e sinto frio! Expulsaram-me de casa! Estou na rua. Na rua do
Infinito, é certo, mas por isso mais fria e solitária...A criação do Homem e a
sua redenção pelo amor continuam“.[24]
A “religião da natureza”
Contemporaneamente, mas já perto do nosso presente, a obra individual de
René Dubos, que se tornou conhecido sobretudo pelo seu papel na preparação da
Conferência de Estocolmo, surge em 1973 com o título sugestivo “Os Deuses da
Ecologia “, onde se desenvolvem conceitos como os de uma “religião da
natureza” e “uma teologia científica da terra“.[25]
O seu antropocentrismo panteísta critica as tecnologias modernas e rejeita
a atribuição unilateral das responsabilidades sobre a crise ambiental à herança
cultural judaico-cristã, recusando-se, em nome do livre arbítrio, a aceitar
qualquer determinismo biológico ou sociológico.
Saudando os novos movimentos de contracultura
nascidos nos EUA nos anos 60 e que a revolta de Maio de 68 protagonizou na sua
dimensão europeia, ele pugna pelo renascimento do regionalismo, na perspectiva
de que as comunidades humanas devem manter estreitos laços com a sua própria
paisagem, para que a humanidade não perca a riqueza que constitui a diversidade
biológica e das culturas. E, finalmente, confia que um novo sentimento
religioso conduzirá o homem à unidade interior e cósmica com a natureza.
Ernest F.
Schumacher, economista britânico, de origem alemã, escreveu em 1973 numa linha
paralela, a obra Small is beautiful.
Anotemos que este período é o do primeiro grande choque da crise petrolífera no
Ocidente![26]
Ele
critica as indústrias e tecnologias pesadas que ultrapassam as capacidades autorreguláveis
da natureza e insurge-se contra a sua expansão neocolonial, pugnando por uma
fileira tecnológica de baixo consumo
energético cooperante com a natureza, como é exemplo paradigmático a agricultura
biológica, defendendo também a recuperação das tecnologias tradicionais não
poluentes.
Partidário
do ecumenismo e do pluralismo religioso, propõe-se fazer evoluir o mundo para a
santidade, encarando o Mundo como criação divina que deverá ser respeitado
nessa condição e o Evangelho cristão como o modelo doutrinário de regeneração
da sociedade, associado aos ensinamentos básicos da ecologia, reciclagem,
diversificação e descentralização.
A
similitude destes programas com as reflexões filosóficas dos autores e
escritores anteriormente referidos, permite-nos comprovar a continuidade de uma
tradição filosófica que remonta do medievalismo cristão ao século das luzes e
se pronuncia claramente pela conservação da natureza e de forma crítica em
relação a um devir social moderno que destrói a unidade entre a nação, a terra
e o homem, promovendo um processo de desenvolvimento anti-humanista e antinatural
na sua brutal competição, oposto ao advento do Reino do Amor e da Harmonia
Divinos sobre o Planeta.
É a obra
de Fernando Pessoa que assume modernamente a Mensagem desse destino providencial anunciado pelo retomar dos
valores espirituais conotados com o cristianismo, que, segundo o poeta, D.
Sebastião protagonizou, a uma Terra dominado pela “Ordem demoníaca” do Mundo
Moderno e a um país que entristece metafisicamente, para elevar a “alma
penitente do povo à Eucaristia Nova”, isto é, a uma missão transcendente de que
a obra dos navegadores foi “carnal arremedo”, uma caminhada obscura e esotérica
em busca de uma Índia Nova que é também outra, que não existe fisicamente,
embarcando em naus que são construídas “daquilo que os sonhos são feitos. “E o
segredo da Busca é que não se acha”. Caminhada metafísica, pois é
paradoxalmente destino iniciático de uma nação inteira!
Vejamos
alguns versos chave do poema Mensagem.
“D. Sebastião,
Rei de Portugal, Louco, sim, louco,
porque quis grandeza…
O Infante, Cumpriu-se
o Mar e o Império se desfez,
Senhor,
falta cumprir-se Portugal!
Horizonte, O
sonho é ver as formas invisíveis
… os beijos
merecidos da Verdade.
Padrão E
a Cruz ao alto diz que o que me há na alma
E faz em mim
a febre de navegar
Só
encontrara de Deus na eterna calma
O porto sempre por achar.
O
Quinto Império E assim, passados os quatro…”[27](Os 4 impérios foram Grécia, Roma, Cristandade e
Europa).
Apesar
do nevoeiro de angústia e desorientação que cobre o país…chegou a Hora de
Portugal! E o Santo Graal, a Excalibur do Fim, não representa o triunfo de uma
nova cruzada violenta. O Poder e o Renome virão agora da pura redenção
espiritual, que irradie sobre o Mundo dividido.
Seria necessária a leitura completa da
obra de Pessoa e particularmente de Álvaro de Campos, para reconhecermos nesta
ânsia de regeneração espiritual os sinais de inquietação e rejeição face à
Modernidade e aos seus mandarins europeus, expoentes de uma civilização
contraditória e sangrenta que engendrou tecnologias formidáveis, mas para as
aplicar na indústria, na atividade comercial ou na guerra, de forma brutal e
inumana, que o engenheiro poeta “febrilmente celebraria”!
Cabe
aqui uma referência breve ao pensamento do Integralismo Lusitano e ao seu principal
mentor, António Sardinha, deliberadamente curta, porque os corpos textuais que
estudamos não são os da filosofia e da história da cultura portuguesa, mas os
da literatura e a nós próprios nos impusemos a disciplina de guardar tal
reflexão para trabalho de maior fôlego. O regresso ao mundo rural, a terra como
base da riqueza e da felicidade, na linha de António Feliciano Castilho, a
corporação medieval de camponeses enquadrados pela nobreza de cargo e de toga,
eis a alternativa à opressão da máquina capitalista e do seu “imperialismo”, à
morte da alma cristã, providencialmente atribuída à Hispânia. Encerremos este
ponto com os versos de Sardinha.
“ Onde
chegou o antigo verme escasso,
_ onde chegou a humana criatura?!(…)
Subir! Subir!_ e não subir na Prece!:
corpo sobe, mas alma desce,
no orgulho
da matéria alucinada! “[28]
“ O que é digno de ser notado …é a ideia que o
bem da comunidade biótica é a medida suprema do valor moral, da correção ou incorreção
da ação…”[29]
“… O verdadeiro
humanismo não começa por si próprio, devendo colocar o mundo antes da vida, a
vida antes do Homem e o respeito pelos outros antes do amor-próprio…”[30]
A obra de referência da Ética da Terra pertence
a Aldo Leopold (depois de Walt Whitman e David Thoreau), que a retira dos
estudos de Darwin e dos avanços científicos da Ecologia.[31] O sentimento da
necessidade de ajuda e defesa comum, desenvolvido ao longo do processo de seleção
natural, gerou o conceito de comunidade, fundamento da ética. E é uma nova conceção
da natureza que emerge, agora entendida como uma sociedade de plantas, animais,
minerais, fluídos e gases, estreitamente ligados e interdependentes.
Encontrámos já, na poesia de Walt Whitman, essa
visão poética (e científica) da terra como uma comunidade, que Aldo Leopold
quer ver amada e respeitada na sua diversidade e na herança biogenética e
cultural, que o longo processo de humanização representa.
Um dos mais populares defensores de uma ética da terra, Joel de Rosnay,
atingiu a notoriedade com o título sugestivo de O macroscópio. Para uma visão
global, seguido de O Cérebro
Planetário.[32] O macroscópio, ao invés do microscópio, amplia os
laços existentes entre os grandes sistemas ecológicos e encara a terra e o
conjunto das organizações e relações sociais _ desde as cidades às empresas,
como autênticos organismos biológicos, onde a espécie humana é considerada
apenas como uma das suas células constituintes, entre muitas outras espécies!
Ou, melhor dizendo, como os “neurónios” da terra, células de um cérebro em
formação, de uma consciência planetária nascendo à escala do planeta.
O equilíbrio ecológico dos sistemas sociais seria assegurado pelo
funcionamento pleno do mercado, que no entanto carece de ser humanizado,
através duma reforma social inspirada nos sistemas biológicos, pela
descentralização de decisões e o incentivo à participação por intermédio de
múltiplas redes interativas.
Enfim, a exclusão pela competição, segundo Rosnay, típica dos ecossistemas
e portanto aplicável às relações Norte/Sul, entre países ricos e pobres, seria
o resultado daquela “seleção natural”, carecendo também de ser corrigida por
intermédio de uma nova ética.
Gordon Taylor, partindo da noção de que a terra é um vasto ecossistema em
que tudo está ligado, acusa a espécie humana de preparar o apocalipse através
do crescimento demográfico excessivo e dos efeitos perversos das tecnologias atuais.[33]
Enumera toda uma série de relações de causa e efeito entre a degradação do
ambiente e a perda de qualidade de vida do homem moderno - a poluição provocada
pelos metais e o DDT gera perturbações mentais, os resíduos radioativos ameaçam
a nossa herança genética, a mobilidade social afronta a natureza humana que
assenta em sólidos instintos territoriais, provocando stress, etc.
E daqui parte para a defesa de um projeto de reorganização da sociedade com
base no campo, tendo como modelo a sociedade pré-industrial, preconizando em
paralelo a rotura com a tradição filosófica do iluminismo e a visão
antropocêntrica do homem.
As ideias esboçadas por estes autores aproximam-nos das principais teses
cientifico-filosóficas, que fundamentam a ética da terra e atingiram
notoriedade particular através da hipótese de Gaia, enunciada em 1979
pelo inglês James Lovelock, logo suportada mediaticamente pelo americano Carl
Sagan.[34]
A Terra seria afinal um superorganismo vivo, criador da sua própria
biodiversidade. Lovelock aponta a história do clima como um dos principais
argumentos em favor desta perspectiva, considerando a superfície terrestre o
principal agente produtor da vida, geradora de uma atmosfera há pelo menos três
milhões e meio de anos favoráveis à existência de seres vivos.
Enfim, sendo o homem a principal ameaça para a
vida, mais do que a técnica, o Planeta, qual mãe terrível e monstruoso
demiurgo, saberia agir intencionalmente e depois de reagir às mais brutais
agressões ambientais, poderia exterminar o próprio ser humano através de praga
ou mutação genética universal.
Em contrapartida, recompensará a harmonia das raças e culturas e o uso das
tecnologias não poluentes.
Daí, até à crença regeneradora de uma nova
tecnociência e ao futurismo visionário de utilização dos outros planetas
através da apropriação de tecnologias benévolas pela raça humana, vai apenas um
passo.
Eis sumariamente as duas faces da mesma moeda filosófica que absolutiza o
papel da tecnologia: ou o regresso atávico ao campo, à maneira de Gordon Taylor
ou a salvação pelas técnicas ecologicamente puras, sobre um fundo comum de crítica
ao antropocentrismo.
A primeira observação que estas teorias nos sugerem é para assinalar a sua
localização na geografia geopolítica.
O seu nascimento é indissociável das preocupações de uma elite
técnico-industrial a braços, simultaneamente, com a crise ambiental dos seus
países e do modelo anglo-saxónico e ocidental de produção, que globalizou o
mundo. Elas emergem precisamente nos finais da década de 70, perante o crescimento
da competição internacional pela liderança, marcada pela ascensão económica do Japão
e da Alemanha, mas também dos países industrializados da Ásia/Pacífico e têm de
enfrentar ainda o crescente protagonismo mundial dos países dependentes do
hemisfério sul.
A segunda reflexão preocupa-se com a história oculta do progresso tecnológico:
basta avaliar o último grande avanço energético, celebrado nos anos 50 com a
energia nuclear, glorificada então por não produzir gás carbónico e produtos
ácidos, mas de facto encobrindo os efeitos catastróficos das fugas, acidentes e
resíduos nucleares, de Three Miles Island a Chernobyl.
O que nos conduz à terceira apreciação crítica: improvavelmente qualquer
tecnologia algum dia inventada se mostrará mais eficaz do que os processos
naturais de seleção, reutilização e reciclagem, que ocorrem nos principais ecossistemas
favoráveis à vida e deram origem aos grandes quadros da paisagem natural
humanizada.
E, finalmente, mas não menos importante, a ênfase colocada por alguns políticos
na mundialização do ambiente e no controle, gestão centralizada e concentração
de bancos da biodiversidade, traduzida, por exemplo, no atrativo slogan de Al
Gore de um Plano Marshall para o Ambiente,
leva-nos a recordar que o plano
homólogo, apresentado como via para a reconstrução da Europa devastada pela II
Guerra Mundial, serviu igualmente para consolidar a hegemonia americana no
ocidente, no contexto da “guerra fria” com os países de leste.
As posições atuais dos defensores da ética da terra, como Rolston III e
Callicot, conduzem ao reconhecimento “…do valor intrínseco de todo o componente
ecológico”, no dizer do primeiro, e ao princípio de que “… o efeito sobre os
sistemas ecológicos é o fator decisivo na determinação da qualidade ética das ações.” [35]
Demarcando - se do radicalismo de Rolston III, Callicot defende o direito à
vida de plantas e animais imprescindíveis ao equilíbrio ecológico de
determinadas comunidades bióticas, exemplificadas pelo caso dos felinos
ameaçados de extinção nos seus habitats da América do Norte, mas
aceitando igualmente que outros animais e plantas sejam destruídos quando
constituem uma ameaça mortal para a comunidade natural de determinado sítio e,
consequentemente, o controle das espécies por parte do homem.[36]
A absolutização dos quadros naturais significa não ter em conta que todos
esses meios são hoje obra comum da espécie humana e podem levar ao extremismo
de pretender reduzir o género humano ao peso numérico da “comunidade dos
ursos!”
Por outro lado, não há praticamente quadros naturais puros mas sim
paisagens humanizadas em maior ou menor grau e o seu equilíbrio ecológico é
sempre dinâmico e relativo. Os defensores da Teoria sintética da Evolução,
partidários de um “gradualismo filético” que entende a evolução das espécies
como resultado da convergência de mutações biológicas e mudanças ambientais[37]. Ou os seus contraditores, mais inclinados para as
doutrinas do “equilíbrio intermitente”, que enfatizam o facto de a paleontologia,
em regra, não evidenciar modificações graduais e para os quais as espécies
podem surgir num estado avançado, permanecer longamente com existência estável
e depois perecer para dar origem a outras, contribuíram igualmente para
compreendermos hoje a complexidade dos problemas da evolução e da extinção das
espécies.[38] Partindo da síntese entre estas duas correntes, as
descobertas científicas permitem-nos ter a certeza apenas de que o equilíbrio
dos ecossistemas favoráveis à vida depende de uma infinidade de relações
geológicas, biológicas e físicas e reconhecem que quanto mais alta é a posição
ocupada pelos organismos na cadeia alimentar, maior é a sua vulnerabilidade,
podendo a destruição de algumas espécies afetar drasticamente todo o sistema.
Houve sempre extinções ao longo das várias épocas da história da vida e o
património biogenético recuperou a sua riqueza e diversidade_ foi assim nos
finais do Pérmico (com o desaparecimento das Trilobites), do Cretácico Terminal
(o fim dos dinossáurios não-avianos), do Plistocénico superior (quando sucumbem
os mamíferos oriundos da América do Sul) e do Quaternário (extermínio e morte de
espécies contemporâneas do homem, como o tigre dente-de-sabre e o mamute). O
que hoje é dramático, conhecida a lei de bronze da Paleontologia, que postula a
Irreversibilidade da Evolução, é o ritmo a que se processa a perda da
biodiversidade, a destruição dos recursos naturais energéticos e a
multiplicação dos efeitos poluidores que atingem não só o conjunto do planeta _a
litosfera, a hidrosfera, a criosfera, a atmosfera e a biosfera, mas também e,
com consequências imprevisíveis, o material genético fundamental, o ADN que
conserva e reproduz os códigos da vida.
Tudo isto é suficiente para não reduzir a reflexão dos defensores da ética
da terra a uma obsessão sectária ou a um problema regional dos países ricos.
Se os autores citados, Rolston III e Callicot, não enfatizassem o princípio do “valor
intrínseco” das espécies, poderíamos inferir que a sua crítica estaria dirigida
contra os excessos da industrialização agropecuária da terra, que conduz à
monocultura e à liquidação das espécies de menor rendimento económico, abrindo
o caminho à extinção da biodiversidade, à destruição dos solos agricultáveis e
à colonização dos nichos vazios pelas espécies infestantes e ao desenvolvimento
das pragas.
Nas obras mais recentes de Callicot, as suas propostas, que desde o início
procuram conjugar a intervenção dos defensores da ética animal e da ética da
terra, surgem - nos com uma tonalidade reformista e conciliadora, no plano
social, aconselhando os agricultores privados a reservar (sacrificar) uma parte
da terra produtiva para o livre desenvolvimento da vida selvagem, não apenas em
nome da conservação da natureza, mas também por razões estéticas de usufruto da
beleza da paisagem natural, através do espetáculo da sua diversidade,
particularmente no que se refere às novas gerações, na linha do pensamento de
Aldo Leopold, de quem se afirma discípulo e continuador. [39]
Encontramos, nas obras dos nossos escritores citados ao longo deste trabalho,
uma outra perspectiva, que recusa os extremismos anti-humanistas e assenta a
sua ética da terra no elogio e na defesa do agricultor como arquiteto e
conservador da paisagem, empiricamente ecologista no seu modo de produção, ao
combinar o arroteamento do solo com a compartimentação organizada pela floresta
e pelas sebes contínuas de arvoredo, ao sustentar a sua fertilidade na retenção
da água e no uso dos matos para produzir matéria orgânica, ao alternar culturas
e pastagens, cortes e afolhamentos, permitindo deste modo que perdure a
diversidade da vida animal domesticada e selvagem. Sem deixar de registar os
factores de crise ambiental que resultam da ação do homem, desde o corte
excessivo das florestas primitivas, à monocultura agrícola ou aos excessos da
pastorícia.
Avaliemos agora a visão ética que subjaz à reflexão sobre a Terra e o Homem
desses escritores.
A obra de José Gomes Ferreira é, no dizer de Carlos Oliveira, “a voz da
terra…alguns momentos mais intensos amplificam esta voz da Terra mas nada lhe
responde: estamos cercados por astros silenciosos e indiferentes.” [40]
A imagem apocalíptica de um planeta devastado pelo progresso tecnológico e
pela sua expressão mais avançada, as tecnologias militares, emerge nos versos
de José Gomes Ferreira, tragicamente premonitórios da II Guerra Mundial que se
anunciava na Guerra Civil Espanhola e nas suas Guernicas. Mas imagem também da
febre de industrialização e urbanização que fazia ruir muitos dos equilíbrios
naturais nos países e nas metrópoles mais desenvolvidas.
Poeta que percecionou a crise ambiental da modernidade. Escutemo-lo:
“Deixem-nos
o planeta descarnado e áspero…”O deserto urbano, onde impera o betão e o
asfalto e se acumulam sinais de morte …“…Um planeta feito de lágrimas e
caveiras de sucata/com morcegos que dançam na penumbra o enigma das tocas…”Com
os símbolos dos complexos industriais e dos bairros suburbanos degradados…“…E
fábricas da galopes de cavalos com patas de fumo/…E barracões e vielas e vícios
e escravos…”
“…Deixem-nos
o planeta despido de árvores de estrelas
a nós os
poetas que estrangulámos todos os pássaros
para ouvirmos
mais alto o silêncio dos homens
- terríveis
à espera
na sombra do
chão
sujo da
nossa morte...”[41]
A belíssima imagem do “silêncio dos homens” evoca-nos imediatamente a obra
homónima de Rachel Carson, Silent Spring, trinta anos posterior, na sua
conotação com a natureza e a natureza humana silenciadas pela imagem dantesca
do planeta supercivilizado.
Os poetas, como José Gomes Ferreira, optaram então por afastar dos seus
versos a beleza da vida “estrangulámos todos os pássaros”, para que esta
terrível realidade, da opressão sobre a humanidade e da crise ambiental, se
tornasse visível e a todos responsabilizasse, incluindo os poetas, “terríveis à
espera”, e também eles vítimas
“na sombra do chão sujo/da nossa morte” .
A lírica “épica“, de Eugénio de Andrade, parte da mesma realidade imanente
mas para a realização dos mais belos sonhos humanos.
“ Coração
Habitado
Aqui estão
as mãos.
São os mais
belos sinais da terra.
Os anjos
nascem aqui :
frescos,
matinais, quase de orvalho,
de coração
alegre e povoado”[42]
Não se trata de uma nova forma de panteísmo com cores científicas como na
visão de Lovelock, ou de bucolismo extemporâneo, mas de uma experiência
estética da natureza de onde emana a necessidade de uma nova relação de
solidariedade amorosa (lírica) para com a diversidade das manifestações da vida
natural.
E da perceção única, que só a poesia
e as novas ciências interdisciplinares partilham, de que em cada uma das
manifestações da vida e da sua beleza se pode ler o próprio universo, que tudo
está de facto ligado por laços que só se vão tornando visíveis à sensibilidade
dos poetas e à descoberta dos sábios.
Deste espetáculo e da sua revelação
lírica emana uma outra visão ética que revela os valores da terra. E que são os
da solidariedade entre os seres que a povoam e com ela constroem a teia da vida
e da beleza, pelo trabalho (as mãos), pelo esforço de criar, renascer (os
frutos), isto é, partilhar os sonhos mais puros (os anjos nascem aqui) e mais
deslumbrados (um pássaro nascia dos seus dedos entrelaçados).[43]
“... Tinham fome e sede como os bichos,
e silêncio
à roda dos
seus passos.
Mas a cada
gesto que faziam
um pássaro
nascia dos seus dedos
e
deslumbrado penetrava nos espaços...”[44]
Uma ética da terra que apela para os mais nobres sentimentos humanos, mas
se demarca do pragmatismo científico ou religioso, e, assim, abre caminho à
superação do antropocentrismo com base no reconhecimento da solidariedade e do
respeito pela integridade (= liberdade) dos seres e das criaturas, sobretudo das mais frágeis,
“os amantes sem dinheiro“, num mundo em que o dinheiro é senhor.
Vimos já como a poética humanista percorre a obra dos grandes prosadores do
nosso século; e que este conceito não pode ser associado mecanicamente ao
antropocentrismo finalista e pragmático. Teremos ocasião de avaliar o valor
filosófico da reflexão artística dos nossos escritores, quando adiante
analisarmos a sua atitude face aos seres que nos estão mais próximos na árvore
da vida, os animais e, particularmente, alguns mamíferos. Abordamos agora a
obra de um dos mais notáveis, José Saramago, mas enfocando a nossa análise
sobre a sua poesia.
Com a moderna visão científica, acerca do nascimento e evolução da vida,
subjacente aos seus versos e com notável sentido da relação cósmica da espécie
humana com a Terra Mãe e da precaridade da espécie humana, dois dos seus Poemas
Possíveis:
“…Na vastidão
do mar nasceram deuses:
Somos frutos
da lama , água turvada.[46]
QUANDO OS HOMENS MORREREM
Sinal de
Deus não foi, que Deus não há
(Ou se há,
vive longe e nos engana)…“[47]
Um laço
que Saramago estende ao Cosmos, celebrando no bruxulear da vida inteligente a
glória do Universo.
“ DE MIM À
ESTRELA...
De mim à
estrela um passo me separa:
Lumes da
mesma luz que dispersou
Na casual
explosão do nascimento,
Entre a
noite que foi e há-de ser,
A glória
solar do pensamento. “[48]
A cosmologia descobriu as fornalhas de onde irrompe a alquimia da vida _
estrelas anãs brancas e vermelhas, novas e supernovas, gigantes vermelhas,
pulsares… Somos todos, poeira das estrelas! [49]
E é da fusão cósmica com a natureza que nos falam os
versos de Natércia Freire:
“ Dos
limites sem limite
que há entre
os homens e eu
do meu
orgulho de verme
e de pássaro
indiferente;
volto a ser
da mansa areia;
volto a ser
das mansas brisas,
volto a
sonhar longas asas
não
precisas.”[50]
Mas a consciência de que o antropocentrismo não é uma postura ética sem
mácula e tão pouco corresponde à visão atual da ciência, pois o universo não
tem centro e ao mesmo tempo cada ser ocupa (diversamente) esse lugar, não tem
de conduzir fatalmente ao menosprezo pela espécie humana e ao abandono do
humanismo, que assim é chamado a renovar – se, pela filosofia e pela ética
ambientais, ou então, mais que provavelmente, a pôr fim à sua extraordinária
odisseia entre o silêncio dos mundos.
A luta pela sobrevivência e o sacrifício das espécies para que a família
biológica humana prevaleça, surgem como a principal justificação para o
predomínio na cultura ocidental da visão antropocêntrica, a qual, vencido o
último obstáculo com a dessacralização da natureza, deu livre curso à
exploração universal dos recursos, servindo o que hoje se classifica como
capitalismo selvagem. Este permitiu tudo, de facto, mas apenas aos indivíduos que
dominam o mercado político e economicamente e submeteu a produção atual ao fetiche
da mercadoria, retirando-a do reino da necessidade social.
Ou seja, se o finalismo cristão e o iluminismo racionalista fundamentam em
boa medida a arrogância humana face à natureza, no dealbar da Idade
Contemporânea, a verdade é que a agressão ambiental não decorre diretamente
daquela postura ideológica, pois ela continha geralmente reflexões limitativas
no que se refere ao respeito pela vida e sobretudo pela obra da criação, a
natureza como espelho e livro da criação divinas. Foi então necessário que à ignorância
histórica dos fatores de crise ambiental se associasse a demolição da ideia de
natureza sacralizada, para que tudo fosse permitido e legitimado pela expansão
do mercado mundial, tarefa para cuja realização contribuiu, também, a filosofia
positivista.
Importa analisar agora os limites éticos a esse princípio supremo de
legitimidade da luta pela sobrevivência, até à fronteira da morte e no contexto
da relação do homem com a natureza, submetendo as teses de Rosnay, Taylor,
Lovelock, a uma nova avaliação sobre este prisma. Deixemos para já a questão
particular da relação com outros seres vivos, que abordaremos em capítulos
posteriores, e analisemos o problema de forma genérica, na perspectiva do
homem.
Do ponto de vista biológico, a morte dos indivíduos é condição para a
continuidade da espécie no seu habitat natural, que está em equilíbrio
dinâmico. Mas o nascimento e a evolução do espírito humano desafiam a própria
morte individual, como proclamou Jorge de Sena no poema citado:
“ Não foi para morrer que falámos
que descobrimos a ternura e o fogo,
e a pintura, a escrita, a doce música.
Não foi para morrer que nós sonhámos
ser imortais, ter alma, reviver,
ou que sonhámos deuses que por nós
fossem mais imortais que sonharíamos
…”[51]
E é de novo a ligação umbilical do Homem
a todas as coisas e seres, que atravessa a poesia de José Gomes Ferreira e o
seu apelo à libertação das cadeias e alienações que impedem o reencontro do ser
humano com a sua liberdade e dignidade face a face com a serenidade da Morte.
“ ( Prega,
prega, Voz Solene!)
Homem,
preso pela
sombra a todas as pedras
preso pelos
olhos a todas as aves,
preso pelo
corpo a todas as raízes,
preso pela sede
a todas as fontes…
Apelo direto à luta pela dignidade da
vida, contra a opressão social e a consciência ôntica face à precariedade da
existência, mas que para o poeta não é sinal de angústia metafísica, antes
exigência ética da própria luta…
“…Levanta-te
a cantar
-através de
pântanos e de rochas
…homem livre
que caminhas
amarrado ao
Carro da Morte
até o Grande
Silêncio.”[52]
A omnipresença da morte em toda a natureza e de novo a consciência ôntica
da sua sombra atravessam os versos de Ruy Belo. “Mais triste é termos de nascer e morrer/e haver árvores no fim
da rua”.[53]
Mas o poeta encontra, na expressão do amor e na partilha com os entes
queridos das emoções despertas pelo contacto com a diversidade da vida na
natureza, os momentos de resistência ao fim inexorável…[54] Na evocação da infância.[55] Na evocação da mulher amada.“…Éramos tão jovens
nesse tempo /que não sabíamos sequer que nos amávamos assim…”[56]
Para
Casimiro de Brito nós somos a unidade da vida, amor e morte, mas identificados
com a terra somos também a natureza que nega a morte.“…Na paz discreta do barro e dos limos /apodreço fascinado:
preparo-me /para que salto”?[57] O eterno retorno à terra-mãe, o fim biológico de cada
ser, sem angústia metafísica, para que a diversidade da vida germine e se
renove.
“…A meu lado
germina no lodo
o sabor a
sangue das plantas
seu peso maduro
de vento e orvalho…
Ascendo à
terra vegetal
como quem
bebe
e bebo o
fulgor da morte…” [58]
Mas o amor não são apenas “os corpos azuis que se amam na noite por ti despida”
sobre ervas orvalhadas e luar, é a ligação com a beleza da terra “Íntimo rumor
do mundo fecundada. Lume e perfume do sol“.[59] O amor que envolve o combate social, solidariamente
partilhado com aquele punhado de homens cercados na fortaleza onde se travam
“as lutas pela terra e pelo pão” .
Abordemos, por fim, a obra de Luiza Neto Jorge, para nela reconhecer a
poesia da sublevação contra um mundo inaceitável, sobretudo para a mulher e com
esta temática abrir caminho para a reflexão sobre as novas éticas que emergem
no nosso tempo. [60]
Do seu fabulário moderno, monumento à dignidade e diversidade da própria
vida e ao esforço de a viver, que num estilo mais próximo das estéticas
pós-modernistas repisa caminhos que escritores, como Aquilino, Torga ou Raul
Brandão, abriram desde a década de 20 ao reconhecerem a condição ética dos
animais, retiremos o poema homólogo “Monumento às Aves“.
“ Com a
segurança exata do guindaste
erguem-se
transportando
o peso
intenso
do objeto
que se ergue…” [61]
…e cuja
voz é universal, e é neste sentido que queremos dizer do seu estilo ser diverso
dos antecessores e marcado pelo “espírito“ atual da escrita, sincrética e
semiótica, mais que figurativa e realista.
Quando nos aproximamos do capítulo dedicado à Ética Animal, talvez seja de novo
o momento para voltarmos a comparar o pensamento de figuras de referência do
movimento ambientalista e dos nossos escritores, procurando estabelecer até que
ponto estes levaram a cabo uma reflexão crítica sobre o antropocentrismo e
contribuíram para a sua superação.
“Que
sentimentos, que coragem ou que motivos levaram o homem no passado a levar à
boca, pela primeira vez, a carne martirizada… a servir à mesa corpos mortos e mesmo ídolos e a usar como alimento
a carne dos membros dos animais que, pouco antes, baliam, mugiam, marchavam e
viam? Como é que os seus olhos são insensíveis ao martírio? Como o seu gosto
não se enoja de horror, quando manipula ferimentos repugnantes?”[62] “Comerem-se uns animais aos outros é
voracidade e sevícia, e não estatuto da natureza.”[63]
Quando anteriormente tentámos qualificar as contribuições dos nossos poetas
e prosadores definindo-as como uma espécie de antropocentrismo ecológico, afirmámos
que foram ainda mais além na visão crítica e autocrítica das relações do homem
com os outros seres vivos e com a natureza em geral. Queríamos assim referir-nos,
nomeadamente, aos problemas levantados pela ética animal.
Citámos já Gordon Taylor para evidenciar a existência no ser humano de
sólidos instintos territoriais que a instabilidade da vida social moderna
esfrangalha, ao mesmo tempo que dissolve
as comunidades étnicas, gerando gravíssimas perturbações psicossomáticas nos
indivíduos. A extensão deste problema é tal que abarca não apenas as tribos
antiquíssimas que o avanço da civilização aniquila, mas também a destruição do
nosso próprio mundo rural e o desenraizamento dos seus naturais nas periferias
das grandes cidades. Para atingir o horror de novos holocaustos que vitimam
comunidades africanas em todo o continente, as nações balcânicas e do Médio
Oriente, da Ásia Menor e do Sul, das ilhas oceânicas e da América Central,
divididas e oprimidas pelos mapas políticos e pelos pactos coloniais e neocoloniais.
Caberia ao australiano Singer e ao americano Regan enfatizar os sentimentos
e os direitos dos animais face à brutalidade dos processos produtivos modernos:
clonagem genética, jaulas prisão, rações baseadas na carne triturada de animais
mortos e saturadas de hormonas, violação sistemática dos ritmos naturais e das
necessidades da vida animal, tudo isto em função do lucro máximo.
Em nome do princípio da igualdade, os dois autores referidos recusam o
conceito da superioridade da espécie humana, que comparam ao racismo, por
violar aquele princípio, censurando à maioria dos humanos o não reconhecimento
da capacidade de sentir e sofrer dos animais. Nas suas obras afirmam que os
animais são sujeitos de interesse em não sofrer e também, acrescenta Regan, são
sujeitos de direito, por que são sujeitos de uma experiência de vida que possui
valor intrínseco.
Peter Singer merece-nos uma referência especial, para assinalar as perseguições
e boicotes de que foi vítima, em diversos países do mundo mais desenvolvido,
Alemanha à cabeça, não diretamente por causa das conceções acerca da ética
animal, mas sobretudo pela sua defesa de algumas formas de eutanásia. Os seus detratores
tomaram a preservação da vida humana como bandeira, acusando-o de ignorar o seu
valor intrínseco e, naturalmente, de se preocupar mais com os animais do que
com as pessoas.[64]
Não é o lugar, aqui, para explorarmos este último conceito na ótica do
filósofo, mas importa realçar que as suas preocupações quanto à defesa dos
direitos dos animais estão carregadas de “humanismo“ e o seu discurso crítico
se preocupa sobremaneira com a hipocrisia da moral oficial no tratamento do
conflito entre ricos e pobres, sejam pessoas ou países. Vejamos, resumidamente,
os seus princípios no que toca à ética animal:
Partindo da tese de que “…alguns animais não humanos parecem ser racionais
e conscientes de si, concebendo-se como seres distintos que possuem um passado
e um futuro…”, propõe-nos uma ética gradualista contra o assassinato de
animais, que no seu patamar superior estende aos chimpanzés, gorilas e
orangotangos a mesma proteção devida aos seres humanos.[65] Questiona se esta restrição não deve ser alargada a
todos os mamíferos, para reconhecer depois que, face a outros animais que não
são seres racionais e autoconscientes, a sua argumentação enfraquece, postulando
embora que é sempre inaceitável provocar a morte prematura de biliões de animais.
No entanto, admite que há situações especiais em que pode não ser errado
permitir a substituição, por morte, de uns animais por outros (o abate indolor
das galinhas para alimento e para dar lugar a novos indivíduos, como exemplo). Mas
conclui que lhe parece ser melhor elevar a princípio elementar o evitar
matá-los, porque não são essenciais à
alimentação humana, a menos que isso seja justificado tendo em vista a própria sobrevivência. Na obra citada, Singer
denuncia, com as próprias cifras do Presidente do Banco Mundial e os seus
relatórios, o drama da “ pobreza absoluta “ no planeta, destacando a morte, que
classifica como assassinato, de 14 milhões de crianças por ano, devido a
carências nutritivas, ao pôr em evidência que o mundo produz alimentos e bens
suficientes para erradicar estes problemas, pelo que a sua génese está nas
relações injustas de distribuição. Postulando a obrigação ética de ajudar, vai
desmontando uma a uma as objeções que se lhe opõem_ cuidar de nós mesmos;
direitos de propriedade; a ética da triagem populacional; deixar a cargo do
governo…e a derradeira, o padrão alto da ajuda. Para concluir que podemos e
devemos impedir uma parcela da pobreza absoluta, sem que isso implique de facto
sacrificar nada de importância moral comparável, sendo a prioridade “… as
necessidades de vida ou morte dos outros” e deixando explícito que, se é mais
importante lutar politicamente pelos direitos dos mais pobres, nada nos inibe
de lhe somar a ajuda concreta possível.[66]
Torna assim claro que há, entre a fome no mundo e a matança brutal dos
animais, um padrão civilizacional comum, o da sociedade de consumo atual e do
seu modo amoral e desigual de produção e circulação das mercadorias.
Em apoio desta linha de pensamento, o conhecimento aprofundado das comunidades
animais permitiu revelar formas notáveis da sua organização comunitária e
inusitadas capacidades: a inteligência dos golfinhos, o uso de instrumentos de
trabalho por algumas espécies de chimpanzés, o sistema de vida igualitária das
comunidades de aves de rapina, o formidável instinto maternal das baleias,
complexos e ternos jogos nupciais... enfim, potências animais até então
ignoradas, que em comum parecem ter a capacidade afetiva, de sofrimento e de
comunicação, elementos chave para fundar uma nova perspectiva ética.
Aqui também assinalamos a conotação geopolítica desta problemática, nascida
exatamente no seio das sociedades mais desenvolvidas do ocidente. Não é no entanto
a hora e o lugar para refletir sobre as perspectivas das culturas orientais e
doutras ditas primitivas, que propõem desde a antiguidade uma atitude de
respeito pela vida e pela natureza, e o recolocar do homem numa posição mais
modesta perante a terra e no seio do
universo.
Mas, precisamente, porque as sociedades ocidentais mais desenvolvidas
hegemonizam a produção social e exportam internacionalmente o seu modelo,
interessa-nos focalizar nelas o nosso trabalho de investigação comparada. Nos
próximos capítulos evidenciaremos o contributo pioneiro dos nossos escritores,
no domínio da reflexão acerca das potências animais que ultrapassam o mero
instinto, e daremos conta de como as suas preposições intervêm no âmbito da
reflexão filosófica e política que visa ultrapassar tanto o antropocentrismo
egoísta como a ética animal anti-humanista, com destaque para Aquilino, Torga e
Brandão.
A cultura camponesa com a qual Aquilino e Torga, Ferreira de Castro e Raul Brandão,
Redol ou Namora conviveram, na primeira metade do século XX, conservava nas
relações com a terra, os animais, a paisagem humanizada, nos costumes e no
imaginário mágico e religioso, uma ética antiquíssima que a luta pela
sobrevivência e o conhecimento empírico da vida moldaram contraditoriamente.
Os fojos dos lobos são armadilhas que remontam à pré-história e permitiam o
extermínio sistemático das alcateias, mas as peças de caça pejadas estavam
interditas aos caçadores; as grandes aves de rapina, como os grifos,
verdadeiros agentes sanitários que limpavam as serranias dos cadáveres e
miasmas doentios eram respeitadas, mas as mais pequenas, como os milhafres,
acusados de rapinar as capoeiras, eram perseguidos nos ninhos.
A proximidade entre os vizinhos, tal como do criador e do consumidor dos
animais, quando as economias de subsistência resistiam ainda ao mercado único e
capitalista, conduziam à permanência de laços de solidariedade social e de afetividade
com os animais, hoje totalmente estranhos ao cidadão urbano que não convive com
seu parceiro de condomínio e consome a carne iconizada
(hamburger-cachorro-prego-rissol etc.) de exemplares completamente desconhecidos.
Paradigmas dessa afetividade perdida (e contraditória) são, por exemplo, a
partilha social da dor da morte ou da alegria do casamento, com os rituais de
velório e do funeral coletivos, ou a oferta de guloseimas aos vizinhos. São as
lágrimas da mulher que criou o porco quando a matança se inicia, mesmo sabendo
que esse sacrifício é essencial à subsistência do lar e a entrega dessa tarefa a
um especialista estranho à família, chamado a executar impessoalmente o golpe
fatal. São as canções de incitamento dos bois quando lavram e o corte diário de
erva fresca para o "vivo" da casa... mas também o uso da vergasta e
do aguilhão apenas quando já não há outro meio de conduzir o animal...
Os processos de domesticação conduziram
a uma ética animal empírica que a produção moderna desprezou completamente:
A regra de aviar primeiro os animais domésticos e só depois servir a ceia.
A prática de criar os animais em territórios amplos, permitindo-lhes
utilizar o espaço segundo as suas necessidades e ritmos biológicos, alimentares,
de acasalamento e de pisoteio. O dever de ajudar as crias a nascer e a percorrer
longas distâncias.
A preocupação de renovar regularmente as camas dos animais. O tratamento
higiénico, os cuidados e afetos, prestados quotidianamente aos animais de
locomoção.
A conservação dos exemplares envelhecidos ou diminuídos, já sem interesse económico.
A morte piedosa de animais gravemente doentes ou aleijados por imperativo de
pôr fim ao seu sofrimento visível e insuportável...
Constituem exemplos concretos, entre muitos outros, dessa ética imanente.
Na verdade, não são apenas razões estritas de ordem económica ou de pragmatismo
funcional que explicam a construção secular dessas práticas. Os animais possuem
códigos de comunicação e resposta afetiva que interagem com o tratamento
humano. E esse capital afetivo entrelaçou-se nas memórias e atitudes da
consciência coletiva das comunidades rurais, transmitidas de geração em
geração. O seu imaginário reconhece a transcendência ética destes factos e não
apenas em função do imperativo religioso, por isso o antigo inimigo tira o
chapéu na passagem do funeral e o camponês endurecido enterra o seu cão sem
conseguir esconder os sentimentos de desgosto.
A mecanização do quotidiano anónimo das cidades e das suas práticas de
consumo, a urbanização maciça do espaço rural, traduziram-se não apenas na
redução do património biogenético dos campos mas também da sua herança ética
secular, favorecendo o amoralismo e o indiferentismo deste fim de século.
Veremos como os nossos escritores deram testemunho da existência daqueles
valores e escreveram para os preservar e transmitir às gerações futuras, quando
estas questões ainda não preocupavam as elites intelectuais dos países mais
desenvolvidos.
A propósito desta obra, escrita em 1924 como literatura infantil, Aquilino
Ribeiro produziu o seguinte comentário.
“…Os meus
assuntos vou buscá-los à história natural racionalizando-os. Nós inventamos,
para explicar a mecânica da nossa inteligência, esta palavra mágica: razão. Ao
complexo de fenómenos, de que o nosso cérebro é Teatro, preside esta espécie de
deusa, ou melhor, fada. Que mais não seja é um expoente. Para os animais, o instinto é a origem e faculdade
acima dos seus atos. Mas eu, por experiência, tenho verificado que há actos da
vida animal, o homem à parte, que superam o âmbito de tal potência. Ora são esses atos que eu transponho, humanizo,
no que imagino tais bichos movidos pelos mesmos móbiles vitais que nos animam a
nós.…”[67]
Sublinho a afirmação de Aquilino, baseada na sua experiência, de que há atos
da vida animal que superam o instinto e a aproximam da vida humana. E atente-se
na reflexão posterior, acerca da raposa Salta-Pocinhas.
“…É evidente
que a minha personagem tem este encanto: existir, ser conhecida, e eu pôr à
vista a sua relojoaria íntima, engenhosa e arteira, e cada criança admirar nela
as habilidades da nossa espécie para subsistir e impor-se na natureza, que não
tem simpatias especiais para nenhum dos seus seres.…”[68]
Retenhamos aqui o pensamento final: “… A natureza não tem simpatias
especiais para nenhum dos seus seres .”
Eis uma conclusão notável, do ponto de vista científico, sobre as relações
entre a natureza e o homem de consequências revolucionárias para fundar uma
nova visão ética, onde a capacidade de sentir (alegria e tristeza, dor e
felicidade, prazer …) enfim, toda a dualidade do ofício de viver, se transforma
num critério com relevância moral.
Penetremos com Aquilino na mente da velha comadre, idosa e acabada, no pino
do terrível inverno das Beiras.“…recordava as doces horas levadas juntos, as
suas núpcias, os seus folguedos na relva orvalhada do rocio da alva, pelas
manhãs de sol…”[69] “…A arrotar de fartos estiravam-se sobre as quatro
patas; vagarosamente lambiam o beiço, o colo, as mãos…”[70]
As duas epopeias, a da luta pela sobrevivência da espécie humana e das outras
espécies animais, assumem um paralelo filosófico e uma dignidade ética, que
questiona ao homem o papel de rei tirano da natureza. A audácia suprema que o
impele para a luta é aqui retratada como a astúcia de “Ulisses, havida, sob
determinados aspetos, como a boa e admirável e por extensão a velhacaria social”
.
É nesta outra linha de leitura simbólica que o autor nos transporta paralelamente
e através de diversas alegorias à nossa própria sociedade, seja com a
indiferença para a condição dos pobres, dos velhos e dos esfomeados, seja no
retrato da hipocrisia nas relações políticas. Como se vê na reação dos bichos à
morte simulada do vizo-rei da floresta, o lobo Brutamontes.[71] Ou na recusa dos da sua espécie, em partilhar lauto
banquete com a velha raposa esfomeada.[72]
Mas há ainda um outro plano de interpretação do texto: Aquilino Ribeiro
traça-nos um vasto e pormenorizado fresco da biodiversidade das florestas
endógenas do nosso país, semeadas de carvalhos e castanheiros, que garantiam
aos bichos alimento e abrigo. Como na cena da leitura da sentença do vizo-rei,
contra a nossa heroína.“…Lá estavam doninhas e arganazes, roedores e répteis,
e, pelas árvores, a águia, o abutre, o bufo, o nebri e mais povo dos céus e
matas de Portugal'. A desbanda, como quem ali não é chamado, via-se erguido
sobre as patas, grandão, paspalhão, o urso Mariana…”[73] A sua preocupação com as espécies ameaçadas leva-o a
aproveitar o ensejo para denunciar a ameaça de extinção que pesa sobre o lince,
sessenta anos antes da campanha nacional para o salvar, no último reduto da
Malcata ! “…Ora um bicho de vista penetrante, ao qual saem das orelhas pincéis
de barbear, subira acima dum penedinho. Era o lince, nomeado também
lobo-cerval, animal que, de batido e perseguido, caçado e fuzilado, vai rareando
nos bosques…”[74] E a própria figura, aparentemente estranha, do urso
Mariana, que na trama narrativa é um fugitivo do cativeiro das feiras onde um
húngaro o exibia, funciona como denúncia da liquidação e aviltamento de uma
espécie nobre (o urso aquiliniano é sábio) que compartilhou com todas as que o livrinho
descreve, os bosques do nosso país, até ao séc. XVII.[75]
Um fresco animado pelas vozes e cânticos da natureza. O Bufo Real, que
parece querer dizer: “Viram bois! Viram bois,
O cavaleiro do inverno”, que se “ouvia por detrás das montanhas a
relinchar! Os gritos dos lavradores conduzindo a junta: …eh lá moirisco!” Os
grilos que repetem “Sou livre! Sou livre!” E as rãs nos charcos e as rolas nas
clareiras, respondendo. “Vem cá para fora! Vem cá para fora.” O piar lúgubre do
mocho: “ Que fizeste tu! Que fizeste tu!” E o trinado cortante do tentilhão
“charim….chrimm…..charimm”.
Onde o bicho-homem, animal das clareiras e plainos, segundo inimigo da
raposa, depois do inverno rigoroso e antes dos cães traidores, volta a ser
bicho.
É a dona raposa quem nos ensina:
I
“O inverno é
a estação do ano em que a madre-natureza nos veste de bom pelote mas despeja a
terra de frutos.
Muitos insetos e passarinhos voaram
para o céu dos pardais e coelhos e perdizes são diabretes de finura. A
raposinha arranjou saia nova, mas se não tem bom abrigo, se não é fina da vista
e ligeira do pé, nunca mais torna a ver a Primavera que lhe despe o pelote e
lhe enche o fole.”
II
“0 homem é
aquele bicho de duas pernas que parece que não tem medo de nada e tem medo de
tudo, que quer saber tudo e não sabe nada, e por isso é mau, cruel e
caprichoso. Inferior a nós na corrida, no faro, e no ardil, inventou para nos
combater as armas de fogo, as ratoeiras de ferro e os cães ensinados. “
A aproximação à filosofia lorenziana,
que lhe foi posterior, é também aqui sugerida: o homem encarado na sua ligação
umbilical com o comportamento dos animais superiores, mas sem as capacidades
naturais que esses seres adquiriram na sua relação com o meio ambiente.
III
“Os cães -
alguns classificam de sabujos e rafeiros-são para nós, seres livres, os bichos
mais justamente odiados do Universo. Sem
eles, o homem era um cego à nossa beira, a tocar berimbau. Sem eles, a terra
ficava o paraíso dos raposos; dançávamos nas capoeiras e em paz trincaríamos os
ossos dos anhos novos. São escravos do homem; o dono bate-lhes, e lambem a mão
que os fere; o dono corre-os à pedra, e vão, humildes, no rasto dele. Não há
maiores feras para quem não seja o amo. Louvado seja o lobo que, se os pilha a
jeito, fá-los em almôndegas…”[76]
Transportemos esta metáfora para o plano social e encontramos os corpos especiais
da repressão estatal, as cadeias burocráticas de controlo da produção e da
administração pública e o elogio libertário que sai da pena de Aquilino tão
coerentemente como da sua prática de cidadania.
A ética animal, num enquadramento humanista e a valorização da experiência
do sentir, como critério moral e moralizador das relações do homem com a
sociedade e a natureza, atravessam a obra de Aquilino Ribeiro e também de
Miguel Torga.
Este outro autor prossegue na linha aquiliniana de humanizar a vida dos
Bichos, abordando todas as emoções e sentimentos que marcam a condição humana
nos retratos que traçam de diversos animais. Vamos reproduzi-los em rápido
esboço.
Nero
A agonia do cão perdigueiro que rememora nas suas derradeiras horas as recordações
mais ternas da infância.[77] “O calvário da educação“ que o havia de transformar
num verdadeiro caçador.[78] E, finalmente, os últimos instantes em que o filme da
vida adulta acelera e atravessa, até ao esquecimento, os cinco rios do inferno.[79]
Mago
O gato vadio, entretanto instalado no remanso do lar, em conflito de
consciência entre a acomodação e a liberdade.[80] Que tenta, num último lance, recuperar os amores e a
dignidade perdida junto dos seus companheiros, mas, vencido, vai consumir-se
numa “humilhação sem esperança“.[81]
Morgado
O jerico fiel, sacrificado à morte ignominiosa nas garras dos lobos por um
dono cobarde que, à despedida, só lamenta a perda das dezassete libras com que
o comprara…[82]
Bambo
O sapo que conhecia a ciência da germinação da vida e a ensinava aos
homens…[83] Morto pela ignorância e a estupidez humanas.[84]
Tenório
O galo, símbolo da virilidade e do marialvismo.[85] Pobre diabo, miseravelmente degolado no alguidar quando
o galaroz lhe ocupou o lugar.[86]
Cega - Rega
Humilde criatura, nascida num monturo, embrião, larva e crisálida que se
eleva até à crista do castanheiro. Ícone da renovação eterna da vida, metamorfose
da nossa própria existência efémera, transmitindo a mensagem dos poetas que
celebram a dignidade humana perante o grande e supremo mistério…[87]
Ladino
Símbolo da resistência do velho camponês que escapou aos perigos mortais da
infância, venceu febres e fomes, semeou a sua descendência a esmo e, colocado
perante a gadanha da morte, responde com a negaça a quem lhe reza pela alma. [88]
Farrusco
Laboriosamente entregue à sua faina social
de alegrar as almas e limpar as poças e ribeiros dos insetos nocivos. [89]
Miura
O touro nobre e livre encurralado na arena e que prefere a morte à
humilhação, num combate desigual com a violência irracional do ser humano.[90]
Vicente
Hipersímbolo da autonomia das criaturas face ao arbítrio dos deuses, o
corvo Vicente encarna todos os arquétipos do esforço de libertação dos homens
dos seus limites naturais. Encurralado na Arca de Noé, metáfora da Terra fustigada
pela cólera de Deus contra a Babel dos Homem.[91] Ele desafia o próprio criador, reclamando o direito a
decidir o seu destino.[92]
4.4.1. A Eutanásia em questão
No prefácio dos Novos Contos da Montanha, Torga traça-nos um quadro de realismo
cru, com a vida dos camponeses nas montanhas.[93] E fá-lo para nos comprometer com o seu destino[94] O primeiro dos seus contos, o Alma-Grande, leva-nos
até aos limites da condição humana, conduzindo-nos ao momento da agonia dos
homens e ao problema da eutanásia, sob a ficção de uma terra de judeus,
comunidade reprimida ao longo dos séculos pela religião cristã, mas que conserva
as convicções e as protege até ao fim.[95] O escritor traça um primeiro quadro da solidariedade
e fraternidade na hora da morte, que a cultura urbana e individualista fez desaparecer.
Quando o tio Alma-Grande, abafador impiedoso e piedoso dos moribundos sem esperança,
cuja função social é evitar com a eutanásia a revelação dos segredos da aldeia,
entra na sala onde o doente agoniza, encontra a aldeia serrana em peso, no velório
de Isaac.[96] E logo a seguir estamos a presenciar a sinistra
tarefa do abafador e a partilhar o drama terrível das suas emoções.[97]
“…- Não...
Ainda não... Ainda não…Quantas vezes o abafador tinha escutado aquilo, gritos
de desespero, apelos sôfregos e angustiados, sem se deter na sua missão
sagrada! Quantas vezes! Desta, porém, o apelo e os gemidos soavam-lhe
nos ouvidos doutra maneira…”[98]
“…Um esforço supremo do Isaac para se livrar das garras que o apertavam e a presença
atónita do Abel tiraram às mãos e ao joelho do Alma-Grande a força
habitual. Bem que se extremara nele o
assassino, o animal que bebia a grossos tragos o fio de vida que encontrava no
caminho! Bem que se lhe avivava na
consciência a certeza de que era matar a razão do seu destino! Em vão.
O puro instinto não tinha coragem para empurrar aquelas mãos e aquele
joelho diante de uma testemunha. Ergueu-se.
Com o rosto coberto por um pano de lividez igual à do agonizante,
voltou-se. E sem coragem para encarar os
arregalados e aflitos olhos do pequeno, que o varavam, silenciosamente, saiu. Atravessou
a sala cabisbaixo, longe da grandeza trágica das outras vezes. Deixava atrás de si a vida, e a vida não lhe dava
grandeza…”[99]
O conto
termina com o ajuste de contas de Isaac, que assassina o seu algoz“…- Não matarás...Assim
era no Evangelho. Fora dele, numa lei diferente, a moral tinha outros caminhos,
como o próprio Alma-Grande sabia. (…) Possantes, inexoráveis, as tenazes iam
apertando sempre. E, com mais um estertor apenas, estavam em paz os três. O
Isaac tinha a sua vingança, o Alma-Grande já não sentia medo, e a criança compreendera,
afinal…”[100]
Nas condições de carência dos modernos cuidados
de saúde e de uma comunidade obrigada a esconder a sua verdadeira religião, o ato
de eutanásia não voluntária surge eticamente justificado, primeiro, pelo
diagnóstico tecnocientífico médico, que declara não haver esperança, depois
pela decisão da família, apoiada pelo conselho de vizinhos, de proteger o
segredo religioso e proibido da comunidade, que poderia ser revelado ao padre
católico no ato da extrema-unção. E, por último, em nome do princípio da
beneficência, com a finalidade de aliviar o sofrimento do moribundo. Que o
executor, apesar da sua experiência e frieza, não leva a cabo, cedendo à
presença do filho de Isaac, quando o testemunho da criança passa a representar,
naquele trágico momento, o risco de condenação pela sociedade da eutanásia,
transformada em ameaça de assassinato pelo olhar de espanto e pavor do filho da
vítima. Ou seja, o princípio da autonomia da vítima respeitado no limite, mas
agora, não como resultado do seu livre arbítrio mas através da intervenção
dessa outra instância que é, afinal, a moral familiar dominante na sociedade e
o seu imperativo legal.
4.4.2. O limiar entre o
Homem e o Animal
Para completarmos este quadro falta-nos talvez analisar as obras que estudam
a psicologia e a conduta do homem contemporâneo, massificado e envolvido pelo
padrão de vida da classe média, situando-o nas condições extremas onde se
revela a natureza humana, um pouco ao jeito mas ao contrário de A Selva, de Ferreira de Castro, enquadrando-o
agora na selva urbana. Porque foi escrito já em 1979, deixamos para o
fim deste trabalho a referência, necessariamente curta, ao Portuguex, de Armando da Silva Carvalho. Que possui um valor
acrescido e raro no panorama da cultura nacional dominada pela omnipresença de
um “Deus que não ri“, e de um homem português que raras vezes consegue rir de
si próprio, enquanto aquela obra é a própria máscara do riso irónico e satírico
do autor, retomando uma outra tradição literária singular, a da sátira cortante
de O’Neill (que a soube misturar com um lirismo redondo e humano)
Mas concentremo-nos de novo no tema que encabeça este capítulo. Recordemos,
a propósito, a observação de Aquilino quando reconhece atos da vida animal que
superam o instinto e a aproximam da vida humana.[101] E o comentário, no contexto da caça à baleia nos
Açores, de Raul Brandão.[102]
”...Contam que a mãe acompanhada pelo filho, que nasce com
quatro ou cinco metros de comprimento, é mais fácil de subjugar, chegando o
ambaque (baleia preta) a deixar-se matar quando lhe apanham o pequeno: basta feri-lo
ao pé do rabo e puxá-lo para o bote. A mãe já não o larga e prefere, se não
pode fugir com ele metido debaixo da asa, que o acabem às lançadas. Quer dizer:
esta coisa monstruosa e zincada, com óleo na cabeça, não só come e digere, não
só dorme e digere, é capaz de ternura e
sacrifício[103]
Acrescentemos - lhe a cena do confronto direto entre os baleeiros e a sua
presa, sublinhando o terrível comentário de Raul Brandão acerca da capacidade
de matar da espécie humana: “…Mas há principalmente a necessidade de matar, de
lutar (numa vida que é mais monótona do que em qualquer parte _ duas vezes
monótona pelo mar que os circunda e pelos montes que os entaipam), de vencer as
contrariedades e os perigos _ sentimento com raízes no mais profundo da alma
humana. “[104]
É nesse limiar estreito entre o homem e o animal que vivem as personagens
torguianas, como o Leproso, imolado lentamente pelo fogo vingativo que os seus
próprios conterrâneos atearam.[105]
Figuras como a de Madalena, intercalada no livro Os Bichos, mãe solteira que solitariamente arrisca a vida, em plena
serra, para esconder o parto pecaminoso dos olhares da aldeia.[106]
E do pastor Ramiro, incapaz de comunicar com os outros homens.“…A alma
enchera-se-lhe de silêncio em vinte anos de Marão…”[107]
São como animais resignados os seringueiros das selvas amazónicas de
Ferreira de Castro, que o isolamento transforma em transgressores sexuais,
capazes de escolher como parceiro…a égua do capataz![108] E quando o romance atinge o seu final, com o episódio
trágico da vingança do criado negro, que imola pelo fogo o patrão, castigando-o
por ter escravizado e chicoteado os seringueiros fugitivos, o narratário do
texto, personificado no jovem português, deixa-nos esta derradeira reflexão
sobre a condição humana: “…Não. Não acusaria jamais. A ninguém! A ninguém!
Depois do que vira, em si e nos outros, quando o instinto pode mais e acorda
mil reações ignoradas, mil imposições que tiranizam os próprios lúcidos e os
desvairam, e os amarrotam, e os igualam aos que trazem alma primitiva, só havia
a acusar a origem remota, que não fora perfeita na sua criação. Mas também ela
era irresponsável e perdia-se na lenda ou na hipótese, longínqua e
obscuramente…”[109] A fábula Aquiliniana do Andam
Faunos pelos Bosques conduz-nos ao desfazer da amarga ilusão do Padre
Dâmaso, o bom e afável abade aldeão, que descobre no mais fundo das
almas cristianizadas, desde há dois mil anos, o terrível “génio” da espécie “…
A carne ululava pela carne; o homem estabelecia a sua lei moral nesta
dualidade: «idealista, sim; animal, sempre.»…”[110]
O aparente naturalismo da pós-modernidade, já
que na verdade trata-se de signos e símbolos e não de meras representações da
natureza, tem em Cardoso Pires um dos seus mais brilhantes cultores. Com ele a
metamorfose do homem em animal suspende-se no texto literário para nos revelar
essa dupla natureza da condição humana. Regressando ao Delfim, o escritor é um “furão”, o “criado é meio-cão”, as mulheres são, ao
mesmo tempo, “cabras e fêmeas de louva-a-deus”, devoradoras do macho depois do
acasalamento…e no Anjo Ancorado surge o
“meio homem, meio peixe”… É Prado Coelho quem sublinha no prefácio do Delfim a caça como uma presença constante no horizonte narrativo do autor, com
um valor simbólico que transforma a herança neorrealista, conferindo-lhe uma
carga que oscila entre “uma dimensão devoradora e uma dimensão lúdica“. Ou dito
de outro modo, uma “ ferocidade original “
a partir da qual a concorrência capitalista transforma o homem em lobo
do homem e outra que revela a dialética do ser humano, sujeito da sua própria
grandeza e miséria, em todos os sentidos.
Aquela
expressão, atribuída a Karl Marx, pretendeu definir o advento do socialismo e é
o horizonte político do movimento neorrealista, em particular, do autor de Esteiros
e Engrenagem. Soeiro Pereira Gomes termina os seus livros com a mesma
imagem de esperança: os filhos dos homens que nunca foram meninos partem à procura
do "novo dia".[111] E, como eles, marcha o povo, reclamando trabalho,
justiça e liberdade.[112]
Evoquemos agora a obra inicial de José
Fernandes Fafe.
“Vamos nus
de promessas:
por isso somos belos.
Vamos nus de promessas:
por isso somos ricos.
Vamos nus de promessas.”[113]
É o eco desta caminhada, que ressurge
nos cursos de Raul de Carvalho e não se trata aqui de apontar afinidades ideológicas,
mas de reconhecer a mensagem poética comum.
“…A trindade
dos camponeses é: pão duro, ódio calado
aos
senhores, crença de que um dia tudo se tornará
branco,
limpo, verdadeiro como a cal - alma branca
das paredes.
Será bom e igual para todos. Aleluia… “[114]
Em Alexandre Pinheiro Torres a crítica ao antropocentrismo aparece ligada
ao apelo à libertação social.[115]
“…Podemos bem
dizer que nos encontramos na idade do jazz band…Mas nunca mais chegamos
à do homem livre, à da liberdade…Que não se diga pois, que o homem muito ama
quando o amor avara nele a sua luz!”[116]
Encontramos
na obra de Casimiro de Brito o apelo à fraternidade do trabalho.
“ A
FÁBRICA: duas perspetivas
…Um buraco
medieval dentro da cidade…
…Na fábrica
porém
ainda se
respira entre os motores e o silêncio
desta
humanidade
a luz ainda se
desenvolve, a revolta...[117]
E o apoio à Revolução Social.
…Ouçam meu nome
um sabor a
terra o rumor
do pão
Revolução…” [118]
Mas essa preocupação, com a justiça social, surge já, franca e sincera, nos
versos de Cesário Verde, como em Civilizações
e Provincianas. Citemos um passo do
primeiro: “…Homens de carga! Assim as bestas vão curvadas!/ Que vida tão
custosa! Que diabo!…”[119] E também do segundo dos poemas;
“ …ei-las que vêm às manadas,
com caras de sofrimento,
Nas grandes marchas forçadas!
Vêm ao trabalho e ao
sustento,
Com fouces, sachos, enxadas…”
E dirigindo-se à branca fidalga, ao meio dia na cama, lamenta a sorte das
filhas da sua ama, que“…Vivem minadas da pulga,/ Negras do tempo e da lama.”[120]
Censura-lhe a indiferença, não é
caso que a comova, assumindo a crítica da pequena burguesia republicana,
revolucionária e democrática, contra o Antigo Regime personificado no luxo, na
indolência e no desprezo pelo povo, da fidalga ou milady.
O combate social empreendido pelos poetas do Cancioneiro, que as canções Heróicas
de Fernando Lopes Graça celebravam numa síntese vigorosa, reúnem nesta obra
o escol dos seus autores e toda a simbologia do seu imaginário artístico.
Sigamos a sequência temática da obra : “...ACORDAI.[121] ...MÃE
POBRE...[122]...CONVITE...[123]...CRUCIFIXO...[124]...FIRMEZA...[125] ...COMBATE...[126]...CANTO DE ESPERANÇA...” Talvez em nenhum outro terreno,
como o da defesa da liberdade e da vida democrática, se tenha manifestado uma
tão vasta e comum solidariedade entre poetas e prosadores de múltiplas
tendências.[127]
Numa breve panorâmica, renovemos a memória do seu testemunho. Oriundo da Nova Renascença, Afonso Lopes Vieira.
“Se alguém
se admirar de que as realizações materiais e espirituais do Estado Novo não
bastaram para nos tornar agradecidos e fiéis, responderemos …Um estádio tem
muito menos importância que uma criança com fome. Em suma, tanto tempo este
povo foi obrigado a conservar-se mudo e quedo que acabou por se desinteressar
da coisa pública, de que foi sempre aliás tão cioso”.[128]
Um dos companheiros da Presença, Irene Lisboa, de quem José Gomes Ferreira
disse.
“…A causa do
povo, em suma, do povo verdadeiro que a autora das Folhas Volantes, que
sonhava vendê-las nas feiras, sempre acompanhou sem desfalecimento, talvez para
poder amar, com mais profundidade e limpidez de coração, a sua mãe camponesa.
Na verdade, parafraseando Saint-Just na Convenção, eu direi que nunca se
escreve inocentemente.”[129]
Recordemos a intervenção peculiar dos surrealistas.“…em qualquer país_ e em
qualquer época_ a sua procura incessante « de um impossível realizado» «no ato
mágico que somos», o «exceder-se de tal forma que não seja possível concetuar-se»,
a recusa, quási, ou como, de Cátaro, em ingerir o alimento geral, seria
propósito perigoso e difícil de manter. No entanto, o tempo vivido sob a
ditadura de Salazar, sob a qual «o ar era um vómito e nós seres abjetos» agravaria
terrivelmente os custos do seu propósito.”[130]
Vivia-se num ambiente concentracionário, que Alexandre O ‘Neill exorcizou
no seu Poema Pouco Original do Medo:
“( Penso no
que o medo vai ter
e tenho medo
que é justamente
que o medo
quer )
…
O medo vai ter
tudo
quase tudo
e cada um
por seu caminho
havemos
todos de chegar
quase todos
a ratos
Sim
a ratos” [131]
A alegoria, que encontrámos atrás em Afonso Lopes Vieira, era um método
aconselhável, perante o rigor da censura, assumisse a forma do Dinossáurio Excelentíssimo, de Cardoso
Pires, da Cidade das Flores de
Augusto Abelaira, ou do poema Filipe II, de Gedeão.
“ Foi dono
da Terra,
foi senhor
do Mundo,
nada lhe
faltava…
O que ele
não tinha
era um fecho
éclair.”[132]
Um ambiente que Natália Correia tornou visível, límpida e impiedosamente,
no seu belíssimo poema Queixa das Almas
Jovens Censuradas [133].
“ (…)
Dão-nos um
nome e um jornal
Um avião e um violino
mas não nos dão o animal
que espeta os cornos no destino…”
Com a luta armada ainda longe, os temas coloniais estão presentes na obra
de Rui Cinatti, escritor timorense ou dos luso-Cabo-Verdianos Manuel Lopes e
Baltasar Lopes, tal como na obra de Alexandre Pinheiro Torres, que referimos anteriormente,
abordados no contexto da crise ambiental nas áreas das florestas tropicais.[134] Em A Nau de
Quixibá, deste último escritor e cuja narrativa decorre em S. Tomé, a temática política incide sobre a tomada de
consciência social de um jovem industriado pela propaganda salazarista, no
período que antecedeu a II Guerra Mundial, enquanto os primeiros testemunham a
seca e a fome mortal das gentes de Cabo Verde.
Terminemos este apontamento, com
dois romances: Terra Morta, de Castro
Soromenho.[135] História breve e dramática de um colonialismo
primário, feito de memórias das guerras de conquista e das tramas de
aculturação dos nativos, de impostos bárbaros, trabalho forçado e chicote, da
agonia lenta de uma administração retrógrada e de um comércio espoliador, que
aviltam a condição humana de senhores e servos, terra morta de Camaxilo.
E o romance de José Augusto França, Natureza
Morta, África Triste portuguesa, onde os sonhos morrem duas vezes, na
decomposição da natureza humana e na saudade sem retorno. O naufrágio das
ilusões e dos mais exaltantes sentimentos humanos, perdidos no ambiente da
floresta angolana, estranho e hostil para o colono, degradando a dignidade
humana pela separação e opressão das “raças”.
Para seguirmos a mensagem transgressora de Egito Gonçalves, com a qualidade
que Óscar Lopes lhe aponta, de acerto do relógio com a poesia ibérica de
combate social.[136] O amor como refúgio e metáfora que apela a um mundo
novo, na obra A Viagem com o Teu Rosto.[137]
Vejamos alguns extratos dos versos Notícias
do Bloqueio.
“(…)
Dirás como
trabalhamos em silêncio,
como comemos
silêncio, bebemos
silêncio,
nadamos e morremos
feridos de duro
silêncio violento”.[138]
Os versos subversivos de Daniel Filipe, ainda sob a metáfora do amor…“Em
todas as esquinas da cidade…/um cartaz denuncia o nosso amor…”
A denúncia da repressão política…
“É preciso encontrá-los
antes que seja tarde
Antes que o seu exemplo frutifique
Antes
que a invenção do amor se processe em
cadeia”
A convicção num amanhã de progresso social, a cidade simbolizando aqui a
realização da utopia, o triunfo da nova sociedade.
“…
Ei-la a cidade prometida
esperamos por ela tanto tempo
que tememos olhar o seu perfil exato
flor de raiz
que somos
meu amor”[139]
O reconhecimento de uma origem comum da vida, que forjou nas estrelas os
nossos átomos e nos aproxima geneticamente de todos os seres existentes e
extintos, o esplendor da biodiversidade na nossa época, estimada entre 5 a 30
milhões de espécies diferentes e a dúvida filosófica sobre se a espécie humana
representa de facto e para todo o sempre o seu cume de evolução, tal como a
hipótese da existência de outras formas de vida noutros mundos, levanta novos
problemas éticos que vão para além do fundamento inicial das éticas ambientais.[140] Se estas visavam, em muitos dos seus autores, preservar
o futuro da nossa espécie, não se limitaram a reposicionar mais modestamente o
homem no contexto da natureza. O antropocentrismo que emerge da crítica
ambientalista já não é o mesmo que legitimou a primazia do mercado mundial e das
suas leis amorais. Em conformidade com esta perspectiva, no plano social e do
indivíduo, o projeto da reforma da sociedade e da construção de novas
cidadanias une no seu finalismo ético (e também divide nas suas singularidades)
as grandes doutrinas religiosas e da filosofia política, assim como o arco-íris
ideológico dos ambientalistas, deixando do outro lado os partidários do neoliberalismo.
Isto é, trata-se de propor um novo modo de produção e de distribuição sociais,
através de reformas ou revoluções segundo a opinião dos diferentes
protagonistas, o que significa, quer disso se tenha consciência ou não, alterar
profundamente as relações de produção e de poder. E para atingir tais objetivos,
não existe outro caminho senão partir da experiência e das ideias que a
história nos legou, com o seu lastro de tragédia e epopeia, de sucesso e
fracasso, onde o tempo histórico se alonga e configura para além da nossa curta
vida. Recordemos apenas o episódio seiscentista do julgamento macabro de
Olivier Cromwel, herói da primeira revolução burguesa vitoriosa na Inglaterra e
que depois de morto foi desenterrado, julgado e enforcado (já cadáver) pelos
nobres regressados ao poder, que raivosamente o condenaram à vala comum. Seria
preciso esperar mais de duzentos anos para que a vaga revolucionária se
elevasse de novo, com as revoluções liberais na América e na Europa, triunfando
definitivamente no Mundo.
Veremos o que a história ainda escreverá acerca das revoluções do nosso
próprio século.
De facto, a questão nodal dos problemas do ambiente e do desenvolvimento,
em Portugal ou em qualquer outro país, é que eles constituem “… uma parte da
crise ambiental e social global que a própria humanidade atravessa em busca de
um novo modelo de civilização”, conforme lucidamente conclui Viriato Soromenho
Marques, na coletânea de ensaios anteriormente citada.[141]
Mas voltando ao antropocentrismo mitigado ou superado…A espécie humana
reconheceu que ainda tem muito a ganhar com a preservação e o relacionamento
equilibrado com os mais de vinte milhões de diferentes seres vivos que, provavelmente,
ainda existem à escala do planeta, sem que deles tenhamos qualquer informação
ou conhecimento estruturado. E emergiu uma consciência generalizada de que é
necessário e urgente corrigir as disfunções ambientais da nossa época. A
cultura tornou-se também ambiental e a biologia destaca-se, neste fim de
século, como ciência globalizadora do conhecimento e da reflexão filosófica,
vocacionada para a investigação interdisciplinar e para o progresso tecnológico,
fecundamente criadora de novas áreas de investigação e, no entanto, apenas mais
um ramo imponente do conhecimento humano, ao lado das novas físicas, da
ecologia, das poéticas modernas, dos códigos de comunicação e das doutrinas
políticas universais que arrastam consigo milhões de destinos humanos…
Mas se enquadrarmos o surgimento dos antepassados da espécie humana há 4 ou
5 milhões de anos, no quadro do tempo biológico, que é imenso, nada nos
assegura que, tal como aconteceu com
os dinossáurios há sessenta e cinco milhões de anos, o reino dos mamíferos não
termine e outras formas de existência mais avançadas e inteligentes continuem a
perpetuar a música da vida pelos espaços siderais. E ninguém pode imaginar hoje
qual é o elo da cadeia onde o salto evolutivo se produzirá, como ninguém sonhou
antes que o tetravô da nossa condição de quadrúmanos fosse um insignificante
roedor, que sobreviveu à extinção generalizada das espécies dominantes no final
da era mesozoica.[142]
Admitamos que o homem atual possa ser esse elo, como irónica mas
esperançadamente afirma Konrad Lorenz:”…o elo entre o animal e o homem
verdadeiramente humano somos nós.”
Em coerência, devemos igualmente considerar que os múltiplos laços entre
todas as formas de vida (e mesmo destas com o ambiente abiótico), obrigam, para
além do dever de preservação da nossa espécie, a conservar a diversidade dos
seres e os seus nichos ambientais, de cujo equilíbrio dinâmico tudo depende.
E um passo em frente na construção das novas éticas passará talvez pelos
princípios que anteriormente fomos extraindo das referências a Kant, a Marx e a
Lévi Strauss, defendidos por estes filósofos em períodos históricos diferentes,
mas que ainda não encontraram condições histórico - sociais e ambientais para a
sua plena realização.
De Kant: Cada homem deve ser tido como um fim em si mesmo e nunca como o
meio de atingir o fim de outrem.
De Marx: De cada um segundo as suas possibilidades e a cada um segundo o
seu trabalho. Para: De cada um segundo as suas possibilidades e a cada um
segundo as suas necessidades.
De Lévi Strauss: O verdadeiro humanismo não começa por si próprio, devendo
colocar o mundo antes da vida, a vida antes do Homem e o respeito pelos outros antes do amor
próprio.
Veremos adiante como o belíssimo poema de Jorge de Sena traduz aqueles três
princípios, no contexto da crise geral da nossa civilização e numa perspectiva
ética ambientalista.[143]
Um mundo onde prevaleça o primado da ética sobre a moral política que, atualmente,
adota como único princípio válido o de que os meios justificam os fins; o
primado da ética sobre a justiça de classe que anuncia, como fim da história e
ordem natural da sociedade, o triunfo da exclusão social; e o primado da ética
sobre a história, sangrenta, de todas as civilizações, eis o programa de
combate social que parece emergir dos pressupostas filosóficos das novas éticas
ambientais.
“ Carta a meus filhos, sobre os Fuzilamentos de Goya “
O poema de Jorge de Sena incide sobre o papel da violência na história da
humanidade e propõe-se fundamentar uma nova ética social, que ultrapasse o antropocentrismo
apoiado nos conceitos de superioridade de classe, raça ou cultura e o seu
determinismo normativo.
“… um dia
sabereis que mais que a humanidade
não tem
conta o número dos que pensarem assim,
amaram o seu
semelhante no que ele tinha de único,
de insólito,
de livre, de diferente,
e foram
sacrificados, torturados, espancados
e entregues
hipocritamente à secular justiça,
para que os
liquidasse com suma piedade e sem
efusão
de sangue .
O primeiro princípio dessa proposta de ética é o do valor supremo do
respeito pela vida.
… Acreditei que nenhum mundo, que nada nem
ninguém
vale mais
que uma vida ou a alegria de tê-la .
Mas ao contrário do liberalismo (burguês), que partiu deste postulado para
justificar que “tudo é permitido“ em proveito dos indivíduos da sua classe,
Jorge de Sena propõe um segundo princípio, indissociável do primeiro, da
dignidade da vida, que só existe quando se está vivo sabendo
…que nenhuma vez
alguém está
menos vivo ou sofre ou morre
para que um
de nós resista um pouco mais
à morte que
é de todos e virá .”[144]
Sublinhámos os versos que constituem a chave interpretativa do poema e neles
assinalámos a convergência dos princípios que atribuímos a Kant, Marx e
Lévi-Strauss, enquanto fundamento comum para o advento de uma Nova Idade
Humana.
Daquele modo e sem abandonar a perspectiva humanista, a proposta
ética de Jorge de Sena avança para a exigência de que o homem preserve
cuidadosamente o mundo e o transforme numa sociedade liberta da injustiça e
opressão.
“… E por
isso, o mesmo mundo que criemos
nos cumpre
tê-lo com cuidado, como coisa
que não é só
nossa, que nos é cedida
para a
guardarmos respeitosamente
em memória
do sangue que nos corre nas veias
da nossa
carne que foi outra, do amor que
outros não
amaram porque lho roubaram .
Um mundo onde se institua a honra de estar vivo, como resultado da luta
pela “justiça e a liberdade”, onde o respeito pelos outros venha antes do amor-próprio.
… Um mundo em que tudo seja permitido,
conforme o
vosso gosto, o vosso anseio, o vosso
prazer,
o vosso
respeito pelos outros, o respeito dos outros
por
vós”.[145]
Com base nestes quatro princípios, o poeta apela para o dever de lutar por
um novo paradigma social…onde tudo seja simples, e natural, isto é, conforme
uma natureza humana resgatada de toda a violência exercida contra a ética do
respeito pela vida, da dignidade da vida, da preservação do mundo e da honra de
estar vivo (respeito pelos outros, na justiça e liberdade).
Porque nenhum Juízo Final pode restituir aos nossos semelhantes a vida que lhes
foi retirada, aquele objeto que não
fruíram, aquele gesto de amor, que fariam amanhã.
Pensando no horror e crueldade de tantos séculos de opressão …
“… Por serem
féis a um Deus, a um pensamento,
a uma
pátria, uma esperança, ou muito apenas
à fome
irrespondível que lhes roía as entranhas,
foram
estripados, esfolados, queimados, gaseados
e os seus
corpos amontoados tão anonimamente
quanto
haviam vivido,
ou as suas
cinzas dispersas,
para que
delas não restasse
memória.” [146]
O poeta hesita e, submerso por uma
amargura inconsolável, pergunta-nos a nós, os vindouros, se “...será ou
não em vão.” [147]
Jorge de Sena, ao enunciar, primeiro,
“o imperativo categórico da paz”, que anteriormente encontrámos nos seus versos
sobre o holocausto nuclear, aqui retomado e ao associar-lhe “o imperativo
categórico da dignidade”, leva mais longe o imperativo moral de Hans Jonas, que
configura a atividade humana nos limites da sustentabilidade da natureza de que
faz parte e conduz a razão kantiana para um superior patamar ético, que configura
a razão ambiental.
É nesta linha de pensamento que se coloca António Gedeão, mas com uma clara
e renovada crença na verdade e no progresso científico, e na sua capacidade de
fundar um novo humanismo na sociedade.
“ Poema do Homem Rã
Sou feliz por ter nascido
no tempo dos homens-rã
que descem
ao mar perdido
na doçura
das manhãs...
… Eu sou o
homem. O Homem.
Desço ao mar
e subo ao céu.
Não há
temores que me domem
É tudo meu,
tudo meu.”[148]
A procura da verdade científica e a sua defesa constituiriam o caminho para
superar todas as adversidades e para elevar o homem a uma superior condição ética.
“ Poema para
Galileu
Por isso
estoicamente, mansamente,
resististe a
todas as torturas,
a todas as
angústias, a todos os contratempos,
enquanto
eles, do alto inacessível das suas
alturas,
foram
caindo,
caindo,
caindo,
caindo,
caindo
sempre,
e sempre.,
ininterruptamente,
na razão
direta dos quadrados dos tempos.”[149]
Desenhando uma ética de tolerância e igualdade, contrária ao racismo, à xenofobia
e à violência que os acompanham, expressa nos versos de Lágrima de Preta. Uma nova
ética ambiental fundada nos princípios
de crítica ao antropocentrismo e ao etnocentrismo, geradora de uma bioética
global, suscetível de se transformar em éticas práticas aplicáveis a todas as
atividades humanas.
Aproximando-nos do fim deste trabalho impõe-se uma nova reflexão acerca da
influência da questão ambiental na evolução da Literatura e da Teoria Literária.
A
consciência da relação universal entre todos os seres, elemento fundamental, no
plano filosófico e ético, para o despontar da consciência ambientalista, emerge
em Teixeira de Pascoaes e Casais Monteiro, anuncia-se em José Régio e Fernando
Pessoa e fomos reencontrá-la nas diversas visões cosmológicas de José Gomes
Ferreira, Sophia de Mello Breyner Andersen, Sebastião da Gama, Ruy Cinatti,
Jaime Cortesão, José Saramago e em praticamente todas as grandes figuras da
literatura nacional contemporânea, de Aquilino Ribeiro a Miguel Torga, de José
Cardoso Pires a Casimiro de Brito, assumindo com os autores da Nova Literatura,
particularmente na poesia, a relevância de uma opção poética dominante,
centrada na relação cósmica com a natureza_ com a natureza humana, a natureza
das coisas e a natureza universal.
Essa relação estende-se ao caos do universo e, ao mesmo tempo, desce ao
mais profundo e infinitamente íntimo de cada ser e indivíduo. Mas foi Jorge de
Sena, nos seus versos e em particular no poema que enunciámos, Carta aos
meus filhos sobre Os Fuzilamentos de Goya, quem primeiro dela retirou uma
nova proposta de ética social, universal e ambientalista.
Parece-nos que as duas grandes revoluções da física relativista e quântica
do século XX, que permitiram alargar a nossa compreensão ao incomensuravelmente
grande universo em expansão e ao infinitamente pequeno mundo dos átomos e
quarks, tiveram o seu equivalente estético na criação de uma nova linguagem poética,
simultaneamente intimista e cósmica, tão complexa na sua tessitura compositiva
e nos seus códigos de leitura, como são as equações de Einstein, Bohr e dos
seus sábios companheiros, obrigando-nos, do mesmo modo, a substituir a nossa
perspectiva mecânica das leis da natureza ou os princípios literários clássicos,
por novas leis científicas e por uma
novíssima visão poética, como temos vindo a observar e veremos adiante.
À simplicidade e linearidade das conceções relativista
e quântica do Mundo, correspondeu a depuração da linguagem, a sua passagem ao
símbolo e à imagem moderna.[150] À fundação das poéticas contemporâneas como novos territórios
da realidade. Mas uma realidade em si mesma, a qual, se pode ser ameaçada pela
vulgar retórica e pelo discurso niilista, também contém a potencialidade de
abarcar toda a realidade do mundo, incluindo o drama solitário do ser perante o
lado apolíneo ou dionisíaco da vida, do amor e da morte. Finalizemos pois, a
nossa peregrinação literária, procurando encontrar resposta para as três
grandes questões anteriormente formuladas:
O que representa o conceito
de consciência ambiental enquanto categoria filosófica, numa perspectiva
diacrónica e sincrónica com a Literatura?
Quais são as chaves
interpretativas do texto literário de ondem emergem as grandes questões da
crise ambiental?
Que significado assume hoje a questão ambiental, nas
suas origens e evolução, para entender, explicar e reler a obra dos poetas e
prosadores portugueses, enquanto contributo premonitório para a moderna
consciência ambientalista e, não menos importante, para a sobrevivência e
progresso da nossa identidade cultural e das outras culturas e civilizações?
[1] Recordemos o pensamento cristão setecentista do Padre António Vieira e
o seu Sermão de Santo António aos Peixes: “Ao homem deu Deus a monarquia e
domínio de todos os animais dos três elementos… Para que domine sobre os peixes
do mar, sobre as aves do céu, sobre os animais domésticos e sobre todos os
répteis que rastejam pela terra. (Génesis,
I, 26)” No entanto, é nosso dever sublinhar,
nalguns passos do texto citado, a existência de elementos de crítica a uma
visão antropocêntrica que não respeite as criaturas de Deus; como iremos
assinalar no capítulo relativo à Ética Animal. Nele Vieira exprime claramente
conceitos que podíamos hoje enquadrar naquela corrente ambientalista.
[2] Pedro Calafate, no seu livro A Ideia
da Natureza no século XVIII, referindo-se ao
pensamento de filósofos como Luís
António Verney ou Teodoro de Almeida, explica que para o iluminismo cristão a
ação divina na natureza se exerce através das «causas segundas» e que a
descoberta das leis da natureza, que a razão científica se esforça por
determinar, significa a revelação da obra de criação divina como espelho da
natureza contingente das criaturas e imagem da presença de Deus na sua
conservação e evolução, mas de tal modo que não há distância nenhuma entre Deus e
as criaturas, mas há uma distância infinita entre as criaturas e Deus.
[3] Desde a Utopia
de Thomas More, escrita em 1516, onde o autor, apiedado do destino
miserável dos camponeses, expulsos das suas terras para dar lugar a grandes
pastagens, lança a terrível metáfora ”Os carneiros comem os homens!”, até à obra de Mandeville The
Fable of The Beers (1714), vai a distância que medeia a transformação da
Inglaterra no berço do capitalismo moderno. Ver a obra citada de Thomas More
(ou Tomás Morus), pág. 36.
[5]
A primeira publicação de tema ambiental conhecida da obra de V. Vernandsky data
de 1926, mas caber-lhe-ia igualmente o mérito histórico de propor as primeiras
mediadas de conservação da natureza, num tempo de exaltação da industrialização
em massa e o questionar moral do uso da energia nuclear! E é certo que
desconhecemos, praticamente, a querela científica que envolveu o lançamento dos
Planos Quinquenais e das grandes medidas de coletivização agrária e industrial,
informação incontornável para que possamos estudar a forma peculiar como se gerou
e desenvolveu a crise ambiental nos países de Leste, da catástrofe do mar Aral
à tragédia de Chernobyl. Já o estudo da crise ambiental na China deve seguir
outra perspectiva, pois na sua cultura filosófica e na peculiar visão da
natureza, no confucionismo e taoísmo, predominaram sempre as visões que
subordinam o coletivo ao individual e integram o homem como um átomo da
natureza, sem nenhum destino providencial, ao contrário da tradição
ocidental.
[7]
Ibid..
[11] Deixemos agora Alberto
Lacerda apresentar Sophia de Mello Breyner Andersen.
“Poeta do Mundo exterior e da realidade metafísica, da consubstanciação
profunda com o real múltiplo-verdadeiro poeta pagão, no que esta palavra possa
ter de mais grave, sacral. A sua poesia é de raiz trágica pois tem a lucidez
constante e agudíssima das
antinomias. A sua fome de absoluto é um desejo de realização e não de
fuga.” Sophia de Mello Breyner Andersen, citado de Obra
Poética I, Távola Redonda,
Fascículo 7.
[15] Pedro Calafate, em A Ideia de Natureza no século XVIII, na pág. 80 desta obra e a propósito das conceção do mundo de Ribeiro dos Santos, sistematiza o pensamento cristão desta maneira: “… Colocado
o tema da contingência das criaturas, passa imediatamente ao da conservação, que concebe, tal como Verney, não como uma nova ação, mas como uma continuação do ato criador.
“
[17] Recordemos os seus membros iniciais, sem cuidado de precedência:
Baeta Neves, Pinto da Silva, Vilela, Miguel Neves, Mário Azevedo Gomes, Carlos
Teixeira, Joaquim Cabral, Caldeira Cabral, Carlos Tavares, Duarte de Castro,
Telles Palhinha, Carvalho e Vasconcelos, F. Sacarrão, Varennnes e Mendonça,
Magalhães Silva, Maria de Lurdes Borges, Bivar Cúmano, Pereira Coutinho, Flávio
Resende, Botelho da Costa, Torre da Assunção. Informação prestada pelo então Presidente da
LPN, Prof. Eugénio Sequeira, 1997.
[18] Ruy Belo, Obra Poética, Volume III, pág., pág. 151. Citado do Livro de Ruy Cinatti Cadernos
de Poesia, de 1942.
[25] René Dubos. Les Dieux de
l’écologie, trad. fr., 1973.
[28] O movimento integralista
decompor-se-ia em correntes divergentes, integrando-se no “Estado Novo“
através de intelectuais como António Ferro e Marcelo Caetano, opondo-se ao
regime fascista com homens como António Pedro, Afonso Lopes Vieira e Rolão
Preto ou prosseguindo a solitária e persistente caminhada de Hipólito Raposo e
Paquito Rebelo. Uma das correntes dissidentes viria a convergir para o grupo monárquico
fundador do primeiro partido assumidamente ecologista, o PPM !
António Sardinha, Quando as
Nascentes Despertam, 1921, citado
no Manual da Universidade Aberta, Sociedade
e Cultura Portuguesa II, pág. 343.
[30] Lévi Strauss,
citado da obra A Origem
das Maneiras de Comer à Mesa, na obra de
Antoine Danchin
Uma Aurora de Pedras. Consultar
a Bibliografia.
[31]
Aldo Leopold, A Sand County Almanac, 1949.
[32]
Joeil de Rosnay, Le Macroscope, vers une vision globale, 1975.
[33]
Gordon Taylor, Le jugemen dernier, trad. fr., 1970.
[34] Os últimos ensaios críticos de Sagan manifestam um crescente pessimismo
e sentido crítico face ao acentuar dos fatores de crise ambiental, sem
abandonar a sua crença no papel regenerador da ciência e das novas tecnologias,
afirmando mesmo a convicção de que a
ameaça da tragédia universal contribuirá para o entendimento entre os povos e
as nações e para uma nova aliança entre as ciências e as religiões. Ver a
coletânea publicada no nosso país sob o título
Bilhões & Bilhões.
[35]
Holmes Rolston III, Philosophy Gone Wild, 1986. J.B. Callicot, In
Defense Of the Land Ethic, 1989.
[36] Ibid..
[39] Referimo-nos genericamente aos Essays in
Environment Philosophy, com o título In
Defense of the Land Ethic, atualizados e
editados conjuntamente em 1994 e particularmente ao que tem o número 13 Leopold’s
Land Aesthetic, copyright 1982.
Enfim, nesta curta panorâmica que apenas pretende servir de paradigma comparativo
com a reflexão dos nossos escritores, merece igualmente referência Hans Jonas e
a sua “ética da responsabilidade”. Ver a obra The Imperative of
Responsibility. In Search of an Ethics for the Technological Age, onde o
autor, judeu alemão emigrado para o Canadá e os EUA, perante a tremenda influência da técnica
moderna sobre a natureza, formula um novo imperativo categórico para a ação do
homem, mais além da máxima kantiana de conformação dos actos individuais com o
princípio de uma lei universal, um novo quadro ético, o qual resulta da
necessidade de configurar a conduta humana nos limites que salvaguardem a continuidade
da vida e a sua diversidade, conceito que, no seu desenvolvimento filosófico
conduzirá à superação da razão kantiana pela “razão ambiental”, filosofema que
defendemos mas cujo discussão filosófica exige um debate autónomo. A versão
inicial do texto de Jonas remonta a 1972 e a sua publicação na obra citada a
1984.
[40] Carlos de Oliveira, do livro Aprendiz
de Feiticeiro, a crónica Autor, Encenador,
Actor, 1968, reeditada nas Obras de
Carlos de Oliveira, pág. 553.
[41] José Gomes Ferreira, da obra Panfleto
Contra a Paisagem, de 1936/37,
reeditado na edição José Gomes Ferreira, Poeta Militante, págs. 85 e 86.
[43] Ou como diz Óscar Lopes: “... Poesia límpida, que vem das mãos humanas,
do sangue rumoroso, do amor corpóreo, do trigo, dos frutos, da luz, do mar;
poesia sem metafísica, simples nascer para o dia um «subterrâneo rio de palavras»; poesia ora matinal e clara como a
adolescência (Coração Habitado), ora densa de toda a elegia do pretérito imperfeito português (Os
Amantes sem Dinheiro)…”Óscar
Lopes, prefácio de Poemas ( 1945/65 ) de Eugénio de Andrade, pág. XI.
“...Outra
interpretação possível, e essa no ponto de chegada da maior originalidade de
condensação temática em Ostinato Rigore, seria ver esta poesia como lírica da natureza, dos frutos, dos ritmos
inerentes aos dias, aos anos e às idades, com a acento dominante naquele
meio-dia solar verdadeiro em que a esperança e a consumação se entrefita , e em
que o próprio silêncio pulsa. Ou ainda: poesia materialista, no sentido da sua total
imanência à realidade possível e única - uma boa arma para quem a soube usar, e, antes de mais nada, usar contra a morte na alma. Porque, para
usar uma fórmula eluardiana, nesta poesia, em toda a melhor poesia (como esta é
, cada qual de nós pode dizer j´écris ton nom; e o nome que eu escreveria era
precisamente o que Eluard escreveu, o da no desfecho de um poema talvez inicialmente sentido como de amor.
E fá-lo-ia por hipálage; visto que tudo se liga numa poesia como esta. Resta
saber a que altura é que cada pessoa sente uma tal ligação.” Óscar Lopes, prefácio de Poemas de
Eugénio de Andrade, pág. XX.
[49] Ver a obra de Hubert Reeves, Poeiras de
Estrelas: “...os protões e os neutrões, bem como os núcleos, são obra das
forças nucleares (da forte e da fraca). Os átomos e as moléculas são obra das
forças eletromagnéticas. As estrelas e as galáxias são obra da força de
gravidade, tal como, de resto, o nosso sistema solar”, pág. 26. E também, de
Fang Li Zhi e Li Shu Xian, A Origem
do Universo.
[52] José Gomes Ferreira, da obra Heróicas, de 1936/37/38, reeditado na edição José
Gomes Ferreira, Poeta Militante, pps. 145 e 146, numa versão deste poema mais sintética.
[53] Citado por António Ramos Rosa, no livro
Incisões Oblíquas, pág. 66. Inserto
na obra de Ruy Belo Problema
da Habitação (publicada em 1962), pág. 48, 1997.
[64] Transcrevemos a definição de «pessoa« do autor: …Proponho o uso de «pessoa» , no sentido de
um ser racional e autoconsciente, para incorporar os elementos do sentido
popular de «ser humano» que não são abrangidos por «membro da espécie Homo
Sapiens ». Peter Singer, Ética
Prática, do capítulo Tirar a
Vida de Animais, págs. 98/99,
1989/92.
[66] Na obra citada de Peter Singer pode ainda ler-se, a páginas 233, a
seguinte denúncia, no que respeita à ajuda efetiva que, à época, os países ricos do Norte se
comprometeram a conceder aos países pobres do Sul: Só a Suécia, a Holanda, a Noruega e alguns
dos países árabes que exportam petróleo atingiram o modesto objectivo
estabelecido pela ONU, de 0,7% do Produto Nacional Bruto. A Grã-Bretanha dá,
oficialmente, 0,31% do seu PNB para a ajuda ao desenvolvimento, e mais uma
pequena quantia, em forma de ajuda não
oficial…A Alemanha dá 0,41% e o Japão dá
0,32%. Os Estados Unidos dão a simples quantia de 0,15% do seu PNB.
[95] Ficção que a nossa história da Idade Moderna documenta, desde a
expulsão dos judeus e a conversão forçada dos “cristãos novos“ no século XVI, por ordem de D. Manuel.
[101] “Mas
eu, por experiência, tenho verificado que há atos da vida animal, o homem à
parte, que superam o âmbito de tal potência.
Ora são esses atos que eu
transponho, humanizo, no que imagino tais bichos movidos pelos mesmos móbiles
vitais que nos animam a nós.”
[102] Cabe aqui uma referência às crónicas similares de Bernardo Santareno,
datadas da década de 50, publicadas sob o título Nos Mares do Fim do Mundo, quando observa a fauna dos bancos de pesca
do bacalhau na Terra Nova: “Cem, milhares de
blocos de gelo, pequenos uns, outros maiores, oscilam graciosamente ao sabor
das ondas. E sobre um destes minúsculos icebergues a bizarria inesperada de uns
dez ou doze patos-mergulhões, grotescos, buliçosos, simpatiquíssimos…Passam
agora mesmo junto do David Melgueiro: olham-nos sem sobressalto, alegremente,
sem sequer quebrarem a ininterrupta carreira das suas cabriolas, cómicas e tão
comunicáveis…que parecem humanas!”
[117] Casimiro de Brito, do livro Solidão
Imperfeita, o poema A
Fábrica: duas perspetivas, pps.24 e 25 ,
1955/58.
[127] Tal não aconteceu com os Futuristas, com António Ferro transformado em
exegeta do regime fascista e a ambiguidade política de Almada e Fernando
Pessoa.
[129] Prefácio de José Gomes Ferreira, da Obra
Poética I, de Irene Lisboa,
pág. 30, datado de Março de 1978.
427
Alexandre O’Neill, Poesias, Poema
Pouco Original do Medo, pág. 144, 1960.
[133] Texto retirado de uma coletânea discográfica do compositor e cantor José Mário Branco, com o título Ser
Solidário.
[135] Escrito em 1949 e situado, na ficção romanesca, no interior de Angola,
tal como a obra contemporânea de José
Augusto França, citada adiante.
[140] E não será esta imensa diversidade, no seu todo, e não só na parte
humana, que constitui o verdadeiro resplendor da biodiversidade?
[141] Viriato Soromenho Marques, do Livro
Regressar à Terra, Consciência Ecológica e Política do Ambiente, pág. 141, 1994.
[142] Ver a obra de
Galopim da Carvalho, Geomonumentos e também, de H. H. Read, o livro Geologia.
[143] Retenhamos, por fim, a reflexão da professora Cristina Beckert acerca
da “…necessidade de recuperar a dimensão
ontológica, ‘depois da ética’, de que o Direito, a Política e a História são
expressões privilegiadas…o advento do terceiro como instância relativizadora
da relação dual eu-tu nivela a assimetria que a
define, pondo-a a par do princípio da justiça ou de equidade, único válido para a totalidade de indivíduos. Por
seu turno, a incompatibilidade entre a ética e a política, enquanto esta
exprime a racionalização da luta mais primitiva pela sobrevivência, deverá
transformar-se em diálogo entre a institucionalização da relação ética, pela
política, e a crítica a todo o poder político, pela ética. Quanto à História,
como esquema último de inteligibilidade do real, deverá subordinar-se a um
juízo escatológico, emitido do ponto de vista de um absoluto an-histórico,
capaz de recuperar a dimensão de singularidade e interioridade próprias de cada
um dos seus agentes e que ela ignora quando os identifica com as acções e as
obras submetida à sua própria cronologia”. Subjetividade
e Diacronia no Pensamento de Levinas, por Maria Cristina Monteiro Beckert de Assunção, resumo da
dissertação de doutoramento, Philosofica nº 3, pps.s 146 e 147.
[144]
Versos que nos evocam um comentário de Óscar Lopes,
produzido noutro contexto, sobre a moral kantiana:
“E isto afinal coincide com aquele admirável
princípio de autonomia em que Kant fundamentou toda a moralidade, mas que até
hoje não encontrou nunca condições históricas de realização: o princípio segundo o qual cada ser humano deve ser tido como um fim em si mesmo e
nunca o meio de se atingir o fim de outrem. O. Lopes, Os Sinais e os Sentidos, pág. 164.
[145] Compare-se e reconheça-se a similitude com o texto de Lévi Strauss
citado por Antoine Danchin, na obra Uma Aurora de Pedras, adiante referenciada:”…O verdadeiro humanismo não começa por si próprio, devendo colocar o
mundo antes da vida, a vida antes do Homem e o respeito pelos outros antes do
amor próprio”.
[146] Imagens que nos
evocam, imediatamente os espetáculos de circo romano, os autos de fé, os fornos
crematórios dos campos de morte nazis…
[148] António Gedeão, Poesias Completas
(1956-1967). Na verdade e nas últimas entrevistas do
poeta, pouco antes da sua morte, tornou-se evidente um certo “pessimismo de inteligência“, no que respeita ao devir histórico do
actual modelo de progresso social, particularmente
perante a desumanização da ciência e aos efeitos ambientais das tecnologias
mais modernas.
[150] Ver as obras ABC
da Relatividade de Bertrand Russell e A Revolução dos Quanta, de
Victor Weisskopf.
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