LITERATURA E AMBIENTE IV - A Natureza, Um Paradigma Reencontrado. A(s) Ética (s) Ambiental (ais)



2001/2017
Autor
© António dos Santos Queirós
ISBN 978-972-8659-41-7

Conteúdo
©ANTÓNIO DOS SANTOS QUEIRÓS
Centro de Filosofia. Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
Alameda da Universidade 1600-214, Lisboa  Portugal
adsqueiros@gmail.com

T. 910506370

A crítica ao antropocentrismo postula em diversos autores a responsabilização da cultura judaico-cristã e do iluminismo cristão do século XVIII em particular, como estando na base da atitude de domínio arrogante da espécie humana sobre a natureza, princípio que partilha com a religião muçulmana.[1]
O Homem, criatura eleita por Deus para presidir à criação divina, seria com esta perspectiva moral induzido a apropriar-se da natureza para os seus fins, sem qualquer limite ou restrição. O iluminismo racionalista, ao atribuir à condição humana a missão de triunfar não apenas sobre o obscurantismo da sociedade nobiliária e eclesiástica, mas também de decifrar e controlar as forças da natureza, teria aberto o caminho à utilização desenfreada dos recursos naturais e ao emergir da crise ambiental da Idade Contemporânea.
Parece-nos que esta relação não é linear nem imediata. O iluminismo de orientação cristã entendia a existência e a conservação das criaturas como a continuidade do ato criador.[2]
A ser assim, poderíamos ser tentados a atribuir ao positivismo e ao cientismo o papel dessacralizador (e foi-o certamente mas noutro sentido) do mundo natural, apesar da forma peculiar como estas correntes filosóficas foram assimiladas pelos nossos intelectuais de oitocentos, quando, como Antero, procuraram conciliar a metafísica com as leis científicas do Universo. Mas também aqui a relação com a crise ambiental não é direta nem historicamente determinante.
Somos de opinião que a utilização dos elementos naturais como meros objetos de uso mercantil está associada ao nascimento da ideologia do capitalismo mundial, que nos finais do século XIX fez avançar as últimas fronteiras do mercado, ao partilhar na Conferência de Berlim de 1885 os espaços coloniais e as terras virgens, e programar a sua integração na esfera das metrópoles europeias, dando origem ao Ultimato de triste memória para o nacionalismo português, que viu ocupado pela Inglaterra o seu “mapa cor-de-rosa“ de expansão territorial entre Angola e Moçambique. Então sim, todos os recursos naturais e mesmo o homem, criança, velho ou mulher, obra prima da criação divina, foram transformados em mercadoria e a condição humana reduzida ao estatuto mercantil de “força de trabalho “.
E uma nova ética surgiu, emergindo lentamente dos alvores do capitalismo rural para a industrialização setecentista e oitocentista: a da amoralidade empreendedora, onde o objeto do lucro acrescido, despojado definitivamente do estigma da censura cristã medieval e sem temor ao purgatório nascido nos alvores do capitalismo moderno para o remir, postula que tudo lhe é permitido e legítimo para acumular capital.[3]E este procedimento, obter crescentes mais valias através da concentração do capital industrial e depois financeiro, torna-se natural, enforma toda a ordem jurídica do estado e o ambiente cultural e espiritual das nações, para proclamar depois as novas relações de produção  e de troca como definitivas, o cume do progresso e da civilização e, por isso, destinadas a serem eternamente reproduzidas e ampliadas pelo devir histórico da sociedade.
Foi esta tremenda mudança social que gerou a cultura moderna e fez nascer as raízes profundas das diferentes ideologias, escolas filosóficas e correntes estéticas, não de forma mecânica mas dialética, nem tão pouco como meros reflexos superestruturais da nova base económica da sociedade: os protestos contra o cosmopolitismo revalorizaram o papel da ruralidade, fizeram nascer doutrinas conservacionistas da natureza, de inspiração científica ou metafísica, ou procurando a sua síntese contemporânea. Recordemos, nesta procura de conciliação entre a metafísica e a ciência, a obra de Sampaio Bruno. Pertence-lhe o pensamento claríssimo que aqui citamos: “Esta orgulhosa ilusão antropocêntrica, que faz do homem o objeto único e final da Criação, vai cedendo com o progresso da cultura mental“ e com o avanço da diferenciação mental. Criticava o filósofo uma passagem do Alcorão mas também os defensores da imutabilidade da obra divina, para logo a seguir sublinhar:  “O homem faz compartilhar os animais da vastidão do seu império”. E logo depois citar o Génesis e dele retirar a ideia científica de que as plantas estão na base da cadeia alimentar dos seres vivos, animais e aves e “ tudo quanto tem vida e movimento sobre a orbe”. Concluindo com uma renovada crítica ao antropocentrismo egocêntrico: “Acabamos por personalizar a natureza e procedemos para com a criação, como se a houvéssemos criado.” [4]
Sobre este vazio ético, construiria o capital, apátrida e amoral, o seu império de interesses, gerador da crise ambiental do mundo contemporâneo, enquanto no Leste a consolidação do estado dos Sovietes era acompanhada de uma lógica economicista que não poupou recursos naturais e abandonou os ensinamentos dos primeiros biólogos do “socialismo científico”. [5]

Vejamos então as obras e os autores que apelam para a comunhão universal, numa dimensão metafísica.
Escolhemos Teixeira de Pascoaes para ouvir em primeiro lugar esse apelo. Recorremos de novo à obra citada de Maria das Graças Moreira de Sá. “...todo o texto é um hino à harmonia cósmica, à ligação Terra/Céu, símbolo da ascensão espiritual para Deus ou de uma procura ansiosa do Absoluto...[6] E, em seguida, à citação que a autora faz da opinião de Jorge de Sena:
“…E, ao ficarem os poetas e os críticos muito fascinados pelo carácter passivo e provinciano da «saudade» (uma saudade tão radicada na paisagem natal do poeta), não se davam conta de que essa saudade se voltava muito menos para o passado do que era para um futuro em que tal sentimento desempenhava o papel de uma reminiscência platónica que fosse o motor de uma crescente humanização do Universo»... “[7]
Por último, a palavra ao poeta, para nela encontrar essa saudade do futuro, que é também “sonho e aspiração” e ele acreditava poder partilhar através da poesia com a humanidade sofredora. Já que, para Pascoaes, a natureza é uma lágrima de Deus, que partilha connosco o sofrimento da condição humana.“... Sou velho tronco, a arder, homens gelados!/Ó trevas, vinde a mim: sou claro dia”.[8] E é na paisagem portuguesa que Pascoaes, na asserção de Eduardo Lourenço, “…decifra e inscreve o drama da criação inteira…”, sobretudo no seu Marão, a partir do qual revela a própria essência metafísica de uma história e de um povo singulares, a que chamamos Portugal.[9]
Como indicámos no início deste trabalho, o poeta sonha e deseja a comunhão dos homens com a terra-lar onde arde o “fogo eterno”; terra-lar, símbolo original de Pascoaes que é reminiscência dos afetos e da função protetora do lar associada ao eterno retorno ao seio da terra de onde se nasce e sobre a qual se morre. E a comunhão surge da “romaria espiritual” ao Tâmega, às montanhas e rochedos que são o lugar sagrado da união cósmica do ser individual com o universo, porque aqui “terra e solidão” a que se aspira significam sobretudo o atingir da paz de espírito perante o grande mistério da vida que enfrenta a morte, não através de um ritual religioso que o verbo “rezar” parece introduzir, mas daquela outra metamorfose panteísta que é o reencontro com a natureza. E a humildade do Marão e do poeta não representa a aceitação da menoridade da nossa cultura e do nosso património natural, porque a verdadeira grandeza  está no alcançar dessa Serenidade espiritual “Que é para Deus a verdadeira luz!”
“…Ó meu Tâmega obscuro, água dormente…
Ó rio, à noite, a arder todo estrelado!
…Montes da minha aldeia, quem me dera
 Ser como vós, de terra e solidão!

…Ó rochedo do Cáucaso onde eu vou
Em romaria rezar
Ó fogo eterno que o Titã roubou
Ó fogo humilde e brando do meu lar!”
A elegia mística de Florbela Espanca transforma-se em identificação metafísica com a terra renovada “…Olhos a arder em êxtases de amor,/Boca a saber a sol, a fruto, a mel:/Sou a charneca rude a abrir em flor“![10]
Sophia de Mello Breyner Andersen.[11] O poema de Sofia, que transcrevemos a seguir, transporta-nos a uma metafísica para além da morte, onde os átomos e as almas se fundirão com a natureza e os seus elementos vitais: Água - o mar. Terra - os pinhais. Ar - o vento. E nós, “irmãos vivos do mar e dos pinhais”, renasceremos (“floriremos”) como jovens “… o vento levará os mil cansaços …”e voltará...“aos nossos membros lassos a rapidez dos animais”, simbolizando a agilidade juvenil. E a morte será apenas o ultrapassar do mistério da vida eterna, irmanados com o supremo criador e a sua obra, o Homem, a Terra e todos os seus seres e criaturas:“…em nós germinará a sua fala.” [12]
Também aqui, mas com uma dimensão metafísica, se pugna por uma nova ética que reenquadre o homem na natureza, à escala da mãe-terra integrada no Cosmos.[13]Pouco tempo antes, Sebastião da Gama  escrevia o seu primeiro livro, Serra Mãe. Poeta Integral, segundo Jacinto Prado Coelho, Ruy Belo recusa confiná-lo à dimensão do poeta da Arrábida. Basta, como diz, abrir no primeiro poema daquele livro.[14]
“... A corda tensa que eu sou,
o Senhor Deus é quem
a faz vibrar ...
Ai linda longa melodia imensa!...
- Por mim os dedos passa Deus e então
já sou apenas som e não
se sabe mais da corda tensa...”
O homem é um instrumento de Deus, mas não uma parte da sua divina condição. Ele é  causa segunda do movimento criador da natureza.[15]
A natureza, como imagem e manifestação da obra de Deus, surge nos versos de Poesia depois da chuva, de Sebastião da Gama, sem concessões ao panteísmo, pois Deus está para além da substância natural, mesmo da natureza humana, os Seus dedos criadores passam imaterialmente pelas criaturas, que medeiam a sua  revelação, mas esta é, para a condição do homem, apenas uma  imagem limitada do divino inacessível “… já sou apenas som e não se sabe mais da corda tensa…”, reminiscência da estética cristã medieval da contemplação agostiniana do sagrado. Vejamos a Sua imagem, de “causa primeira” de todo o movimento da vida, no poema:
“ Poesia depois da chuva
... Depois da chuva o sol- a graça.
Oh ! a terra molhada iluminada !
E os regos da água atravessando a praça
luz a fluir, num fluir impercetível quase...
... Tão alegre este sol ! Há Deus. (Tivera-O eu negado
antes do Sol, não duvidava agora).
Ó Tarde virgem , Senhora Aparecida! Ó Tarde igual
às manhãs do princípio”![16]
A obra do poeta Sebastião da Gama dedicada à defesa da Serra-Mãe, congregou eminentes homens da ciência e da cultura da época, unidos, primeiro, na preservação do património natural da Arrábida e, depois, na fundação da Liga de Proteção da Natureza, em 1948.[17]
Ato premonitório de poetas, cientistas e visionários, retoma o testemunho dos escritores dos primórdios do século, o qual, como assinalámos, atingira um dos seus pontos mais altos no esforço intelectual e propagandístico do Guia de Portugal, obra coletiva da fina flor dos nossos criadores culturais e científicos.
Seria preciso esperar quase 40 anos para que aquele exemplo de organização frutificasse no actual movimento ambientalista, mas o combate ecológico dos escritores portugueses permanece como uma constante histórica que atravessa todo o século XX.
 Ruy Belo apreende, no interior dos versos de outro Ruy Cinatti, “... a conceção cristã do homem”..., entendida aqui nas dimensões estética e afetiva, da relação harmoniosa entre a Natureza e o Homem, obra comum de Deus.[18]A mesma mensagem de amor (divino) que Sebastião da Gama dedicou à natureza e à condição humana irrompe da poesia de Cinatti.[19]O espetáculo maravilhoso da natureza é expressão do finalismo da obra divina, que ele traduz numa mensagem de felicidade e de amor.
“…Quem pode impedir a primavera
Se estamos em Maio e uma ternura
Nos faz abrir a porta aos viandantes
E o amor se abriga em cada um dos nossos gestos !
Quem?...
Se os sonhos maus do inverno dão lugar à primavera !…”[20]
As ideias de ordem e finalidade como símbolos da presença de Deus na natureza e anúncio do advento do seu reino de bondade, tolerância e felicidade, que o progresso científico, desde que orientado pela mensagem de amor divino, instaurará sobre a Terra, quando o Homem já caminhar pelo vasto Universo, constituem o fio condutor do pensamento religioso de Jaime Cortesão.
          Será o reino do Menino-Deus, nas suas palavras.[21] Retomemos de novo a obra de Jaime Cortesão, Portugal, a Terra e o Homem, esse “franciscano laico“, nas palavras de Urbano Tavares Rodrigues.[22] Para quem...“A beleza peculiar das grandes estâncias de arte compõe-se de três elementos, em proporções variáveis: os monumentos históricos e artísticos; as paisagens que os enquadram; e o passado que lhes marca a origem no tempo…” [23] Para citarmos o remate do seu livro: “...Penso em tudo isto e sinto frio! Expulsaram-me de casa! Estou na rua. Na rua do Infinito, é certo, mas por isso mais fria e solitária...A criação do Homem e a sua redenção pelo amor continuam“.[24]
          A “religião da natureza”
Contemporaneamente, mas já perto do nosso presente, a obra individual de René Dubos, que se tornou conhecido sobretudo pelo seu papel na preparação da Conferência de Estocolmo, surge em 1973 com o título sugestivo “Os Deuses da Ecologia “, onde se desenvolvem conceitos como os de uma “religião da natureza”  e  “uma teologia científica da terra“.[25]
O seu antropocentrismo panteísta critica as tecnologias modernas e rejeita a atribuição unilateral das responsabilidades sobre a crise ambiental à herança cultural judaico-cristã, recusando-se, em nome do livre arbítrio, a aceitar qualquer determinismo biológico ou sociológico.
 Saudando os novos movimentos de contracultura nascidos nos EUA nos anos 60 e que a revolta de Maio de 68 protagonizou na sua dimensão europeia, ele pugna pelo renascimento do regionalismo, na perspectiva de que as comunidades humanas devem manter estreitos laços com a sua própria paisagem, para que a humanidade não perca a riqueza que constitui a diversidade biológica e das culturas. E, finalmente, confia que um novo sentimento religioso conduzirá o homem à unidade interior e cósmica com a natureza.
Ernest F. Schumacher, economista britânico, de origem alemã, escreveu em 1973 numa linha paralela, a obra Small is beautiful. Anotemos que este período é o do primeiro grande choque da crise petrolífera no Ocidente![26]
Ele critica as indústrias e tecnologias pesadas que ultrapassam as capacidades autorreguláveis da natureza e insurge-se contra a sua expansão neocolonial, pugnando por uma fileira tecnológica de baixo consumo energético cooperante com a natureza, como é exemplo paradigmático a agricultura biológica, defendendo também a recuperação das tecnologias tradicionais não poluentes.
Partidário do ecumenismo e do pluralismo religioso, propõe-se fazer evoluir o mundo para a santidade, encarando o Mundo como criação divina que deverá ser respeitado nessa condição e o Evangelho cristão como o modelo doutrinário de regeneração da sociedade, associado aos ensinamentos básicos da ecologia, reciclagem, diversificação e descentralização.
A similitude destes programas com as reflexões filosóficas dos autores e escritores anteriormente referidos, permite-nos comprovar a continuidade de uma tradição filosófica que remonta do medievalismo cristão ao século das luzes e se pronuncia claramente pela conservação da natureza e de forma crítica em relação a um devir social moderno que destrói a unidade entre a nação, a terra e o homem, promovendo um processo de desenvolvimento anti-humanista e antinatural na sua brutal competição, oposto ao advento do Reino do Amor e da Harmonia Divinos sobre o Planeta.
É a obra de Fernando Pessoa que assume modernamente a Mensagem desse destino providencial anunciado pelo retomar dos valores espirituais conotados com o cristianismo, que, segundo o poeta, D. Sebastião protagonizou, a uma Terra dominado pela “Ordem demoníaca” do Mundo Moderno e a um país que entristece metafisicamente, para elevar a “alma penitente do povo à Eucaristia Nova”, isto é, a uma missão transcendente de que a obra dos navegadores foi “carnal arremedo”, uma caminhada obscura e esotérica em busca de uma Índia Nova que é também outra, que não existe fisicamente, embarcando em naus que são construídas “daquilo que os sonhos são feitos. “E o segredo da Busca é que não se acha”. Caminhada metafísica, pois é paradoxalmente destino iniciático de uma nação inteira!
Vejamos alguns versos chave do poema Mensagem.
“D. Sebastião,      Rei de Portugal, Louco, sim, louco, porque quis grandeza…
O Infante,             Cumpriu-se o Mar e o Império se desfez,
                            Senhor, falta cumprir-se Portugal!
Horizonte,            O sonho é ver as formas invisíveis
                            … os beijos merecidos da Verdade.
Padrão                  E a Cruz ao alto diz que o que me há na alma
E faz em mim a febre de navegar
Só encontrara de  Deus na eterna calma
O  porto sempre por achar.
O Quinto Império E assim, passados os quatro…”[27](Os 4 impérios foram Grécia, Roma, Cristandade e Europa).
Apesar do nevoeiro de angústia e desorientação que cobre o país…chegou a Hora de Portugal! E o Santo Graal, a Excalibur do Fim, não representa o triunfo de uma nova cruzada violenta. O Poder e o Renome virão agora da pura redenção espiritual, que irradie sobre o Mundo dividido.
          Seria necessária a leitura completa da obra de Pessoa e particularmente de Álvaro de Campos, para reconhecermos nesta ânsia de regeneração espiritual os sinais de inquietação e rejeição face à Modernidade e aos seus mandarins europeus, expoentes de uma civilização contraditória e sangrenta que engendrou tecnologias formidáveis, mas para as aplicar na indústria, na atividade comercial ou na guerra, de forma brutal e inumana, que o engenheiro poeta “febrilmente celebraria”!
Cabe aqui uma referência breve ao pensamento do Integralismo Lusitano e ao seu principal mentor, António Sardinha, deliberadamente curta, porque os corpos textuais que estudamos não são os da filosofia e da história da cultura portuguesa, mas os da literatura e a nós próprios nos impusemos a disciplina de guardar tal reflexão para trabalho de maior fôlego. O regresso ao mundo rural, a terra como base da riqueza e da felicidade, na linha de António Feliciano Castilho, a corporação medieval de camponeses enquadrados pela nobreza de cargo e de toga, eis a alternativa à opressão da máquina capitalista e do seu “imperialismo”, à morte da alma cristã, providencialmente atribuída à Hispânia. Encerremos este ponto com os versos de Sardinha.
Onde chegou o antigo verme escasso,
    _ onde chegou a humana criatura?!(…)
    Subir! Subir!_ e não subir na Prece!:
    corpo sobe, mas alma desce,
no orgulho da matéria alucinada! “[28]


 “ O que é digno de ser notado …é a ideia que o bem da comunidade biótica é a medida suprema do valor moral, da correção ou incorreção da ação…”[29]
“… O verdadeiro humanismo não começa por si próprio, devendo colocar o mundo antes da vida, a vida antes do Homem e o respeito pelos outros antes do amor-próprio…”[30]

A obra de referência da Ética da Terra pertence a Aldo Leopold (depois de Walt Whitman e David Thoreau), que a retira dos estudos de Darwin e dos avanços científicos da Ecologia.[31] O sentimento da necessidade de ajuda e defesa comum, desenvolvido ao longo do processo de seleção natural, gerou o conceito de comunidade, fundamento da ética. E é uma nova conceção da natureza que emerge, agora entendida como uma sociedade de plantas, animais, minerais, fluídos e gases, estreitamente ligados e interdependentes.
Encontrámos já, na poesia de Walt Whitman, essa visão poética (e científica) da terra como uma comunidade, que Aldo Leopold quer ver amada e respeitada na sua diversidade e na herança biogenética e cultural, que o longo processo de humanização representa.          
Um dos mais populares defensores de uma ética da terra, Joel de Rosnay, atingiu a notoriedade com o título sugestivo de O macroscópio. Para uma visão global, seguido de O Cérebro Planetário.[32] O macroscópio, ao invés do microscópio, amplia os laços existentes entre os grandes sistemas ecológicos e encara a terra e o conjunto das organizações e relações sociais _ desde as cidades às empresas, como autênticos organismos biológicos, onde a espécie humana é considerada apenas como uma das suas células constituintes, entre muitas outras espécies! Ou, melhor dizendo, como os “neurónios” da terra, células de um cérebro em formação, de uma consciência planetária nascendo à escala do planeta.
O equilíbrio ecológico dos sistemas sociais seria assegurado pelo funcionamento pleno do mercado, que no entanto carece de ser humanizado, através duma reforma social inspirada nos sistemas biológicos, pela descentralização de decisões e o incentivo à participação por intermédio de múltiplas redes interativas.
Enfim, a exclusão pela competição, segundo Rosnay, típica dos ecossistemas e portanto aplicável às relações Norte/Sul, entre países ricos e pobres, seria o resultado daquela “seleção natural”, carecendo também de ser corrigida por intermédio de uma nova ética.
Gordon Taylor, partindo da noção de que a terra é um vasto ecossistema em que tudo está ligado, acusa a espécie humana de preparar o apocalipse através do crescimento demográfico excessivo e dos efeitos perversos das tecnologias atuais.[33]
Enumera toda uma série de relações de causa e efeito entre a degradação do ambiente e a perda de qualidade de vida do homem moderno - a poluição provocada pelos metais e o DDT gera perturbações mentais, os resíduos radioativos ameaçam a nossa herança genética, a mobilidade social afronta a natureza humana que assenta em sólidos instintos territoriais, provocando stress, etc.
E daqui parte para a defesa de um projeto de reorganização da sociedade com base no campo, tendo como modelo a sociedade pré-industrial, preconizando em paralelo a rotura com a tradição filosófica do iluminismo e a visão antropocêntrica do homem.
As ideias esboçadas por estes autores aproximam-nos das principais teses cientifico-filosóficas, que fundamentam a ética da terra e atingiram notoriedade particular através da hipótese de Gaia, enunciada em 1979 pelo inglês James Lovelock, logo suportada mediaticamente pelo americano Carl Sagan.[34]
A Terra seria afinal um superorganismo vivo, criador da sua própria biodiversidade. Lovelock aponta a história do clima como um dos principais argumentos em favor desta perspectiva, considerando a superfície terrestre o principal agente produtor da vida, geradora de uma atmosfera há pelo menos três milhões e meio de anos favoráveis à existência de seres vivos.
Enfim, sendo o homem a principal ameaça para a vida, mais do que a técnica, o Planeta, qual mãe terrível e monstruoso demiurgo, saberia agir intencionalmente e depois de reagir às mais brutais agressões ambientais, poderia exterminar o próprio ser humano através de praga ou mutação genética universal.
Em contrapartida, recompensará a harmonia das raças e culturas e o uso das tecnologias não poluentes.
Daí, até à crença regeneradora de uma nova tecnociência e ao futurismo visionário de utilização dos outros planetas através da apropriação de tecnologias benévolas pela raça humana, vai apenas um passo.
Eis sumariamente as duas faces da mesma moeda filosófica que absolutiza o papel da tecnologia: ou o regresso atávico ao campo, à maneira de Gordon Taylor ou a salvação pelas técnicas ecologicamente puras, sobre um fundo comum de crítica ao antropocentrismo.
A primeira observação que estas teorias nos sugerem é para assinalar a sua localização na geografia geopolítica.
O seu nascimento é indissociável das preocupações de uma elite técnico-industrial a braços, simultaneamente, com a crise ambiental dos seus países e do modelo anglo-saxónico e ocidental de produção, que globalizou o mundo. Elas emergem precisamente nos finais da década de 70, perante o crescimento da competição internacional pela liderança, marcada pela ascensão económica do Japão e da Alemanha, mas também dos países industrializados da Ásia/Pacífico e têm de enfrentar ainda o crescente protagonismo mundial dos países dependentes do hemisfério sul.
A segunda reflexão preocupa-se com a história oculta do progresso tecnológico: basta avaliar o último grande avanço energético, celebrado nos anos 50 com a energia nuclear, glorificada então por não produzir gás carbónico e produtos ácidos, mas de facto encobrindo os efeitos catastróficos das fugas, acidentes e resíduos nucleares, de Three Miles Island a Chernobyl.
O que nos conduz à terceira apreciação crítica: improvavelmente qualquer tecnologia algum dia inventada se mostrará mais eficaz do que os processos naturais de seleção, reutilização e reciclagem, que ocorrem nos principais ecossistemas favoráveis à vida e deram origem aos grandes quadros da paisagem natural humanizada.
E, finalmente, mas não menos importante, a ênfase colocada por alguns políticos na mundialização do ambiente e no controle, gestão centralizada e concentração de bancos da biodiversidade, traduzida, por exemplo, no atrativo slogan de Al Gore de um Plano Marshall para o Ambiente, leva-nos a recordar que o  plano homólogo, apresentado como via para a reconstrução da Europa devastada pela II Guerra Mundial, serviu igualmente para consolidar a hegemonia americana no ocidente, no contexto da “guerra fria” com os países de leste.
As posições atuais dos defensores da ética da terra, como Rolston III e Callicot, conduzem ao reconhecimento “…do valor intrínseco de todo o componente ecológico”, no dizer do primeiro, e ao princípio de que “… o efeito sobre os sistemas ecológicos é o fator decisivo na determinação da qualidade ética das ações.” [35]
Demarcando - se do radicalismo de Rolston III, Callicot defende o direito à vida de plantas e animais imprescindíveis ao equilíbrio ecológico de determinadas comunidades bióticas, exemplificadas pelo caso dos felinos ameaçados de extinção nos seus habitats da América do Norte, mas aceitando igualmente que outros animais e plantas sejam destruídos quando constituem uma ameaça mortal para a comunidade natural de determinado sítio e, consequentemente, o controle das espécies por parte do homem.[36]
A absolutização dos quadros naturais significa não ter em conta que todos esses meios são hoje obra comum da espécie humana e podem levar ao extremismo de pretender reduzir o género humano ao peso numérico da “comunidade dos ursos!”
Por outro lado, não há praticamente quadros naturais puros mas sim paisagens humanizadas em maior ou menor grau e o seu equilíbrio ecológico é sempre dinâmico e relativo. Os defensores da Teoria sintética da Evolução, partidários de um “gradualismo filético” que entende a evolução das espécies como resultado da convergência de mutações biológicas e mudanças ambientais[37]. Ou os seus contraditores, mais inclinados para as doutrinas do “equilíbrio intermitente”, que enfatizam o facto de a paleontologia, em regra, não evidenciar modificações graduais e para os quais as espécies podem surgir num estado avançado, permanecer longamente com existência estável e depois perecer para dar origem a outras, contribuíram igualmente para compreendermos hoje a complexidade dos problemas da evolução e da extinção das espécies.[38] Partindo da síntese entre estas duas correntes, as descobertas científicas permitem-nos ter a certeza apenas de que o equilíbrio dos ecossistemas favoráveis à vida depende de uma infinidade de relações geológicas, biológicas e físicas e reconhecem que quanto mais alta é a posição ocupada pelos organismos na cadeia alimentar, maior é a sua vulnerabilidade, podendo a destruição de algumas espécies afetar drasticamente todo o sistema.
Houve sempre extinções ao longo das várias épocas da história da vida e o património biogenético recuperou a sua riqueza e diversidade_ foi assim nos finais do Pérmico (com o desaparecimento das Trilobites), do Cretácico Terminal (o fim dos dinossáurios não-avianos), do Plistocénico superior (quando sucumbem os mamíferos oriundos da América do Sul) e do Quaternário (extermínio e morte de espécies contemporâneas do homem, como o tigre dente-de-sabre e o mamute). O que hoje é dramático, conhecida a lei de bronze da Paleontologia, que postula a Irreversibilidade da Evolução, é o ritmo a que se processa a perda da biodiversidade, a destruição dos recursos naturais energéticos e a multiplicação dos efeitos poluidores que atingem não só o conjunto do planeta _a litosfera, a hidrosfera, a criosfera, a atmosfera e a biosfera, mas também e, com consequências imprevisíveis, o material genético fundamental, o ADN que conserva e reproduz os códigos da vida.
Tudo isto é suficiente para não reduzir a reflexão dos defensores da ética da terra a uma obsessão sectária ou a um problema regional dos países ricos.
Se os autores citados, Rolston III e Callicot,  não enfatizassem o princípio do “valor intrínseco” das espécies, poderíamos inferir que a sua crítica estaria dirigida contra os excessos da industrialização agropecuária da terra, que conduz à monocultura e à liquidação das espécies de menor rendimento económico, abrindo o caminho à extinção da biodiversidade, à destruição dos solos agricultáveis e à colonização dos nichos vazios pelas espécies infestantes e ao desenvolvimento das pragas.
Nas obras mais recentes de Callicot, as suas propostas, que desde o início procuram conjugar a intervenção dos defensores da ética animal e da ética da terra, surgem - nos com uma tonalidade reformista e conciliadora, no plano social, aconselhando os agricultores privados a reservar (sacrificar) uma parte da terra produtiva para o livre desenvolvimento da vida selvagem, não apenas em nome da conservação da natureza, mas também por razões estéticas de usufruto da beleza da paisagem natural, através do espetáculo da sua diversidade, particularmente no que se refere às novas gerações, na linha do pensamento de Aldo Leopold, de quem se afirma discípulo e continuador. [39]
Encontramos, nas obras dos nossos escritores citados ao longo deste trabalho, uma outra perspectiva, que recusa os extremismos anti-humanistas e assenta a sua ética da terra no elogio e na defesa do agricultor como arquiteto e conservador da paisagem, empiricamente ecologista no seu modo de produção, ao combinar o arroteamento do solo com a compartimentação organizada pela floresta e pelas sebes contínuas de arvoredo, ao sustentar a sua fertilidade na retenção da água e no uso dos matos para produzir matéria orgânica, ao alternar culturas e pastagens, cortes e afolhamentos, permitindo deste modo que perdure a diversidade da vida animal domesticada e selvagem. Sem deixar de registar os factores de crise ambiental que resultam da ação do homem, desde o corte excessivo das florestas primitivas, à monocultura agrícola ou aos excessos da pastorícia.
Avaliemos agora a visão ética que subjaz à reflexão sobre a Terra e o Homem desses escritores.
A obra de José Gomes Ferreira é, no dizer de Carlos Oliveira, “a voz da terra…alguns momentos mais intensos amplificam esta voz da Terra mas nada lhe responde: estamos cercados por astros silenciosos e indiferentes.” [40]
A imagem apocalíptica de um planeta devastado pelo progresso tecnológico e pela sua expressão mais avançada, as tecnologias militares, emerge nos versos de José Gomes Ferreira, tragicamente premonitórios da II Guerra Mundial que se anunciava na Guerra Civil Espanhola e nas suas Guernicas. Mas imagem também da febre de industrialização e urbanização que fazia ruir muitos dos equilíbrios naturais nos países e nas metrópoles mais desenvolvidas.
Poeta que percecionou a crise ambiental da modernidade. Escutemo-lo:
“Deixem-nos o planeta descarnado e áspero…”O deserto urbano, onde impera o betão e o asfalto e se acumulam sinais de morte …“…Um planeta feito de lágrimas e caveiras de sucata/com morcegos que dançam na penumbra o enigma das tocas…”Com os símbolos dos complexos industriais e dos bairros suburbanos degradados…“…E fábricas da galopes de cavalos com patas de fumo/…E barracões e vielas e vícios e escravos…”
“…Deixem-nos o planeta despido de árvores de estrelas
a nós os poetas que estrangulámos todos os pássaros
para ouvirmos mais alto o silêncio dos homens
- terríveis à espera
na sombra do chão
sujo da nossa morte...”[41]
A belíssima imagem do “silêncio dos homens” evoca-nos imediatamente a obra homónima de Rachel Carson, Silent Spring, trinta anos posterior, na sua conotação com a natureza e a natureza humana silenciadas pela imagem dantesca do planeta supercivilizado.
Os poetas, como José Gomes Ferreira, optaram então por afastar dos seus versos a beleza da vida “estrangulámos todos os pássaros”, para que esta terrível realidade, da opressão sobre a humanidade e da crise ambiental, se tornasse visível e a todos responsabilizasse, incluindo os poetas, “terríveis à espera”,  e também  eles vítimas  “na sombra do chão sujo/da nossa morte” .
A lírica “épica“, de Eugénio de Andrade, parte da mesma realidade imanente mas para a realização dos mais belos sonhos humanos.
“ Coração Habitado
Aqui estão as mãos.
São os mais belos sinais da terra.
Os anjos nascem aqui :
frescos, matinais, quase de orvalho,
de coração alegre e povoado”[42]
Não se trata de uma nova forma de panteísmo com cores científicas como na visão de Lovelock, ou de bucolismo extemporâneo, mas de uma experiência estética da natureza de onde emana a necessidade de uma nova relação de solidariedade amorosa (lírica) para com a diversidade das manifestações da vida natural.
 E da perceção única, que só a poesia e as novas ciências interdisciplinares partilham, de que em cada uma das manifestações da vida e da sua beleza se pode ler o próprio universo, que tudo está de facto ligado por laços que só se vão tornando visíveis à sensibilidade dos poetas e à descoberta dos sábios.
 Deste espetáculo e da sua revelação lírica emana uma outra visão ética que revela os valores da terra. E que são os da solidariedade entre os seres que a povoam e com ela constroem a teia da vida e da beleza, pelo trabalho (as mãos), pelo esforço de criar, renascer (os frutos), isto é, partilhar os sonhos mais puros (os anjos nascem aqui) e mais deslumbrados (um pássaro nascia dos seus dedos entrelaçados).[43]
        “... Tinham fome e sede como os bichos,
e silêncio
à roda dos seus passos.
Mas a cada gesto que faziam
um pássaro nascia dos seus dedos
e deslumbrado penetrava nos espaços...”[44]
Uma ética da terra que apela para os mais nobres sentimentos humanos, mas se demarca do pragmatismo científico ou religioso, e, assim, abre caminho à superação do antropocentrismo com base no reconhecimento da solidariedade e do respeito pela integridade (= liberdade) dos seres e das criaturas, sobretudo das mais frágeis, “os amantes sem dinheiro“, num mundo em que o dinheiro é senhor.
Uma lírica da natureza”, na opinião daquele crítico literário. [45]
Vimos já como a poética humanista percorre a obra dos grandes prosadores do nosso século; e que este conceito não pode ser associado mecanicamente ao antropocentrismo finalista e pragmático. Teremos ocasião de avaliar o valor filosófico da reflexão artística dos nossos escritores, quando adiante analisarmos a sua atitude face aos seres que nos estão mais próximos na árvore da vida, os animais e, particularmente, alguns mamíferos. Abordamos agora a obra de um dos mais notáveis, José Saramago, mas enfocando a nossa análise sobre a sua poesia.
Com a moderna visão científica, acerca do nascimento e evolução da vida, subjacente aos seus versos e com notável sentido da relação cósmica da espécie humana com a Terra Mãe e da precaridade da espécie humana, dois dos seus Poemas Possíveis:
“…Na vastidão do mar nasceram deuses:
Somos frutos da lama , água turvada.[46]

 QUANDO OS HOMENS MORREREM
Sinal de Deus não foi, que Deus não há
(Ou se há, vive longe e nos engana)…“[47]
Um laço que Saramago estende ao Cosmos, celebrando no bruxulear da vida inteligente a glória do Universo.
“ DE MIM À ESTRELA... 
De mim à estrela um passo me separa:
Lumes da mesma luz que dispersou
Na casual explosão do nascimento,
Entre a noite que foi e há-de ser,
A glória solar do pensamento. “[48]
A cosmologia descobriu as fornalhas de onde irrompe a alquimia da vida _ estrelas anãs brancas e vermelhas, novas e supernovas, gigantes vermelhas, pulsares… Somos todos, poeira das estrelas! [49]
E é da fusão cósmica com a natureza que nos falam os versos de Natércia Freire:
Dos limites sem limite
que há entre os homens e eu
do meu orgulho de verme
e de pássaro indiferente;
volto a ser da mansa areia;
volto a ser das mansas brisas,
volto a sonhar longas asas
não precisas.”[50]
Mas a consciência de que o antropocentrismo não é uma postura ética sem mácula e tão pouco corresponde à visão atual da ciência, pois o universo não tem centro e ao mesmo tempo cada ser ocupa (diversamente) esse lugar, não tem de conduzir fatalmente ao menosprezo pela espécie humana e ao abandono do humanismo, que assim é chamado a renovar – se, pela filosofia e pela ética ambientais, ou então, mais que provavelmente, a pôr fim à sua extraordinária odisseia entre o silêncio dos mundos.
A luta pela sobrevivência e o sacrifício das espécies para que a família biológica humana prevaleça, surgem como a principal justificação para o predomínio na cultura ocidental da visão antropocêntrica, a qual, vencido o último obstáculo com a dessacralização da natureza, deu livre curso à exploração universal dos recursos, servindo o que hoje se classifica como capitalismo selvagem. Este permitiu tudo, de facto, mas apenas aos indivíduos que dominam o mercado político e economicamente e submeteu a produção atual ao fetiche da mercadoria, retirando-a do reino da necessidade social.
Ou seja, se o finalismo cristão e o iluminismo racionalista fundamentam em boa medida a arrogância humana face à natureza, no dealbar da Idade Contemporânea, a verdade é que a agressão ambiental não decorre diretamente daquela postura ideológica, pois ela continha geralmente reflexões limitativas no que se refere ao respeito pela vida e sobretudo pela obra da criação, a natureza como espelho e livro da criação divinas. Foi então necessário que à ignorância histórica dos fatores de crise ambiental se associasse a demolição da ideia de natureza sacralizada, para que tudo fosse permitido e legitimado pela expansão do mercado mundial, tarefa para cuja realização contribuiu, também, a filosofia positivista.
Importa analisar agora os limites éticos a esse princípio supremo de legitimidade da luta pela sobrevivência, até à fronteira da morte e no contexto da relação do homem com a natureza, submetendo as teses de Rosnay, Taylor, Lovelock, a uma nova avaliação sobre este prisma. Deixemos para já a questão particular da relação com outros seres vivos, que abordaremos em capítulos posteriores, e analisemos o problema de forma genérica, na perspectiva do homem.
Do ponto de vista biológico, a morte dos indivíduos é condição para a continuidade da espécie no seu habitat natural, que está em equilíbrio dinâmico. Mas o nascimento e a evolução do espírito humano desafiam a própria morte individual, como proclamou Jorge de Sena no poema citado:
Não foi para morrer que falámos
          que descobrimos a ternura e o fogo,
          e a pintura, a escrita, a doce música.
          Não foi para morrer que nós sonhámos
          ser imortais, ter alma, reviver,
          ou que sonhámos deuses que por nós
          fossem mais imortais que sonharíamos …”[51]
         E é de novo a ligação umbilical do Homem a todas as coisas e seres, que atravessa a poesia de José Gomes Ferreira e o seu apelo à libertação das cadeias e alienações que impedem o reencontro do ser humano com a sua liberdade e dignidade face a face com a serenidade da Morte.
“ ( Prega, prega, Voz Solene!)
Homem,
preso pela sombra a todas as pedras
preso pelos olhos a todas as aves,
preso pelo corpo a todas as raízes,
preso pela sede a todas as fontes…
          Apelo direto à luta pela dignidade da vida, contra a opressão social e a consciência ôntica face à precariedade da existência, mas que para o poeta não é sinal de angústia metafísica, antes exigência ética da própria luta… 
“…Levanta-te a cantar
-através de pântanos e de rochas
…homem livre que caminhas
amarrado ao Carro da Morte
até o Grande Silêncio.”[52]
A omnipresença da morte em toda a natureza e de novo a consciência ôntica da sua sombra atravessam os versos de Ruy Belo. Mais triste é termos de nascer e morrer/e haver árvores no fim da rua”.[53]
Mas o poeta encontra, na expressão do amor e na partilha com os entes queridos das emoções despertas pelo contacto com a diversidade da vida na natureza, os momentos de resistência ao fim inexorável…[54] Na evocação da infância.[55] Na evocação da mulher amada.Éramos tão jovens nesse tempo /que não sabíamos sequer que nos amávamos assim…”[56]
Para Casimiro de Brito nós somos a unidade da vida, amor e morte, mas identificados com a terra somos também a natureza que nega a morte.“…Na paz discreta do barro e dos limos /apodreço fascinado: preparo-me /para que salto”?[57] O eterno retorno à terra-mãe, o fim biológico de cada ser, sem angústia metafísica, para que a diversidade da vida germine e se renove.
“…A meu lado germina no lodo
o sabor a sangue das plantas
           seu peso maduro
            de vento e orvalho…
Ascendo à terra vegetal
como quem bebe
e bebo o fulgor da morte…” [58]
Mas o amor não são apenas “os corpos azuis que se amam na noite por ti despida” sobre ervas orvalhadas e luar, é a ligação com a beleza da terra “Íntimo rumor do mundo fecundada. Lume e perfume do sol“.[59] O amor que envolve o combate social, solidariamente partilhado com aquele punhado de homens cercados na fortaleza onde se travam “as lutas pela terra e pelo pão” .    
Abordemos, por fim, a obra de Luiza Neto Jorge, para nela reconhecer a poesia da sublevação contra um mundo inaceitável, sobretudo para a mulher e com esta temática abrir caminho para a reflexão sobre as novas éticas que emergem no nosso tempo. [60]
Do seu fabulário moderno, monumento à dignidade e diversidade da própria vida e ao esforço de a viver, que num estilo mais próximo das estéticas pós-modernistas repisa caminhos que escritores, como Aquilino, Torga ou Raul Brandão, abriram desde a década de 20 ao reconhecerem a condição ética dos animais, retiremos o poema homólogo “Monumento às Aves“.
Com a segurança exata do guindaste
erguem-se transportando
o peso intenso
do objeto que se ergue…” [61]
…e cuja voz é universal, e é neste sentido que queremos dizer do seu estilo ser diverso dos antecessores e marcado pelo “espírito“ atual da escrita, sincrética e semiótica, mais que figurativa e realista.
Quando nos aproximamos do capítulo dedicado à Ética Animal, talvez seja de novo o momento para voltarmos a comparar o pensamento de figuras de referência do movimento ambientalista e dos nossos escritores, procurando estabelecer até que ponto estes levaram a cabo uma reflexão crítica sobre o antropocentrismo e contribuíram para a sua superação.

“Que sentimentos, que coragem ou que motivos levaram o homem no passado a levar à boca, pela primeira vez, a carne martirizada… a servir à mesa corpos  mortos e mesmo ídolos e a usar como alimento a carne dos membros dos animais que, pouco antes, baliam, mugiam, marchavam e viam? Como é que os seus olhos são insensíveis ao martírio? Como o seu gosto não se enoja de horror, quando manipula ferimentos repugnantes?”[62] “Comerem-se uns animais aos outros é voracidade e sevícia, e não estatuto da natureza.”[63]


Quando anteriormente tentámos qualificar as contribuições dos nossos poetas e prosadores definindo-as como uma espécie de antropocentrismo ecológico, afirmámos que foram ainda mais além na visão crítica e autocrítica das relações do homem com os outros seres vivos e com a natureza em geral. Queríamos assim referir-nos, nomeadamente, aos problemas levantados pela ética animal.
Citámos já Gordon Taylor para evidenciar a existência no ser humano de sólidos instintos territoriais que a instabilidade da vida social moderna esfrangalha, ao mesmo tempo que dissolve as comunidades étnicas, gerando gravíssimas perturbações psicossomáticas nos indivíduos. A extensão deste problema é tal que abarca não apenas as tribos antiquíssimas que o avanço da civilização aniquila, mas também a destruição do nosso próprio mundo rural e o desenraizamento dos seus naturais nas periferias das grandes cidades. Para atingir o horror de novos holocaustos que vitimam comunidades africanas em todo o continente, as nações balcânicas e do Médio Oriente, da Ásia Menor e do Sul, das ilhas oceânicas e da América Central, divididas e oprimidas pelos mapas políticos e pelos pactos coloniais e neocoloniais.
Caberia ao australiano Singer e ao americano Regan enfatizar os sentimentos e os direitos dos animais face à brutalidade dos processos produtivos modernos: clonagem genética, jaulas prisão, rações baseadas na carne triturada de animais mortos e saturadas de hormonas, violação sistemática dos ritmos naturais e das necessidades da vida animal, tudo isto em função do lucro máximo.
Em nome do princípio da igualdade, os dois autores referidos recusam o conceito da superioridade da espécie humana, que comparam ao racismo, por violar aquele princípio, censurando à maioria dos humanos o não reconhecimento da capacidade de sentir e sofrer dos animais. Nas suas obras afirmam que os animais são sujeitos de interesse em não sofrer e também, acrescenta Regan, são sujeitos de direito, por que são sujeitos de uma experiência de vida que possui valor intrínseco.
Peter Singer merece-nos uma referência especial, para assinalar as perseguições e boicotes de que foi vítima, em diversos países do mundo mais desenvolvido, Alemanha à cabeça, não diretamente por causa das conceções acerca da ética animal, mas sobretudo pela sua defesa de algumas formas de eutanásia. Os seus detratores tomaram a preservação da vida humana como bandeira, acusando-o de ignorar o seu valor intrínseco e, naturalmente, de se preocupar mais com os animais do que com as pessoas.[64]
Não é o lugar, aqui, para explorarmos este último conceito na ótica do filósofo, mas importa realçar que as suas preocupações quanto à defesa dos direitos dos animais estão carregadas de “humanismo“ e o seu discurso crítico se preocupa sobremaneira com a hipocrisia da moral oficial no tratamento do conflito entre ricos e pobres, sejam pessoas ou países. Vejamos, resumidamente, os seus princípios no que toca à ética animal:
Partindo da tese de que “…alguns animais não humanos parecem ser racionais e conscientes de si, concebendo-se como seres distintos que possuem um passado e um futuro…”, propõe-nos uma ética gradualista contra o assassinato de animais, que no seu patamar superior estende aos chimpanzés, gorilas e orangotangos a mesma proteção devida aos seres humanos.[65] Questiona se esta restrição não deve ser alargada a todos os mamíferos, para reconhecer depois que, face a outros animais que não são seres racionais e autoconscientes, a sua argumentação enfraquece, postulando embora que é sempre inaceitável provocar a morte prematura de biliões de animais. No entanto, admite que há situações especiais em que pode não ser errado permitir a substituição, por morte, de uns animais por outros (o abate indolor das galinhas para alimento e para dar lugar a novos indivíduos, como exemplo). Mas conclui que lhe parece ser melhor elevar a princípio elementar o evitar matá-los,  porque não são essenciais à alimentação humana, a menos que isso seja justificado tendo em vista a própria sobrevivência. Na obra citada, Singer denuncia, com as próprias cifras do Presidente do Banco Mundial e os seus relatórios, o drama da “ pobreza absoluta “ no planeta, destacando a morte, que classifica como assassinato, de 14 milhões de crianças por ano, devido a carências nutritivas, ao pôr em evidência que o mundo produz alimentos e bens suficientes para erradicar estes problemas, pelo que a sua génese está nas relações injustas de distribuição. Postulando a obrigação ética de ajudar, vai desmontando uma a uma as objeções que se lhe opõem_ cuidar de nós mesmos; direitos de propriedade; a ética da triagem populacional; deixar a cargo do governo…e a derradeira, o padrão alto da ajuda. Para concluir que podemos e devemos impedir uma parcela da pobreza absoluta, sem que isso implique de facto sacrificar nada de importância moral comparável, sendo a prioridade “… as necessidades de vida ou morte dos outros” e deixando explícito que, se é mais importante lutar politicamente pelos direitos dos mais pobres, nada nos inibe de lhe somar a ajuda concreta possível.[66]
Torna assim claro que há, entre a fome no mundo e a matança brutal dos animais, um padrão civilizacional comum, o da sociedade de consumo atual e do seu modo amoral e desigual de produção e circulação das mercadorias.
Em apoio desta linha de pensamento, o conhecimento aprofundado das comunidades animais permitiu revelar formas notáveis da sua organização comunitária e inusitadas capacidades: a inteligência dos golfinhos, o uso de instrumentos de trabalho por algumas espécies de chimpanzés, o sistema de vida igualitária das comunidades de aves de rapina, o formidável instinto maternal das baleias, complexos e ternos jogos nupciais... enfim, potências animais até então ignoradas, que em comum parecem ter a capacidade afetiva, de sofrimento e de comunicação, elementos chave para fundar uma nova perspectiva ética.
Aqui também assinalamos a conotação geopolítica desta problemática, nascida exatamente no seio das sociedades mais desenvolvidas do ocidente. Não é no entanto a hora e o lugar para refletir sobre as perspectivas das culturas orientais e doutras ditas primitivas, que propõem desde a antiguidade uma atitude de respeito pela vida e pela natureza, e o recolocar do homem numa posição mais modesta  perante a terra e no seio do universo.
Mas, precisamente, porque as sociedades ocidentais mais desenvolvidas hegemonizam a produção social e exportam internacionalmente o seu modelo, interessa-nos focalizar nelas o nosso trabalho de investigação comparada. Nos próximos capítulos evidenciaremos o contributo pioneiro dos nossos escritores, no domínio da reflexão acerca das potências animais que ultrapassam o mero instinto, e daremos conta de como as suas preposições intervêm no âmbito da reflexão filosófica e política que visa ultrapassar tanto o antropocentrismo egoísta como a ética animal anti-humanista, com destaque para Aquilino, Torga e Brandão.
A cultura camponesa com a qual Aquilino e Torga, Ferreira de Castro e Raul Brandão, Redol ou Namora conviveram, na primeira metade do século XX, conservava nas relações com a terra, os animais, a paisagem humanizada, nos costumes e no imaginário mágico e religioso, uma ética antiquíssima que a luta pela sobrevivência e o conhecimento empírico da vida moldaram contraditoriamente.
Os fojos dos lobos são armadilhas que remontam à pré-história e permitiam o extermínio sistemático das alcateias, mas as peças de caça pejadas estavam interditas aos caçadores; as grandes aves de rapina, como os grifos, verdadeiros agentes sanitários que limpavam as serranias dos cadáveres e miasmas doentios eram respeitadas, mas as mais pequenas, como os milhafres, acusados de rapinar as capoeiras, eram perseguidos nos ninhos.
A proximidade entre os vizinhos, tal como do criador e do consumidor dos animais, quando as economias de subsistência resistiam ainda ao mercado único e capitalista, conduziam à permanência de laços de solidariedade social e de afetividade com os animais, hoje totalmente estranhos ao cidadão urbano que não convive com seu parceiro de condomínio e consome a carne iconizada (hamburger-cachorro-prego-rissol etc.) de exemplares completamente desconhecidos.
Paradigmas dessa afetividade perdida (e contraditória) são, por exemplo, a partilha social da dor da morte ou da alegria do casamento, com os rituais de velório e do funeral coletivos, ou a oferta de guloseimas aos vizinhos. São as lágrimas da mulher que criou o porco quando a matança se inicia, mesmo sabendo que esse sacrifício é essencial à subsistência do lar e a entrega dessa tarefa a um especialista estranho à família, chamado a executar impessoalmente o golpe fatal. São as canções de incitamento dos bois quando lavram e o corte diário de erva fresca para o "vivo" da casa... mas também o uso da vergasta e do aguilhão apenas quando já não há outro meio de conduzir o animal...
 Os processos de domesticação conduziram a uma ética animal empírica que a produção moderna desprezou completamente:
A regra de aviar primeiro os animais domésticos e só depois servir a ceia.
A prática de criar os animais em territórios amplos, permitindo-lhes utilizar o espaço segundo as suas necessidades e ritmos biológicos, alimentares, de acasalamento e de pisoteio. O dever de ajudar as crias a nascer e a percorrer longas distâncias.
A preocupação de renovar regularmente as camas dos animais. O tratamento higiénico, os cuidados e afetos, prestados quotidianamente aos animais de locomoção.
A conservação dos exemplares envelhecidos ou diminuídos, já sem interesse económico. A morte piedosa de animais gravemente doentes ou aleijados por imperativo de pôr fim ao seu sofrimento visível e insuportável...
Constituem exemplos concretos, entre muitos outros, dessa ética imanente. Na verdade, não são apenas razões estritas de ordem económica ou de pragmatismo funcional que explicam a construção secular dessas práticas. Os animais possuem códigos de comunicação e resposta afetiva que interagem com o tratamento humano. E esse capital afetivo entrelaçou-se nas memórias e atitudes da consciência coletiva das comunidades rurais, transmitidas de geração em geração. O seu imaginário reconhece a transcendência ética destes factos e não apenas em função do imperativo religioso, por isso o antigo inimigo tira o chapéu na passagem do funeral e o camponês endurecido enterra o seu cão sem conseguir esconder os sentimentos de desgosto.
A mecanização do quotidiano anónimo das cidades e das suas práticas de consumo, a urbanização maciça do espaço rural, traduziram-se não apenas na redução do património biogenético dos campos mas também da sua herança ética secular, favorecendo o amoralismo e o indiferentismo deste fim de século. Veremos como os nossos escritores deram testemunho da existência daqueles valores e escreveram para os preservar e transmitir às gerações futuras, quando estas questões ainda não preocupavam as elites intelectuais dos países mais desenvolvidos.


A propósito desta obra, escrita em 1924 como literatura infantil, Aquilino Ribeiro produziu o seguinte comentário.
“…Os meus assuntos vou buscá-los à história natural racionalizando-os. Nós inventamos, para explicar a mecânica da nossa inteligência, esta palavra mágica: razão. Ao complexo de fenómenos, de que o nosso cérebro é Teatro, preside esta espécie de deusa, ou melhor, fada. Que mais não seja é um expoente.  Para os animais, o instinto é a origem e faculdade acima dos seus atos. Mas eu, por experiência, tenho verificado que há actos da vida animal, o homem à parte, que superam o âmbito de tal potência.  Ora são esses atos que eu transponho, humanizo, no que imagino tais bichos movidos pelos mesmos móbiles vitais que nos animam a nós.…”[67]
Sublinho a afirmação de Aquilino, baseada na sua experiência, de que há atos da vida animal que superam o instinto e a aproximam da vida humana. E atente-se na reflexão posterior, acerca da raposa Salta-Pocinhas.
“…É evidente que a minha personagem tem este encanto: existir, ser conhecida, e eu pôr à vista a sua relojoaria íntima, engenhosa e arteira, e cada criança admirar nela as habilidades da nossa espécie para subsistir e impor-se na natureza, que não tem simpatias especiais para nenhum dos seus seres.…”[68]
Retenhamos aqui o pensamento final: “… A natureza não tem simpatias especiais para nenhum dos seus seres .”
Eis uma conclusão notável, do ponto de vista científico, sobre as relações entre a natureza e o homem de consequências revolucionárias para fundar uma nova visão ética, onde a capacidade de sentir (alegria e tristeza, dor e felicidade, prazer …) enfim, toda a dualidade do ofício de viver, se transforma num critério com relevância moral.
Penetremos com Aquilino na mente da velha comadre, idosa e acabada, no pino do terrível inverno das Beiras.“…recordava as doces horas levadas juntos, as suas núpcias, os seus folguedos na relva orvalhada do rocio da alva, pelas manhãs de sol…”[69] “…A arrotar de fartos estiravam-se sobre as quatro patas; vagarosamente lambiam o beiço, o colo, as mãos…”[70]
As duas epopeias, a da luta pela sobrevivência da espécie humana e das outras espécies animais, assumem um paralelo filosófico e uma dignidade ética, que questiona ao homem o papel de rei tirano da natureza. A audácia suprema que o impele para a luta é aqui retratada como a astúcia de “Ulisses, havida, sob determinados aspetos, como a boa e admirável e por extensão a velhacaria social” .
É nesta outra linha de leitura simbólica que o autor nos transporta paralelamente e através de diversas alegorias à nossa própria sociedade, seja com a indiferença para a condição dos pobres, dos velhos e dos esfomeados, seja no retrato da hipocrisia nas relações políticas. Como se vê na reação dos bichos à morte simulada do vizo-rei da floresta, o lobo Brutamontes.[71] Ou na recusa dos da sua espécie, em partilhar lauto banquete com a velha raposa esfomeada.[72]
Mas há ainda um outro plano de interpretação do texto: Aquilino Ribeiro traça-nos um vasto e pormenorizado fresco da biodiversidade das florestas endógenas do nosso país, semeadas de carvalhos e castanheiros, que garantiam aos bichos alimento e abrigo. Como na cena da leitura da sentença do vizo-rei, contra a nossa heroína.“…Lá estavam doninhas e arganazes, roedores e répteis, e, pelas árvores, a águia, o abutre, o bufo, o nebri e mais povo dos céus e matas de Portugal'. A desbanda, como quem ali não é chamado, via-se erguido sobre as patas, grandão, paspalhão, o urso Mariana…”[73] A sua preocupação com as espécies ameaçadas leva-o a aproveitar o ensejo para denunciar a ameaça de extinção que pesa sobre o lince, sessenta anos antes da campanha nacional para o salvar, no último reduto da Malcata ! “…Ora um bicho de vista penetrante, ao qual saem das orelhas pincéis de barbear, subira acima dum penedinho. Era o lince, nomeado também lobo-cerval, animal que, de batido e perseguido, caçado e fuzilado, vai rareando nos bosques…”[74] E a própria figura, aparentemente estranha, do urso Mariana, que na trama narrativa é um fugitivo do cativeiro das feiras onde um húngaro o exibia, funciona como denúncia da liquidação e aviltamento de uma espécie nobre (o urso aquiliniano é sábio) que compartilhou com todas as que o livrinho descreve, os bosques do nosso país, até ao séc. XVII.[75]
Um fresco animado pelas vozes e cânticos da natureza. O Bufo Real, que parece querer dizer: “Viram bois! Viram bois,  O cavaleiro do inverno”, que se “ouvia por detrás das montanhas a relinchar! Os gritos dos lavradores conduzindo a junta: …eh lá moirisco!” Os grilos que repetem “Sou livre! Sou livre!” E as rãs nos charcos e as rolas nas clareiras, respondendo. “Vem cá para fora! Vem cá para fora.” O piar lúgubre do mocho: “ Que fizeste tu! Que fizeste tu!” E o trinado cortante do tentilhão “charim….chrimm…..charimm”.
Onde o bicho-homem, animal das clareiras e plainos, segundo inimigo da raposa, depois do inverno rigoroso e antes dos cães traidores, volta a ser bicho.
É a dona raposa quem nos ensina:
I
“O inverno é a estação do ano em que a madre-natureza nos veste de bom pelote mas despeja a terra de frutos.
          Muitos insetos e passarinhos voaram para o céu dos pardais e coelhos e perdizes são diabretes de finura. A raposinha arranjou saia nova, mas se não tem bom abrigo, se não é fina da vista e ligeira do pé, nunca mais torna a ver a Primavera que lhe despe o pelote e lhe enche o fole.”
II
“0 homem é aquele bicho de duas pernas que parece que não tem medo de nada e tem medo de tudo, que quer saber tudo e não sabe nada, e por isso é mau, cruel e caprichoso. Inferior a nós na corrida, no faro, e no ardil, inventou para nos combater as armas de fogo, as ratoeiras de ferro e os cães ensinados. “
          A aproximação à filosofia lorenziana, que lhe foi posterior, é também aqui sugerida: o homem encarado na sua ligação umbilical com o comportamento dos animais superiores, mas sem as capacidades naturais que esses seres adquiriram na sua relação com o meio ambiente.
III
“Os cães - alguns classificam de sabujos e rafeiros-são para nós, seres livres, os bichos mais justamente odiados do Universo.  Sem eles, o homem era um cego à nossa beira, a tocar berimbau. Sem eles, a terra ficava o paraíso dos raposos; dançávamos nas capoeiras e em paz trincaríamos os ossos dos anhos novos. São escravos do homem; o dono bate-lhes, e lambem a mão que os fere; o dono corre-os à pedra, e vão, humildes, no rasto dele. Não há maiores feras para quem não seja o amo. Louvado seja o lobo que, se os pilha a jeito, fá-los em almôndegas…”[76]
Transportemos esta metáfora para o plano social e encontramos os corpos especiais da repressão estatal, as cadeias burocráticas de controlo da produção e da administração pública e o elogio libertário que sai da pena de Aquilino tão coerentemente como da sua prática de cidadania.


A ética animal, num enquadramento humanista e a valorização da experiência do sentir, como critério moral e moralizador das relações do homem com a sociedade e a natureza, atravessam a obra de Aquilino Ribeiro e também de Miguel Torga.
Este outro autor prossegue na linha aquiliniana de humanizar a vida dos Bichos, abordando todas as emoções e sentimentos que marcam a condição humana nos retratos que traçam de diversos animais. Vamos reproduzi-los em rápido esboço.
Nero
A agonia do cão perdigueiro que rememora nas suas derradeiras horas as recordações mais ternas da infância.[77] “O calvário da educação“ que o havia de transformar num verdadeiro caçador.[78] E, finalmente, os últimos instantes em que o filme da vida adulta acelera e atravessa, até ao esquecimento, os cinco rios do inferno.[79]
Mago
O gato vadio, entretanto instalado no remanso do lar, em conflito de consciência entre a acomodação e a liberdade.[80] Que tenta, num último lance, recuperar os amores e a dignidade perdida junto dos seus companheiros, mas, vencido, vai consumir-se numa “humilhação sem esperança“.[81]
Morgado
O jerico fiel, sacrificado à morte ignominiosa nas garras dos lobos por um dono cobarde que, à despedida, só lamenta a perda das dezassete libras com que o comprara…[82]
Bambo
O sapo que conhecia a ciência da germinação da vida e a ensinava aos homens…[83] Morto pela ignorância e a estupidez humanas.[84]
Tenório
O galo, símbolo da virilidade e do marialvismo.[85] Pobre diabo, miseravelmente degolado no alguidar quando o galaroz lhe ocupou o lugar.[86]
Cega - Rega
Humilde criatura, nascida num monturo, embrião, larva e crisálida que se eleva até à crista do castanheiro. Ícone da renovação eterna da vida, metamorfose da nossa própria existência efémera, transmitindo a mensagem dos poetas que celebram a dignidade humana perante o grande e supremo mistério…[87]
Ladino
Símbolo da resistência do velho camponês que escapou aos perigos mortais da infância, venceu febres e fomes, semeou a sua descendência a esmo e, colocado perante a gadanha da morte, responde com a negaça a quem lhe reza pela alma. [88]
Farrusco
    Laboriosamente entregue à sua faina social de alegrar as almas e limpar as poças e ribeiros dos insetos nocivos. [89]
Miura
O touro nobre e livre encurralado na arena e que prefere a morte à humilhação, num combate desigual com a violência irracional do ser humano.[90]
Vicente
Hipersímbolo da autonomia das criaturas face ao arbítrio dos deuses, o corvo Vicente encarna todos os arquétipos do esforço de libertação dos homens dos seus limites naturais. Encurralado na Arca de Noé, metáfora da Terra fustigada pela cólera de Deus contra a Babel dos Homem.[91] Ele desafia o próprio criador, reclamando o direito a decidir o seu destino.[92]


4.4.1. A Eutanásia em questão

No prefácio dos Novos Contos da Montanha, Torga traça-nos um quadro de realismo cru, com a vida dos camponeses nas montanhas.[93] E fá-lo para nos comprometer com o seu destino[94] O primeiro dos seus contos, o Alma-Grande, leva-nos até aos limites da condição humana, conduzindo-nos ao momento da agonia dos homens e ao problema da eutanásia, sob a ficção de uma terra de judeus, comunidade reprimida ao longo dos séculos pela religião cristã, mas que conserva as convicções e as protege até ao fim.[95] O escritor traça um primeiro quadro da solidariedade e fraternidade na hora da morte, que a cultura urbana e individualista fez desaparecer. Quando o tio Alma-Grande, abafador impiedoso e piedoso dos moribundos sem esperança, cuja função social é evitar com a eutanásia a revelação dos segredos da aldeia, entra na sala onde o doente agoniza, encontra a aldeia serrana em peso, no velório de Isaac.[96] E logo a seguir estamos a presenciar a sinistra tarefa do abafador e a partilhar o drama terrível das suas emoções.[97]
“…- Não... Ainda não... Ainda não…Quantas vezes o abafador tinha escutado aquilo, gritos de desespero, apelos sôfregos e angustiados, sem se deter na sua missão sagrada!  Quantas vezes!  Desta, porém, o apelo e os gemidos soavam-lhe nos ouvidos doutra maneira…”[98] “…Um esforço supremo do Isaac para se livrar das garras que o apertavam e a presença atónita do Abel tiraram às mãos e ao joelho do Alma-Grande a força habitual.  Bem que se extremara nele o assassino, o animal que bebia a grossos tragos o fio de vida que encontrava no caminho!  Bem que se lhe avivava na consciência a certeza de que era matar a razão do seu destino!  Em vão.  O puro instinto não tinha coragem para empurrar aquelas mãos e aquele joelho diante de uma testemunha. Ergueu-se.  Com o rosto coberto por um pano de lividez igual à do agonizante, voltou-se.  E sem coragem para encarar os arregalados e aflitos olhos do pequeno, que o varavam, silenciosamente, saiu. Atravessou a sala cabisbaixo, longe da grandeza trágica das outras vezes.  Deixava atrás de si a vida, e a vida não lhe dava grandeza…[99]
O conto termina com o ajuste de contas de Isaac, que assassina o seu algoz“…- Não matarás...Assim era no Evangelho. Fora dele, numa lei diferente, a moral tinha outros caminhos, como o próprio Alma-Grande sabia. (…) Possantes, inexoráveis, as tenazes iam apertando sempre. E, com mais um estertor apenas, estavam em paz os três. O Isaac tinha a sua vingança, o Alma-Grande já não sentia medo, e a criança compreendera, afinal…”[100]
Nas condições de carência dos modernos cuidados de saúde e de uma comunidade obrigada a esconder a sua verdadeira religião, o ato de eutanásia não voluntária surge eticamente justificado, primeiro, pelo diagnóstico tecnocientífico médico, que declara não haver esperança, depois pela decisão da família, apoiada pelo conselho de vizinhos, de proteger o segredo religioso e proibido da comunidade, que poderia ser revelado ao padre católico no ato da extrema-unção. E, por último, em nome do princípio da beneficência, com a finalidade de aliviar o sofrimento do moribundo. Que o executor, apesar da sua experiência e frieza, não leva a cabo, cedendo à presença do filho de Isaac, quando o testemunho da criança passa a representar, naquele trágico momento, o risco de condenação pela sociedade da eutanásia, transformada em ameaça de assassinato pelo olhar de espanto e pavor do filho da vítima. Ou seja, o princípio da autonomia da vítima respeitado no limite, mas agora, não como resultado do seu livre arbítrio mas através da intervenção dessa outra instância que é, afinal, a moral familiar dominante na sociedade e o seu imperativo legal.

4.4.2. O limiar entre o Homem e o Animal

Para completarmos este quadro falta-nos talvez analisar as obras que estudam a psicologia e a conduta do homem contemporâneo, massificado e envolvido pelo padrão de vida da classe média, situando-o nas condições extremas onde se revela a natureza humana, um pouco ao jeito mas ao contrário de A Selva, de Ferreira de Castro, enquadrando-o agora na selva urbana. Porque foi escrito já em 1979, deixamos para o fim deste trabalho a referência, necessariamente curta, ao Portuguex, de Armando da Silva Carvalho. Que possui um valor acrescido e raro no panorama da cultura nacional dominada pela omnipresença de um “Deus que não ri“, e de um homem português que raras vezes consegue rir de si próprio, enquanto aquela obra é a própria máscara do riso irónico e satírico do autor, retomando uma outra tradição literária singular, a da sátira cortante de O’Neill (que a soube misturar com um lirismo redondo e humano)
Mas concentremo-nos de novo no tema que encabeça este capítulo. Recordemos, a propósito, a observação de Aquilino quando reconhece atos da vida animal que superam o instinto e a aproximam da vida humana.[101] E o comentário, no contexto da caça à baleia nos Açores, de Raul Brandão.[102]
”...Contam que a mãe acompanhada pelo filho, que nasce com quatro ou cinco metros de comprimento, é mais fácil de subjugar, chegando o ambaque (baleia preta) a deixar-se matar quando lhe apanham o pequeno: basta feri-lo ao pé do rabo e puxá-lo para o bote. A mãe já não o larga e prefere, se não pode fugir com ele metido debaixo da asa, que o acabem às lançadas. Quer dizer: esta coisa monstruosa e zincada, com óleo na cabeça, não só come e digere, não só dorme e digere, é capaz de ternura e sacrifício[103]
Acrescentemos - lhe a cena do confronto direto entre os baleeiros e a sua presa, sublinhando o terrível comentário de Raul Brandão acerca da capacidade de matar da espécie humana: “…Mas há principalmente a necessidade de matar, de lutar (numa vida que é mais monótona do que em qualquer parte _ duas vezes monótona pelo mar que os circunda e pelos montes que os entaipam), de vencer as contrariedades e os perigos _ sentimento com raízes no mais profundo da alma humana. “[104]
É nesse limiar estreito entre o homem e o animal que vivem as personagens torguianas, como o Leproso, imolado lentamente pelo fogo vingativo que os seus próprios conterrâneos atearam.[105]
Figuras como a de Madalena, intercalada no livro Os Bichos, mãe solteira que solitariamente arrisca a vida, em plena serra, para esconder o parto pecaminoso dos olhares da aldeia.[106]
E do pastor Ramiro, incapaz de comunicar com os outros homens.“…A alma enchera-se-lhe de silêncio em vinte anos de Marão…”[107]
São como animais resignados os seringueiros das selvas amazónicas de Ferreira de Castro, que o isolamento transforma em transgressores sexuais, capazes de escolher como parceiro…a égua do capataz![108] E quando o romance atinge o seu final, com o episódio trágico da vingança do criado negro, que imola pelo fogo o patrão, castigando-o por ter escravizado e chicoteado os seringueiros fugitivos, o narratário do texto, personificado no jovem português, deixa-nos esta derradeira reflexão sobre a condição humana: “…Não. Não acusaria jamais. A ninguém! A ninguém! Depois do que vira, em si e nos outros, quando o instinto pode mais e acorda mil reações ignoradas, mil imposições que tiranizam os próprios lúcidos e os desvairam, e os amarrotam, e os igualam aos que trazem alma primitiva, só havia a acusar a origem remota, que não fora perfeita na sua criação. Mas também ela era irresponsável e perdia-se na lenda ou na hipótese, longínqua e obscuramente…”[109] A fábula Aquiliniana do  Andam Faunos pelos Bosques conduz-nos ao desfazer da amarga ilusão do Padre Dâmaso,  o bom e afável  abade aldeão, que descobre no mais fundo das almas cristianizadas, desde há dois mil anos, o terrível “génio” da espécie “… A carne ululava pela carne; o homem estabelecia a sua lei moral nesta dualidade: «idealista, sim; animal, sempre.»…”[110]
O aparente naturalismo da pós-modernidade, já que na verdade trata-se de signos e símbolos e não de meras representações da natureza, tem em Cardoso Pires um dos seus mais brilhantes cultores. Com ele a metamorfose do homem em animal suspende-se no texto literário para nos revelar essa dupla natureza da condição humana. Regressando ao Delfim, o escritor é um “furão”, o “criado é meio-cão”, as mulheres são, ao mesmo tempo, “cabras e fêmeas de louva-a-deus”, devoradoras do macho depois do acasalamento…e no Anjo Ancorado surge o  “meio homem, meio peixe”… É Prado Coelho quem sublinha no prefácio do Delfim a caça como uma presença constante no horizonte narrativo do autor, com um valor simbólico que transforma a herança neorrealista, conferindo-lhe uma carga que oscila entre “uma dimensão devoradora e uma dimensão lúdica“. Ou dito de outro modo, uma “ ferocidade original “  a partir da qual a concorrência capitalista transforma o homem em lobo do homem e outra que revela a dialética do ser humano, sujeito da sua própria grandeza e miséria, em todos os sentidos.

Aquela expressão, atribuída a Karl Marx, pretendeu definir o advento do socialismo e é o horizonte político do movimento neorrealista, em particular, do autor de Esteiros e Engrenagem. Soeiro Pereira Gomes termina os seus livros com a mesma imagem de esperança: os filhos dos homens que nunca foram meninos partem à procura do "novo dia".[111] E, como eles, marcha o povo, reclamando trabalho, justiça e liberdade.[112]
          Evoquemos agora a obra inicial de José Fernandes Fafe.
“Vamos nus de promessas:
          por isso somos belos.
          Vamos nus de promessas:
          por isso somos ricos.
          Vamos nus de promessas.”[113]
          É o eco desta caminhada, que ressurge nos cursos de Raul de Carvalho e não se trata aqui de apontar afinidades ideológicas, mas de reconhecer a mensagem poética comum.
“…A trindade dos camponeses é: pão duro, ódio calado
aos senhores, crença de que um dia tudo se tornará
branco, limpo, verdadeiro como a cal - alma branca
das paredes. Será bom e igual para todos. Aleluia… “[114]
Em Alexandre Pinheiro Torres a crítica ao antropocentrismo aparece ligada ao apelo à libertação social.[115]
“…Podemos bem dizer que nos encontramos na idade do jazz band…Mas nunca mais chegamos à do homem livre, à da liberdade…Que não se diga pois, que o homem muito ama quando o amor avara nele a sua luz!”[116]
Encontramos na obra de Casimiro de Brito o apelo à fraternidade do trabalho.
A FÁBRICA: duas perspetivas
…Um buraco medieval dentro da cidade…
…Na fábrica porém
ainda se respira entre os motores e o silêncio
desta humanidade
a luz ainda se desenvolve, a revolta...[117]
E o apoio à Revolução Social.
Ouçam meu nome
um sabor a terra o rumor
         do pão
         Revolução…” [118]
Mas essa preocupação, com a justiça social, surge já, franca e sincera, nos versos de Cesário Verde, como em Civilizações e Provincianas. Citemos um passo do primeiro: “…Homens de carga! Assim as bestas vão curvadas!/ Que vida tão custosa! Que diabo!…”[119] E também do segundo dos poemas;
         “ …ei-las que vêm às manadas,
         com caras de sofrimento,
         Nas grandes marchas forçadas!
         Vêm ao trabalho e ao sustento,
         Com fouces, sachos, enxadas…”
E dirigindo-se à branca fidalga, ao meio dia na cama, lamenta a sorte das filhas da sua ama, que“…Vivem minadas da pulga,/ Negras do tempo e da lama.”[120]
 Censura-lhe a indiferença, não é caso que a comova, assumindo a crítica da pequena burguesia republicana, revolucionária e democrática, contra o Antigo Regime personificado no luxo, na indolência e no desprezo pelo povo, da fidalga ou milady.
O combate social empreendido pelos poetas do Cancioneiro, que as canções Heróicas  de Fernando Lopes Graça celebravam numa síntese vigorosa, reúnem nesta obra o escol dos seus autores e toda a simbologia do seu imaginário artístico. Sigamos a sequência temática da obra : “...ACORDAI.[121] ...MÃE POBRE...[122]...CONVITE...[123]...CRUCIFIXO...[124]...FIRMEZA...[125] ...COMBATE...[126]...CANTO DE ESPERANÇA...” Talvez em nenhum outro terreno, como o da defesa da liberdade e da vida democrática, se tenha manifestado uma tão vasta e comum solidariedade entre poetas e prosadores de múltiplas tendências.[127]
Numa breve panorâmica, renovemos a memória do seu testemunho. Oriundo da Nova Renascença, Afonso Lopes Vieira.
“Se alguém se admirar de que as realizações materiais e espirituais do Estado Novo não bastaram para nos tornar agradecidos e fiéis, responderemos …Um estádio tem muito menos importância que uma criança com fome. Em suma, tanto tempo este povo foi obrigado a conservar-se mudo e quedo que acabou por se desinteressar da coisa pública, de que foi sempre aliás tão cioso”.[128]
Um dos companheiros da Presença, Irene Lisboa, de quem José Gomes Ferreira disse.
“…A causa do povo, em suma, do povo verdadeiro que a autora das Folhas Volantes, que sonhava vendê-las nas feiras, sempre acompanhou sem desfalecimento, talvez para poder amar, com mais profundidade e limpidez de coração, a sua mãe camponesa. Na verdade, parafraseando Saint-Just na Convenção, eu direi que nunca se escreve inocentemente.”[129]
Recordemos a intervenção peculiar dos surrealistas.“…em qualquer país_ e em qualquer época_ a sua procura incessante « de um impossível realizado» «no ato mágico que somos», o «exceder-se de tal forma que não seja possível concetuar-se», a recusa, quási, ou como, de Cátaro, em ingerir o alimento geral, seria propósito perigoso e difícil de manter. No entanto, o tempo vivido sob a ditadura de Salazar, sob a qual «o ar era um vómito e nós seres abjetos» agravaria terrivelmente os custos do seu propósito.”[130]
Vivia-se num ambiente concentracionário, que Alexandre O ‘Neill exorcizou no seu Poema Pouco Original do Medo:
“( Penso no que o medo vai ter
e tenho medo
 que é justamente
que o medo quer )
O medo vai ter tudo
quase tudo
e cada um por seu caminho
havemos todos de chegar
quase todos
a ratos

Sim
 a ratos” [131]
A alegoria, que encontrámos atrás em Afonso Lopes Vieira, era um método aconselhável, perante o rigor da censura, assumisse a forma do Dinossáurio Excelentíssimo, de Cardoso Pires, da Cidade das Flores de Augusto Abelaira, ou do poema  Filipe II, de Gedeão.
“ Foi dono da Terra,
foi senhor do Mundo,
nada lhe faltava…
O que ele não tinha
era um fecho éclair.”[132]
Um ambiente que Natália Correia tornou visível, límpida e impiedosamente, no seu belíssimo poema Queixa das Almas Jovens Censuradas [133].
         “ (…)
Dão-nos um nome e um jornal
         Um avião e um violino
         mas não nos dão o animal
         que espeta os cornos no destino…”
Com a luta armada ainda longe, os temas coloniais estão presentes na obra de Rui Cinatti, escritor timorense ou dos luso-Cabo-Verdianos Manuel Lopes e Baltasar Lopes, tal como na obra de Alexandre Pinheiro Torres, que referimos anteriormente, abordados no contexto da crise ambiental nas áreas das florestas tropicais.[134] Em A Nau de Quixibá, deste último escritor e cuja narrativa decorre em S. Tomé, a temática política incide sobre a tomada de consciência social de um jovem industriado pela propaganda salazarista, no período que antecedeu a II Guerra Mundial, enquanto os primeiros testemunham a seca e a fome mortal das gentes de Cabo Verde.
 Terminemos este apontamento, com dois romances: Terra Morta, de Castro Soromenho.[135] História breve e dramática de um colonialismo primário, feito de memórias das guerras de conquista e das tramas de aculturação dos nativos, de impostos bárbaros, trabalho forçado e chicote, da agonia lenta de uma administração retrógrada e de um comércio espoliador, que aviltam a condição humana de senhores e servos, terra morta de Camaxilo.
E o romance de José Augusto França, Natureza Morta, África Triste portuguesa, onde os sonhos morrem duas vezes, na decomposição da natureza humana e na saudade sem retorno. O naufrágio das ilusões e dos mais exaltantes sentimentos humanos, perdidos no ambiente da floresta angolana, estranho e hostil para o colono, degradando a dignidade humana pela separação e opressão das “raças”.
Para seguirmos a mensagem transgressora de Egito Gonçalves, com a qualidade que Óscar Lopes lhe aponta, de acerto do relógio com a poesia ibérica de combate social.[136] O amor como refúgio e metáfora que apela a um mundo novo, na obra A Viagem com o Teu Rosto.[137]
Vejamos alguns extratos dos versos Notícias do Bloqueio.
“(…)
Dirás como trabalhamos em silêncio,
como comemos silêncio, bebemos
silêncio, nadamos e morremos
feridos de duro silêncio violento”.[138]
Os versos subversivos de Daniel Filipe, ainda sob a metáfora do amor…“Em todas as esquinas da cidade…/um cartaz denuncia o nosso amor…”
A denúncia da repressão política…
“É preciso encontrá-los antes que seja tarde
         Antes que o seu exemplo frutifique Antes
         que a invenção do amor se processe em cadeia”
A convicção num amanhã de progresso social, a cidade simbolizando aqui a realização da utopia, o triunfo da nova sociedade.
“…
         Ei-la a cidade prometida
         esperamos por ela tanto tempo
         que tememos olhar o seu perfil exato
flor de raiz que somos
         meu amor”[139]


O reconhecimento de uma origem comum da vida, que forjou nas estrelas os nossos átomos e nos aproxima geneticamente de todos os seres existentes e extintos, o esplendor da biodiversidade na nossa época, estimada entre 5 a 30 milhões de espécies diferentes e a dúvida filosófica sobre se a espécie humana representa de facto e para todo o sempre o seu cume de evolução, tal como a hipótese da existência de outras formas de vida noutros mundos, levanta novos problemas éticos que vão para além do fundamento inicial das éticas ambientais.[140] Se estas visavam, em muitos dos seus autores, preservar o futuro da nossa espécie, não se limitaram a reposicionar mais modestamente o homem no contexto da natureza. O antropocentrismo que emerge da crítica ambientalista já não é o mesmo que legitimou a primazia do mercado mundial e das suas leis amorais. Em conformidade com esta perspectiva, no plano social e do indivíduo, o projeto da reforma da sociedade e da construção de novas cidadanias une no seu finalismo ético (e também divide nas suas singularidades) as grandes doutrinas religiosas e da filosofia política, assim como o arco-íris ideológico dos ambientalistas, deixando do outro lado os partidários do neoliberalismo. Isto é, trata-se de propor um novo modo de produção e de distribuição sociais, através de reformas ou revoluções segundo a opinião dos diferentes protagonistas, o que significa, quer disso se tenha consciência ou não, alterar profundamente as relações de produção e de poder. E para atingir tais objetivos, não existe outro caminho senão partir da experiência e das ideias que a história nos legou, com o seu lastro de tragédia e epopeia, de sucesso e fracasso, onde o tempo histórico se alonga e configura para além da nossa curta vida. Recordemos apenas o episódio seiscentista do julgamento macabro de Olivier Cromwel, herói da primeira revolução burguesa vitoriosa na Inglaterra e que depois de morto foi desenterrado, julgado e enforcado (já cadáver) pelos nobres regressados ao poder, que raivosamente o condenaram à vala comum. Seria preciso esperar mais de duzentos anos para que a vaga revolucionária se elevasse de novo, com as revoluções liberais na América e na Europa, triunfando definitivamente no Mundo.
Veremos o que a história ainda escreverá acerca das revoluções do nosso próprio século.
De facto, a questão nodal dos problemas do ambiente e do desenvolvimento, em Portugal ou em qualquer outro país, é que eles constituem “… uma parte da crise ambiental e social global que a própria humanidade atravessa em busca de um novo modelo de civilização”, conforme lucidamente conclui Viriato Soromenho Marques, na coletânea de ensaios anteriormente citada.[141]
Mas voltando ao antropocentrismo mitigado ou superado…A espécie humana reconheceu que ainda tem muito a ganhar com a preservação e o relacionamento equilibrado com os mais de vinte milhões de diferentes seres vivos que, provavelmente, ainda existem à escala do planeta, sem que deles tenhamos qualquer informação ou conhecimento estruturado. E emergiu uma consciência generalizada de que é necessário e urgente corrigir as disfunções ambientais da nossa época. A cultura tornou-se também ambiental e a biologia destaca-se, neste fim de século, como ciência globalizadora do conhecimento e da reflexão filosófica, vocacionada para a investigação interdisciplinar e para o progresso tecnológico, fecundamente criadora de novas áreas de investigação e, no entanto, apenas mais um ramo imponente do conhecimento humano, ao lado das novas físicas, da ecologia, das poéticas modernas, dos códigos de comunicação e das doutrinas políticas universais que arrastam consigo milhões de destinos humanos…
Mas se enquadrarmos o surgimento dos antepassados da espécie humana há 4 ou 5 milhões de anos, no quadro do tempo biológico, que é imenso, nada nos assegura que, tal como aconteceu com os dinossáurios há sessenta e cinco milhões de anos, o reino dos mamíferos não termine e outras formas de existência mais avançadas e inteligentes continuem a perpetuar a música da vida pelos espaços siderais. E ninguém pode imaginar hoje qual é o elo da cadeia onde o salto evolutivo se produzirá, como ninguém sonhou antes que o tetravô da nossa condição de quadrúmanos fosse um insignificante roedor, que sobreviveu à extinção generalizada das espécies dominantes no final da era mesozoica.[142]
Admitamos que o homem atual possa ser esse elo, como irónica mas esperançadamente afirma Konrad Lorenz:”…o elo entre o animal e o homem verdadeiramente humano somos nós.”
Em coerência, devemos igualmente considerar que os múltiplos laços entre todas as formas de vida (e mesmo destas com o ambiente abiótico), obrigam, para além do dever de preservação da nossa espécie, a conservar a diversidade dos seres e os seus nichos ambientais, de cujo equilíbrio dinâmico tudo depende.
E um passo em frente na construção das novas éticas passará talvez pelos princípios que anteriormente fomos extraindo das referências a Kant, a Marx e a Lévi Strauss, defendidos por estes filósofos em períodos históricos diferentes, mas que ainda não encontraram condições histórico - sociais e ambientais para a sua plena realização.
De Kant: Cada homem deve ser tido como um fim em si mesmo e nunca como o meio de atingir o fim de outrem.
De Marx: De cada um segundo as suas possibilidades e a cada um segundo o seu trabalho. Para: De cada um segundo as suas possibilidades e a cada um segundo as suas necessidades.
De Lévi Strauss: O verdadeiro humanismo não começa por si próprio, devendo colocar o mundo antes da vida, a vida antes do Homem  e o respeito pelos outros antes do amor próprio.
Veremos adiante como o belíssimo poema de Jorge de Sena traduz aqueles três princípios, no contexto da crise geral da nossa civilização e numa perspectiva ética ambientalista.[143]
Um mundo onde prevaleça o primado da ética sobre a moral política que, atualmente, adota como único princípio válido o de que os meios justificam os fins; o primado da ética sobre a justiça de classe que anuncia, como fim da história e ordem natural da sociedade, o triunfo da exclusão social; e o primado da ética sobre a história, sangrenta, de todas as civilizações, eis o programa de combate social que parece emergir dos pressupostas filosóficos das novas éticas ambientais.
“ Carta a meus filhos, sobre os Fuzilamentos de Goya “
O poema de Jorge de Sena incide sobre o papel da violência na história da humanidade e propõe-se fundamentar uma nova ética social, que ultrapasse o antropocentrismo apoiado nos conceitos de superioridade de classe, raça ou cultura e o seu determinismo normativo.
“… um dia sabereis que mais que a humanidade
não tem conta o número dos que pensarem assim,
amaram o seu semelhante no que ele tinha de único,
de insólito, de livre, de diferente,
e foram sacrificados, torturados, espancados
e entregues hipocritamente à secular justiça,
para que os liquidasse com suma piedade e sem
                                                         efusão de sangue .
O primeiro princípio dessa proposta de ética é o do valor supremo do respeito pela vida.
 … Acreditei que nenhum mundo, que nada nem
                                                        ninguém
vale mais que uma vida ou a alegria de tê-la .
Mas ao contrário do liberalismo (burguês), que partiu deste postulado para justificar que “tudo é permitido“ em proveito dos indivíduos da sua classe, Jorge de Sena propõe um segundo princípio, indissociável do primeiro, da dignidade da vida, que só existe quando se está vivo sabendo
…que nenhuma vez
alguém está menos vivo ou sofre ou morre
para que um de nós resista um pouco mais
à morte que é de todos e virá .”[144]
Sublinhámos os versos que constituem a chave interpretativa do poema e neles assinalámos a convergência dos princípios que atribuímos a Kant, Marx e Lévi-Strauss, enquanto fundamento comum para o advento de uma Nova Idade Humana.
Daquele modo e sem abandonar a perspectiva humanista, a  proposta  ética de Jorge de Sena avança para a exigência de que o homem preserve cuidadosamente o mundo e o transforme numa sociedade liberta da injustiça e opressão.
“… E por isso, o mesmo mundo que criemos
nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa
que não é só nossa, que nos é cedida
para a guardarmos respeitosamente
em memória do sangue que nos corre nas veias
da nossa carne que foi outra, do amor que
outros não amaram porque lho roubaram .
Um mundo onde se institua a honra de estar vivo, como resultado da luta pela “justiça e a liberdade”, onde o respeito pelos outros venha antes do amor-próprio.
Um mundo em que tudo seja permitido,
conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso
                                                         prazer,
o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros
                                                         por vós”.[145]
Com base nestes quatro princípios, o poeta apela para o dever de lutar por um novo paradigma social…onde tudo seja simples, e natural, isto é, conforme uma natureza humana resgatada de toda a violência exercida contra a ética do respeito pela vida, da dignidade da vida, da preservação do mundo e da honra de estar vivo (respeito pelos outros, na justiça e liberdade).
Porque nenhum Juízo Final pode restituir aos nossos semelhantes a vida que lhes foi retirada,  aquele objeto que não fruíram, aquele gesto de amor, que fariam amanhã.
Pensando no horror e crueldade de tantos séculos de opressão …
“… Por serem féis a um Deus, a um pensamento,
a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas
à fome irrespondível que lhes roía as entranhas,
foram estripados, esfolados, queimados, gaseados
e os seus corpos amontoados tão anonimamente
quanto haviam vivido,
ou as suas cinzas dispersas,
para que delas não restasse
         memória.” [146]
O poeta hesita e, submerso por uma  amargura inconsolável, pergunta-nos a nós, os vindouros, se “...será ou não em vão.” [147]
          Jorge de Sena, ao enunciar, primeiro, “o imperativo categórico da paz”, que anteriormente encontrámos nos seus versos sobre o holocausto nuclear, aqui retomado e ao associar-lhe “o imperativo categórico da dignidade”, leva mais longe o imperativo moral de Hans Jonas, que configura a atividade humana nos limites da sustentabilidade da natureza de que faz parte e conduz a razão kantiana para um superior patamar ético, que configura a razão ambiental.
É nesta linha de pensamento que se coloca António Gedeão, mas com uma clara e renovada crença na verdade e no progresso científico, e na sua capacidade de fundar um novo humanismo na sociedade.
Poema do Homem Rã

 Sou feliz por ter nascido
 no tempo dos homens-rã
que descem ao mar perdido
na doçura das manhãs...

… Eu sou o homem.  O Homem.
Desço ao mar e subo ao céu.
Não há temores que me domem
É tudo meu, tudo meu.”[148]
A procura da verdade científica e a sua defesa constituiriam o caminho para superar todas as adversidades e para elevar o homem a uma superior condição ética.
“ Poema para Galileu
Por isso estoicamente, mansamente,
resististe a todas as torturas,
a todas as angústias, a todos os contratempos,
enquanto eles, do alto inacessível das  suas alturas,
foram caindo,
caindo,
caindo,
caindo,
caindo sempre,
e sempre.,
ininterruptamente,
na razão direta dos quadrados dos tempos.”[149]
Desenhando uma ética de tolerância e igualdade, contrária ao racismo, à xenofobia e à violência que os acompanham, expressa nos versos de Lágrima de Preta. Uma nova ética ambiental fundada  nos princípios de crítica ao antropocentrismo e ao etnocentrismo, geradora de uma bioética global, suscetível de se transformar em éticas práticas aplicáveis a todas as atividades humanas.

Aproximando-nos do fim deste trabalho impõe-se uma nova reflexão acerca da influência da questão ambiental na evolução da Literatura e da Teoria Literária.
          A consciência da relação universal entre todos os seres, elemento fundamental, no plano filosófico e ético, para o despontar da consciência ambientalista, emerge em Teixeira de Pascoaes e Casais Monteiro, anuncia-se em José Régio e Fernando Pessoa e fomos reencontrá-la nas diversas visões cosmológicas de José Gomes Ferreira, Sophia de Mello Breyner Andersen, Sebastião da Gama, Ruy Cinatti, Jaime Cortesão, José Saramago e em praticamente todas as grandes figuras da literatura nacional contemporânea, de Aquilino Ribeiro a Miguel Torga, de José Cardoso Pires a Casimiro de Brito, assumindo com os autores da Nova Literatura, particularmente na poesia, a relevância de uma opção poética dominante, centrada na relação cósmica com a natureza_ com a natureza humana, a natureza das coisas e a natureza universal.
Essa relação estende-se ao caos do universo e, ao mesmo tempo, desce ao mais profundo e infinitamente íntimo de cada ser e indivíduo. Mas foi Jorge de Sena, nos seus versos e em particular no poema que enunciámos, Carta aos meus filhos sobre Os Fuzilamentos de Goya, quem primeiro dela retirou uma nova proposta de ética social, universal e ambientalista.
Parece-nos que as duas grandes revoluções da física relativista e quântica do século XX, que permitiram alargar a nossa compreensão ao incomensuravelmente grande universo em expansão e ao infinitamente pequeno mundo dos átomos e quarks, tiveram o seu equivalente estético na criação de uma nova linguagem poética, simultaneamente intimista e cósmica, tão complexa na sua tessitura compositiva e nos seus códigos de leitura, como são as equações de Einstein, Bohr e dos seus sábios companheiros, obrigando-nos, do mesmo modo, a substituir a nossa perspectiva mecânica das leis da natureza ou os princípios literários clássicos, por novas leis científicas e  por uma novíssima visão poética, como temos vindo a observar e veremos adiante.
          À simplicidade e linearidade das conceções relativista e quântica do Mundo, correspondeu a depuração da linguagem, a sua passagem ao símbolo e à imagem moderna.[150] À fundação das poéticas contemporâneas como novos territórios da realidade. Mas uma realidade em si mesma, a qual, se pode ser ameaçada pela vulgar retórica e pelo discurso niilista, também contém a potencialidade de abarcar toda a realidade do mundo, incluindo o drama solitário do ser perante o lado apolíneo ou dionisíaco da vida, do amor e da morte. Finalizemos pois, a nossa peregrinação literária, procurando encontrar resposta para as três grandes questões anteriormente formuladas:
          O que representa o conceito de consciência ambiental enquanto categoria filosófica, numa perspectiva diacrónica e sincrónica com a Literatura?
          Quais são as chaves interpretativas do texto literário de ondem emergem as grandes questões da crise ambiental?
          Que significado assume hoje a questão ambiental, nas suas origens e evolução, para entender, explicar e reler a obra dos poetas e prosadores portugueses, enquanto contributo premonitório para a moderna consciência ambientalista e, não menos importante, para a sobrevivência e progresso da nossa identidade cultural e das outras culturas e civilizações?







[1] Recordemos o pensamento cristão setecentista do Padre António Vieira e o seu Sermão de Santo António aos Peixes: “Ao  homem deu Deus a monarquia e domínio de todos os animais dos três elementos… Para que domine sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre os animais domésticos e sobre todos os répteis que rastejam pela terra. (Génesis, I, 26)” No entanto, é nosso dever sublinhar, nalguns passos do texto citado, a existência de elementos de crítica a uma visão antropocêntrica que não respeite as criaturas de Deus; como iremos assinalar no capítulo relativo à Ética Animal. Nele Vieira exprime claramente conceitos que podíamos hoje enquadrar naquela corrente ambientalista.
[2] Pedro Calafate, no seu livro A Ideia da Natureza no século XVIII, referindo-se ao pensamento de filósofos  como Luís António Verney ou Teodoro de Almeida, explica que para o iluminismo cristão a ação divina na natureza se exerce através das «causas segundas» e que a descoberta das leis da natureza, que a razão científica se esforça por determinar, significa a revelação da obra de criação divina como espelho da natureza contingente das criaturas e imagem da presença de Deus na sua conservação e evolução, mas de tal modo que não há distância nenhuma entre Deus e as criaturas, mas há uma distância infinita entre as criaturas e Deus.
[3] Desde a Utopia de Thomas More, escrita em 1516, onde o autor, apiedado do destino miserável dos camponeses, expulsos das suas terras para dar lugar a grandes pastagens, lança a terrível metáfora ”Os carneiros comem os homens!”, até à obra de Mandeville The Fable of The Beers (1714), vai a distância que medeia a transformação da Inglaterra no berço do capitalismo moderno. Ver a obra citada de Thomas More (ou Tomás Morus), pág. 36.
[4] Sampaio Bruno, A Ideia de Deus, pág. 340, 1902.
[5] A primeira publicação de tema ambiental conhecida da obra de V. Vernandsky data de 1926, mas caber-lhe-ia igualmente o mérito histórico de propor as primeiras mediadas de conservação da natureza, num tempo de exaltação da industrialização em massa e o questionar moral do uso da energia nuclear! E é certo que desconhecemos, praticamente, a querela científica que envolveu o lançamento dos Planos Quinquenais e das grandes medidas de coletivização agrária e industrial, informação incontornável para que possamos estudar a forma peculiar como se gerou e desenvolveu a crise ambiental nos países de Leste, da catástrofe do mar Aral à tragédia de Chernobyl. Já o estudo da crise ambiental na China deve seguir outra perspectiva, pois na sua cultura filosófica e na peculiar visão da natureza, no confucionismo e taoísmo, predominaram sempre as visões que subordinam o coletivo ao individual e integram o homem como um átomo da natureza, sem nenhum destino providencial, ao contrário da tradição ocidental. 
[6]  Maria das Graças Moreira de Sá.  Estética da Saudade em Teixeira de Pascoaes, pág. 38.
[7]  Ibid..
[8] Ibid., pág. 133.
[9] Eduardo Lourenço, O Labirinto da Saudade, pág. 103.
[10] Florbela Espanca,  Sonetos, pps. 148 e 152, 1930.
[11] Deixemos agora Alberto Lacerda apresentar Sophia de Mello Breyner Andersen. Poeta do Mundo exterior e da realidade metafísica, da consubstanciação profunda com o real múltiplo-verdadeiro poeta pagão, no que esta palavra possa ter de mais grave, sacral. A sua poesia é de raiz trágica pois tem a lucidez constante e agudíssima das antinomias. A sua fome de absoluto é um desejo de realização e não de fuga.” Sophia de Mello Breyner Andersen, citado de Obra Poética I,  Távola Redonda, Fascículo 7.
[12]  Ibid., da obra  Apesar das ruínas e da morte, pág. 15, 1944.
[13]  Ibid., da obra  Dia do Mar, pág.125, 1944.
[14]  Ruy Belo, Obra Poética, Volume 3, pág. 124.
[15] Pedro Calafate, em A Ideia de Natureza no século XVIII, na pág. 80 desta obra e a propósito das conceção do mundo de Ribeiro dos Santos, sistematiza o pensamento cristão desta maneira: “… Colocado o tema da contingência das criaturas, passa imediatamente ao da conservação, que concebe, tal como Verney, não como uma nova ação, mas como uma continuação do ato criador.
[16] Ibid., pág. 132.
[17] Recordemos os seus membros iniciais, sem cuidado de precedência: Baeta Neves, Pinto da Silva, Vilela, Miguel Neves, Mário Azevedo Gomes, Carlos Teixeira, Joaquim Cabral, Caldeira Cabral, Carlos Tavares, Duarte de Castro, Telles Palhinha, Carvalho e Vasconcelos, F. Sacarrão, Varennnes e Mendonça, Magalhães Silva, Maria de Lurdes Borges, Bivar Cúmano, Pereira Coutinho, Flávio Resende, Botelho da Costa, Torre da Assunção. Informação prestada pelo então Presidente da LPN, Prof. Eugénio Sequeira, 1997.
[18]  Ruy Belo, Obra Poética, Volume III, pág., pág. 151. Citado do Livro de Ruy Cinatti Cadernos de Poesia, de 1942.
[19]  Ibid..
[20]  Ibid., pág. 111.
[21] Jaime Cortesão, Portugal, a Terra e o Homem, pág. 268, 1955/1960.
[22] Ibid..
[23] Ibid., prefácio de Urbano Tavares Rodrigues, que cita o autor.
[24] Ibid., pág. 268.
[25] René Dubos. Les Dieux de l’écologie, trad. fr., 1973.
[26] Ernest Friedrich Schumacher, Small is beautiful, Une société à la mesure de l’homme, 1973.
[27]  Fernando Pessoa,  Poemas Escolhidos, Mensagem, pág. 96, 1934.
[28] O movimento integralista  decompor-se-ia em correntes divergentes, integrando-se no “Estado Novo“ através de intelectuais como António Ferro e Marcelo Caetano, opondo-se ao regime fascista com homens como António Pedro, Afonso Lopes Vieira e Rolão Preto ou prosseguindo a solitária e persistente caminhada de Hipólito Raposo e Paquito Rebelo. Uma das correntes dissidentes viria a convergir para o grupo monárquico fundador do primeiro partido assumidamente ecologista, o PPM !
António Sardinha,  Quando as Nascentes Despertam, 1921, citado no  Manual da Universidade Aberta,  Sociedade e Cultura Portuguesa  II, pág. 343.
[29]  Holmes Rolston III,  Philosophy gone Wild, pág. 19, 1989.
[30]  Lévi Strauss, citado da obra  A Origem das Maneiras de Comer à Mesa, na obra de Antoine Danchin Uma Aurora de Pedras. Consultar a Bibliografia.
[31]  Aldo Leopold, A Sand County Almanac, 1949.
[32]  Joeil de Rosnay, Le Macroscope, vers une vision globale, 1975.
[33]  Gordon Taylor, Le jugemen dernier, trad. fr., 1970.
[34] Os últimos ensaios críticos de Sagan manifestam um crescente pessimismo e sentido crítico face ao acentuar dos fatores de crise ambiental, sem abandonar a sua crença no papel regenerador da ciência e das novas tecnologias, afirmando mesmo a convicção de  que a ameaça da tragédia universal contribuirá para o entendimento entre os povos e as nações e para uma nova aliança entre as ciências e as religiões. Ver a coletânea publicada no nosso país sob o título  Bilhões & Bilhões.
[35]  Holmes Rolston III, Philosophy Gone Wild, 1986. J.B. Callicot, In Defense Of the Land Ethic, 1989.
[36]  Ibid..
[37]  Também chamados de neodarwinistas, como Julian Huxley e George Gaylord.
[38]  Propostas por N. Elredge e S. Gould.
[39] Referimo-nos genericamente aos Essays in Environment Philosophy, com o título In Defense of the Land Ethic, atualizados e editados conjuntamente em 1994 e particularmente ao que tem o número 13 Leopold’s Land Aesthetic, copyright 1982. Enfim, nesta curta panorâmica que apenas pretende servir de paradigma comparativo com a reflexão dos nossos escritores, merece igualmente referência Hans Jonas e a sua “ética da responsabilidade”. Ver a obra The Imperative of Responsibility. In Search of an Ethics for the Technological Age, onde o autor, judeu alemão emigrado para o Canadá e os EUA,  perante a tremenda influência da técnica moderna sobre a natureza, formula um novo imperativo categórico para a ação do homem, mais além da máxima kantiana de conformação dos actos individuais com o princípio de uma lei universal, um novo quadro ético, o qual resulta da necessidade de configurar a conduta humana nos limites que salvaguardem a continuidade da vida e a sua diversidade, conceito que, no seu desenvolvimento filosófico conduzirá à superação da razão kantiana pela “razão ambiental”, filosofema que defendemos mas cujo discussão filosófica exige um debate autónomo. A versão inicial do texto de Jonas remonta a 1972 e a sua publicação na obra citada a 1984.
[40] Carlos de Oliveira, do livro  Aprendiz de Feiticeiro, a crónica  Autor, Encenador, Actor, 1968, reeditada nas  Obras de Carlos de Oliveira, pág. 553.
[41] José Gomes Ferreira, da obra  Panfleto Contra a Paisagem, de 1936/37, reeditado na edição José Gomes Ferreira, Poeta Militante, págs. 85 e 86.
[42] Eugénio de Andrade, do livro  Até Amanhã, o poema  Coração Habitado, 1951/56.
[43] Ou como diz Óscar Lopes: “... Poesia límpida, que vem das mãos humanas, do sangue rumoroso, do amor corpóreo, do trigo, dos frutos, da luz, do mar; poesia sem metafísica, simples nascer para o dia um  «subterrâneo rio de palavras»; poesia ora matinal e clara como a adolescência (Coração Habitado), ora densa de toda a elegia do pretérito imperfeito português (Os Amantes sem Dinheiro)…”Óscar Lopes, prefácio de  Poemas  ( 1945/65 ) de Eugénio de Andrade, pág. XI.
[44] Eugénio de Andrade, versos do poema Os Amantes sem Dinheiro, pág. 59.
“...Outra interpretação possível, e essa no ponto de chegada da maior originalidade de condensação temática em Ostinato Rigore, seria ver esta poesia como lírica da natureza, dos frutos, dos ritmos inerentes aos dias, aos anos e às idades, com a acento dominante naquele meio-dia solar verdadeiro em que a esperança e a consumação se entrefita , e em que o próprio silêncio pulsa. Ou ainda: poesia materialista, no sentido da sua total imanência à realidade possível e única - uma boa arma para quem a soube usar, e, antes de mais nada, usar contra a morte na alma. Porque, para usar uma fórmula eluardiana, nesta poesia, em toda a melhor poesia (como esta é , cada qual de nós pode dizer j´écris ton nom; e o nome que eu escreveria era precisamente o que Eluard escreveu, o da no desfecho de um poema talvez inicialmente sentido como de amor. E fá-lo-ia por hipálage; visto que tudo se liga numa poesia como esta. Resta saber a que altura é que cada pessoa sente uma tal ligação.” Óscar Lopes,  prefácio de  Poemas de Eugénio de Andrade, pág. XX.
[46]  José Saramago, Poemas Possíveis, pág. 8, 1966.
[47]  Ibid., pág. 83.
[48] Ibid., pág. 58.
[49]  Ver a obra de Hubert Reeves, Poeiras de Estrelas: “...os protões e os neutrões, bem como os núcleos, são obra das forças nucleares (da forte e da fraca). Os átomos e as moléculas são obra das forças eletromagnéticas. As estrelas e as galáxias são obra da força de gravidade, tal como, de resto, o nosso sistema solar”, pág. 26. E também, de Fang Li  Zhi e Li Shu Xian, A Origem do Universo.
[50] Natércia Freire, citada por António Ramos Rosa,  no livro  Poesia Liberdade Livre, pág. 111.
[51] Jorge de Sena, Trinta Anos de Poesia, do Livro  Metamorfoses, pps. 171 a 175, 1961.
[52] José Gomes Ferreira, da obra  Heróicas, de 1936/37/38, reeditado na edição  José Gomes Ferreira, Poeta Militante, pps. 145 e 146, numa versão deste poema mais sintética.
[53] Citado por António Ramos Rosa, no livro Incisões Oblíquas, pág. 66. Inserto na obra de Ruy Belo  Problema da Habitação (publicada em 1962), pág.  48, 1997.
[54] Ibid. pág. 70.
[55] Ibid. pág. 69.
[56] Obra Poética de Ruy Belo, Vol. II,  Despeço-me da Terra da Alegria, pág. 297.
[57] Casimiro de Brito,  Ode & Ceia, pág. 72, 1960-1962.
[58] Ibid. pág. 102, 1961-1963.
[59] Ibid. pág. 255, 1966-1972.
[60] Luiza Neto Jorge, Poesia, Metamorfose, pág. 65, 1964.
[61] Luiza Neto Jorge, Poesia, Metamorfose, pág. 65, 1964.
[62] Plutarch’s,  Moralia XII (993), tradução de Harold Cherniss e William Helmbold, pág. 541
[63] Padre António Vieira, Sermão de Sto. António aos Peixes, pág. 41.
[64] Transcrevemos a definição de «pessoa« do autor:  …Proponho o uso de «pessoa» , no sentido de um ser racional e autoconsciente, para incorporar os elementos do sentido popular de «ser humano» que não são abrangidos por  «membro da espécie Homo Sapiens ». Peter Singer, Ética Prática, do capítulo Tirar a Vida de Animais, págs. 98/99, 1989/92.
[65] Peter Singer,  Ética Prática, do capítulo Tirar a Vida de Animais, pág. 141, 1979/1992.
[66] Na obra citada de Peter Singer pode ainda ler-se, a páginas 233, a seguinte denúncia, no que respeita à ajuda efetiva que, à época,  os países ricos do Norte se comprometeram a conceder aos países pobres do Sul:  Só a Suécia, a Holanda, a Noruega e alguns dos países árabes que exportam petróleo atingiram o modesto objectivo estabelecido pela ONU, de 0,7% do Produto Nacional Bruto. A Grã-Bretanha dá, oficialmente, 0,31% do seu PNB para a ajuda ao desenvolvimento, e mais uma pequena quantia, em forma de  ajuda não oficial…A Alemanha dá  0,41% e o Japão dá 0,32%. Os Estados Unidos dão a simples quantia de 0,15% do seu PNB.
[67] Aquilino Ribeiro, O Romance da Raposa, 1924, pág. 169.
[68] Ibid., pág. 171.
[69] Aquilino Ribeiro, O Romance da Raposa, 1924, pps. 121 e 122.
[70] Ibid., pps. 122 e123.
[71] Ibid., pág. 63.
[72] Ibid., pág. 160.
[73] Ibid., pág. 44.
[74] Ibid., pág. 45.
[75] Assim se infere da leitura do II Vol. da  Etnografia Portuguesa  de J. Leite de Vasconcelos.
359  Ob. citada., pág. 45.
[77] Miguel Torga, Bichos, pág. 12, 1940.
[78] Ibid., pág. 18.
[79] Ibid., pps. 25 e 26.
[80] Ibid., pág. 32.
[81] Ibid., pág. 37.
[82] Ibid., pág. 58.
[83] Ibid., pps. 65, 66 e 67.
[84] Ibid., pág. 67.
[85] Ibid., pps. 75 e 76.
[86] Ibid., pág. 79.
[87] Ibid., pág. 89.
[88] Ibid., pps. 91 e 97. 
[89] Ibid., pps. 105 e 108.
[90] Ibid., pps. 109, 11, 116 e 117.
[91] Ibid., pps. 128 e 131.
[92] Ibid., pps. 133 e  134.
[93] Miguel Torga, Novos Contos da Montanha, pps. 7, 8 e 9, 1944.
[94] Ibid., pág. 9.
[95] Ficção que a nossa história da Idade Moderna documenta, desde a expulsão dos judeus e a conversão forçada dos  “cristãos novos“ no século XVI, por ordem de D. Manuel.
[96] Miguel Torga, Novos Contos da Montanha, pps. 16 e 18, 1944.
[97] Ibid., pág. 19.
[98] Ibid., pág. 20.
[99] Ibid., pps. 21 e 22.
[100] Ibid., pág. 24.
[101] Mas eu, por experiência, tenho verificado que há atos da vida animal, o homem à parte, que superam o âmbito de tal potência.  Ora são esses atos  que eu transponho, humanizo, no que imagino tais bichos movidos pelos mesmos móbiles vitais que nos animam a nós.”
[102]  Cabe aqui uma referência às crónicas similares de Bernardo Santareno, datadas da década de 50, publicadas sob o título  Nos Mares do Fim do Mundo, quando observa a fauna dos bancos de pesca do bacalhau  na Terra Nova: Cem, milhares de blocos de gelo, pequenos uns, outros maiores, oscilam graciosamente ao sabor das ondas. E sobre um destes minúsculos icebergues a bizarria inesperada de uns dez ou doze patos-mergulhões, grotescos, buliçosos, simpatiquíssimos…Passam agora mesmo junto do David Melgueiro: olham-nos sem sobressalto, alegremente, sem sequer quebrarem a ininterrupta carreira das suas cabriolas, cómicas e tão comunicáveis…que parecem humanas!
[103] Raul Brandão,  As Ilhas Desconhecidas, página 106.
[104] Ibid. pág. 108.
[105] Miguel Torga, Novos Contos da Montanha, 1944, pps. 81 e 82.
[106] Miguel Torga, Os Bichos, 1940, pps. 39, 40 e 45.
[107] Ibid., pág. 100.
[108] Ferreira de Castro,  A Selva, pág. 100.
[109] Ibid., pág. 237.
[110] Aquilino Ribeiro,  Andam Faunos Pelos Bosques, pág. 259.
[111] Soeiro Pereira Gomes, Esteiros, pág. 200, 1944.
[112] Soeiro Pereira Gomes,  Engrenagem, pág. 368.
[113] José Fernandes Fafe,  A Vigília e o Sonho, o poema  Vamos Nus de Promessas, 1951.
[114] Raul de Carvalho, Tautologias, 1968. In Raul de Carvalho, de Serafim Ferreira.
[115] Alexandre Pinheiro Torres,  A Nau de Quixibá, pág. 180.
[116] Ibid., pps. 180 e 181.
[117]  Casimiro de Brito, do livro  Solidão Imperfeita, o poema  A Fábrica: duas perspetivas, pps.24 e 25 , 1955/58.
[118] Casimiro de Brito, Corpo Sitiado, o poema  Apenas Um Nome, pág. 98, 1961/63.
[119] O Livro de Cesário Verde, pág. 77 .
[120] Ibid. pps. 146 e 147.
[121] Autor: José Gomes Ferreira.
[122] Autor: Carlos de Oliveira.
[123] Autor: Antunes da Silva.
[124] Autor: Afonso Duarte.
[125] Autor: João José Cochofel.
[126] Autor: Luísa Irene.
[127] Tal não aconteceu com os Futuristas, com António Ferro transformado em exegeta do regime fascista e a ambiguidade política de Almada e Fernando Pessoa.
[128] Afonso Lopes Vieira, Éclogas, prefácio, pág. 14.
[129] Prefácio de José Gomes Ferreira, da Obra Poética I, de Irene Lisboa, pág. 30, datado de Março de 1978.
[130] Mário Cesariny, no prefácio da obra  de  Poesia  de António Maria Lisboa, citando Pedro Oom.
427 Alexandre O’Neill,  Poesias,  Poema Pouco Original do Medo, pág. 144, 1960.

[132] António Gedeão,  Linhas de Força, o poema do  Fecho Éclair, pps. 247 e 248, 1967.
[133] Texto retirado de uma coletânea discográfica do compositor e cantor José Mário Branco, com o título Ser Solidário.
[134] Ver o capítulo 2 deste trabalho.
[135] Escrito em 1949 e situado, na ficção romanesca, no interior de Angola, tal como a obra contemporânea  de José Augusto França, citada adiante.
[136] Óscar Lopes,  Os Sinais e os Sentidos, pág. 151.
[137] Publicada em 1958.
[138] Egito Gonçalves,  O Pêndulo Afetivo, Antologia Poética 1950-1990, pág. 41.
[139] Daniel Filipe,  A Invenção do Amor e Outros Poemas, pps. 11, 13,  37, 1961/62.
[140] E não será esta imensa diversidade, no seu todo, e não só na  parte  humana, que constitui o verdadeiro resplendor da biodiversidade?
[141] Viriato Soromenho Marques, do Livro Regressar à Terra, Consciência Ecológica e Política do Ambiente, pág. 141, 1994.
[142] Ver a obra de Galopim da Carvalho, Geomonumentos e também, de H. H. Read, o livro Geologia.
[143] Retenhamos, por fim, a reflexão da professora Cristina Beckert acerca da …necessidade de recuperar a dimensão ontológica, ‘depois da ética’, de que o Direito, a Política e a História são expressões privilegiadas…o advento do terceiro como instância relativizadora da relação dual eu-tu nivela a assimetria que a define, pondo-a a par do princípio da justiça ou de equidade, único  válido para a totalidade de indivíduos. Por seu turno, a incompatibilidade entre a ética e a política, enquanto esta exprime a racionalização da luta mais primitiva pela sobrevivência, deverá transformar-se em diálogo entre a institucionalização da relação ética, pela política, e a crítica a todo o poder político, pela ética. Quanto à História, como esquema último de inteligibilidade do real, deverá subordinar-se a um juízo escatológico, emitido do ponto de vista de um absoluto an-histórico, capaz de recuperar a dimensão de singularidade e interioridade próprias de cada um dos seus agentes e que ela ignora quando os identifica com as acções e as obras submetida à sua própria cronologia”. Subjetividade e Diacronia no Pensamento de Levinas, por Maria Cristina Monteiro Beckert de Assunção, resumo da dissertação de doutoramento,  Philosofica  nº 3, pps.s 146 e 147.
[144] Versos que nos evocam um comentário de Óscar Lopes, produzido noutro contexto, sobre a moral kantiana: “E isto afinal coincide com aquele admirável princípio de autonomia em que Kant fundamentou toda a moralidade, mas que até hoje não encontrou nunca condições históricas de realização: o princípio segundo o qual cada ser humano deve ser tido como um fim em si mesmo e nunca o meio de se atingir o fim de outrem. O. Lopes, Os Sinais e os Sentidos, pág. 164.
[145] Compare-se e reconheça-se a similitude com o texto de Lévi Strauss citado por Antoine Danchin, na obra Uma Aurora de Pedras, adiante referenciada:…O verdadeiro humanismo não começa por si próprio, devendo colocar o mundo antes da vida, a vida antes do Homem e o respeito pelos outros antes do amor próprio”.
[146] Imagens que nos evocam, imediatamente os espetáculos de circo romano, os autos de fé, os fornos crematórios dos campos de morte nazis…
[147] Jorge de Sena, Trinta anos de Poesia, pág. 167. Anexo 190.
[148]  António Gedeão, Poesias Completas (1956-1967). Na verdade e nas últimas entrevistas do poeta, pouco antes da sua morte, tornou-se evidente um certo “pessimismo de inteligência“, no que respeita ao devir histórico do actual modelo de progresso social, particularmente perante a desumanização da ciência e aos efeitos ambientais das tecnologias mais modernas.
[149]  Ibid..
[150] Ver as obras ABC da Relatividade de Bertrand Russell e A Revolução dos Quanta, de Victor Weisskopf.

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