2001/2017
Autor
© António dos Santos Queirós
ISBN 978-972-8659-41-7
Conteúdo
©ANTÓNIO DOS SANTOS QUEIRÓS
Centro de Filosofia. Faculdade de Letras da Universidade
de Lisboa
Alameda da Universidade 1600-214, Lisboa Portugal
adsqueiros@gmail.com
T.
910506370
Com o fim de fazermos incidir a nossa análise nos conceitos de “moderna
consciência ambientalista”, iremos perseguir, ao longo das obras literárias
publicadas pelos escritores portugueses nos primeiros setenta anos do século XX,
o percurso diacrónico da experiência estética da natureza, que emerge, no
dealbar de mil e novecentos, como cosmovisão conservacionista e,
progressivamente, se transforma em mundovisão ambiental. Entendemos a
consciência na sua tripla dimensão social, política e filosófica, como ato de
reconhecimento pelo indivíduo da sua identidade única e (contraditoriamente)
plural, na relação cósmica com todos os seres animados e inanimados, feitos da
mesma matéria estelar, interrogando-nos, em simultâneo, acerca do papel da
razão e do instinto na construção da personalidade e da função da cultura como
registo ontológico do ser e da espécie humana; finalmente, conceptualizamos a
categoria do ambiente enquanto natureza e cultura, e o homem como elemento da natureza,
na peculiar visão aquiliniana para quem “…a natureza, não tem simpatias
especiais para nenhum dos seus seres”.[2]
A obra dos nossos prosadores, que tomaram particularmente o homem do campo
como matéria literária, de Miguel Torga a Ferreira de Castro, Aquilino Ribeiro,
Raul Brandão, etc., dá-nos da condição humana uma dimensão, que poderíamos
qualificar de lorenziana, por alusão ao notável cientista austríaco, o qual,
com suprema ironia, escreveu:“…o elo entre o animal e o homem verdadeiramente
humano somos nós“.[3]
Ecce Homo, pomba
com bico de corvo,“…criatura inofensiva e omnívora que não possui arma
(natural) para matar grandes presas e, por conseguinte, é desprovida dessas
rábulas de segurança que impedem os carnívoros «profissionais» de matar os seus
colegas da mesma espécie…”, dotado de uma herança animal de instintos, anterior
ao pensamento racional.[4]
Na verdade, as necessidades instintivas do ser humano, hoje confinado ao
espaço labiríntico, concentracionário e ameaçador, da grande urbe, fazem nascer
novos e gravíssimos problemas que afetam o equilíbrio e a harmonia do indivíduo
humano nas suas relações com o seu habitat natural. Estes problemas têm
a sua expressão na temática, na estilística e na poética dos autores
contemporâneos. Evidenciaremos então os textos científicos internacionais que
marcam a evolução do pensamento ambientalista para os cotejar com a obra dos
escritores portugueses.
E questionaremos sempre o nosso próprio pensamento crítico: Foram os
filósofos, os cientistas e investigadores, os ativistas sociais, a iluminar o
caminho para a consciência ambiental? E como estabelecer os contornos do conceito
de ambiente, distinguindo-o de natureza, apreender a sua evolução histórica e o
seu significado multicultural? A literatura atual poderá ser encarada como uma
espécie de instância mediadora da Filosofia das Ciências, da Filosofia e da
Ética Ambientais, e das Ciências do Ambiente em particular? E que representa
para a cultura contemporânea o emergir da consciência ambientalista, da sua peculiar
visão global de um mundo que oscila entre o apocalipse e o advento de uma nova
idade, de onde irrompem os grandes temas da diversidade biológica, das causas e
consequências da sua diminuição, poluição, efeito de estufa e rarefação da
camada do ozono, consumismo, agressão publicitária, crescimento insustentável,
recusa do nuclear e das tecnologias e energias nocivas ao equilíbrio ambiental,
oposição à guerra, novas éticas ambientais sob o denominador comum da crítica
ao antropocentrismo de raiz judaico-cristã e ao etnocentrismo; mas também defesa
integrada do património natural e cultural, exaltação do mundo rural, da terra
e do mar, cosmovisão conservacionista e apelo ao usufruto estético da natureza,
defesa da saúde pública, magnificação do corpo, apelo à paz e à democracia
universais, sob a base de um novo paradigma de desenvolvimento sustentável e de
uma ética (bioética) global?
Que estranha alquimia aproximou poetas e homens de ciência e fez brotar na
obra literária a reflexão filosófica? Que formidáveis forças do pensamento e da
natureza humana conduziram alguns dos mais ilustres sábios contemporâneos,
especialistas restritos no seu saber altamente especializado, a procurar na
síntese filosófica, no ensaio ético-político, a regeneração da ciência e a
formulação de novos paradigmas da natureza e da ética social? É a via dessa
descoberta que vamos percorrer servindo-nos como instrumentos metodológicos das
categorias conceptuais que denominámos “ecologia da paisagem” e “metafísica do
ambiente”, adiante explicitadas.
Encontramos no séc. XIX e no ideário romântico do ruralismo a expressão,
ideologicamente multifacetada, das primeiras críticas ao capitalismo ascendente
e, na oposição do campo (natureza eterna e harmoniosa) à cidade (mutável e cosmopolita),
o seu principal mitema.[5]Este ideário entronca numa tradição renascentista, mas
não provém apenas da lírica, como é o caso mais conhecido de Sá de Miranda. Numa linha que retoma o
sermonial Seiscentista do Padre António Vieira, Ramalho
Ortigão, nos seus escritos de
divulgação da obra dos naturalistas, dirigidos em particular à reforma da
mentalidade feminina, procura orientar a proverbial curiosidade da mulher para
a descoberta da Ciência, invocando para isso a extraordinária biodiversidade do
mar e serve-se da ilustração da
vida das suas criaturas em paralelo com a condição humana, como o fizera
o notável jesuíta em muitas das suas pregações.[6] Já em finais do séc. anterior, a Marquesa de Alorna
apelava, nas suas “Recriações Botânicas, ”ao retorno à natureza.[7]
Esse regresso à terra pode representar, como em Alexandre Herculano e Júlio
Dinis, todo um programa liberal.[8]As Pupilas do Sr. Reitor estão impregnadas
de um otimismo «regenerador» e nos Fidalgos
da Casa Mourisca é a agricultura
que permite reconstruir o solar aristocrático, mas num ambiente campestre já
humanizado pela cultura burguesa _
educação, saúde, e comunicações, conforme observa A. José Saraiva ou significar o
apelo atávico ao passado em Camilo ou Castilho.[9] Pertence ao primeiro a metáfora que sugere a destruição do velho mundo
rural e expressa, em simultâneo, a metamorfose urbana do novo regime, com um
sentido sinestésico e repulsivo: “O progresso é barrigudo, não cabe em ruas
estreitas.”[10]
No último quartel de oitocentos, a estética
simbolista que nasce na Europa como reação ao naturalismo, ao positivismo e ao
agnosticismo, irrompe no Portugal finissecular como nostalgia do sagrado, a que
o despertar nacionalista perante o Ultimatum inglês associaria a noção de
Pátria.
Neste contexto surgem, em paralelo, o discurso poético de Guerra Junqueiro,
em Finis Patriae, politicamente dirigido contra a Inglaterra e o seu
império comercial.“…Repartindo por todo o escuro continente/A Mortalha de
Cristo em tangas de algodão.”
O vazio existencial de Camilo Pessanha, expatriado em terras do Oriente e,
sobretudo, o Só, de António Nobre, presente ausente na solidão da grande
urbe de Paris.
“…Ai do
Lusíade, coitado!
Veio da
terra, mailo seu moinho:
Lá faziam-no
andar as águas do Mondego,
Hoje
fazem-no andar as águas do Sena
É negra a sua
farinha!” [11]
Cidade símbolo de um novo regime que
arrancou o homem da sua relação maternal com a terra, condenando-o à infelicidade:
“Que triste fado”![12]
A recusa da civilização urbana e burguesa, o sentimento de exaltação
nacional, a saudade da pátria, traduziram-se na revalorização dos símbolos da
ruralidade e da sua paisagem humanizada.
“…Ó
ceifeira, que segas cantando,
Ó moleiro das estradas,
Carros de bois chiando…
Flores
dos campos, beiços de fadas,
Poentes de Julho, poentes minerais,
Ó choupos, ó luar, ó regas de
Verão”![13]
E essa comunhão, entre o destino individual, a terra e o homem português, a
Pátria e a Alma Nacional, sofrerá novas metamorfoses com a obra de Cesário
Verde, Teixeira de Pascoaes e Fernando Pessoa, situando-se entre a elegia e a
epopeia, com os poetas chamados providencialmente a interpretar o futuro e o
destino coletivo: “Uma verdade quando aparece no mundo é por intermédio do
poeta,” escreverá mais tarde Teixeira de Pascoaes.[14]
António Sardinha e os intelectuais do Integralismo Lusitano retomariam nas
décadas de l920 e 1930 a crítica ao imperialismo da máquina, o apelo à
restauração da monarquia e das relações de paternalismo nobiliário nos campos,
o retorno à terra-mãe, corpo místico da nação portuguesa, na sua
peculiar visão.
Os conceitos políticos e sociais de direita e
esquerda, progressismo e reacionarismo, não teriam no futuro correspondência direta
entre a defesa ou a oposição à causa do ambiente, pelo menos até aos anos mais
recentes. A questão ambiental vai percorrer transversalmente o espectro
político nacional. Veremos, mais adiante, o percurso dos monárquicos e dos
integralistas, como anotação histórica deste facto.
A atualidade testemunha a importância, em todos
os quadrantes partidários, da dimensão política da causa ambiental ou, mais
prosaicamente, da atenção dos partidos tradicionais ao evoluir da consciência
social do seu eleitorado. Mas também esta relação, entre a disseminação da
questão ambiental e o seu emergir na cena política, será objeto de posterior
análise, particularmente na Parte III deste trabalho.
Regressemos, por ora, à literatura. Seria erróneo procurar restringir o alcance da obra daqueles
escritores à categoria ecológica dos conservadores da natureza e do mundo rural
ameaçado, que o foram alguns dos nomes maiores da poesia moderna, como Walt
Whitman. Este poeta, como aqueles outros, fazem parte do núcleo de autores
universalistas que se posicionaram, no domínio estético, para além do seu tempo
e intervieram também nas esferas do social e da política.
“Creio que uma folha de erva não vale menos que a jornada das estrelas,
E que a formiga não é menos perfeita, nem um grão de areia, nem um ovo
de
carriça,
E que o sapo é uma obra-prima para o mais exigente,
E que as amoras silvestres adornariam os salões do Céu,
E que a mínima articulação da minha mão escarnece de toda a maquinaria,
E que a vaca ruminando com a cabeça baixa supera a estátua,
E que um rato é milagre suficiente para fazer vacilar milhões de infiéis.
Descubro que trago em mim gneisse, carvão, filamentos de musgo, frutos,
cereais, raízes
comestíveis,
E que fui estucado com quadrúpedes e pássaros,
E que me distanciei, por boas razões, do que está por detrás de mim,
Mas quando quero faço regressar seja o que for”.[15]
Ficam, deliberadamente de fora do âmbito do nosso trabalho a globalidade dos
autores cuja obra principal se desenvolve ainda no século XIX e cujo conteúdo
se enquadra sobretudo no combate ideológico entre os valores do Antigo Regime e
o demo-liberalismo triunfante, apesar da irrecusável modernidade de muitas
obras da Geração de 70, especialmente de Eça de Queirós e Ramalho Ortigão. De
outro modo, arrastaríamos a nossa investigação para fora dos limites que lhe
impusemos.
Mas as preocupações daqueles escritores, que confrontavam já as relações
mercantilizadas da natureza e da condição humana com as mudanças
civilizacionais de onde emergia a Idade Contemporânea, permaneceram
renovadamente atuais e, por isso, as suas obras mais notáveis serão objeto de
análise reiterada: Depois do Só, de António Nobre, Clepsidra, de
Camilo Pessanha, e o Livro de Cesário Verde. Veremos como emergem, já
nesta época, duas grandes linhas de interpretação do texto literário:
-A metafísica do ambiente do
novo século, marcado pela desordem e a angústia urbanas, de Camilo Pessanha e
Mário de Sá Carneiro, acompanhadas, em contraponto, pela exaltação da paisagem
rural, como em António Nobre e, mais tarde, também pela magnificação do corpo,
traço comum a praticamente todos os autores contemporâneos.
A fruição da paisagem tem nos nossos escritores
uma dupla dimensão definidora daqueles conceitos: aquela que compreende uma visão
sistémica interdisciplinar de carácter científico, que engloba os grandes
quadros naturais, caracterizados e diferenciados, seja pelos
diversos domínios da ciência - que vão das ciências do ambiente às ciências exatas;
seja pela presença transformadora do homem no seu esforço de agricultor, pastor
e arquiteto da paisagem e daí também o concurso das ciências históricas e
humanidades. Visão científica, da paisagem humanizada, mediatizada pela arte literária,
ou seja, ecologia da paisagem.
E outra de natureza metafísica, que é do domínio
da “espiritualidade”, da “alma” das coisas, dos sentimentos estéticos da
“beleza” e do “belo” ou do “sublime”, e das correspondentes categorias
estéticas positivas (belo, sublime, maravilhoso, monumental, épico, trágico,
dramático…) e das categorias estéticas negativas ( feio, horrível, repugnante…),
que compreendem também uma avaliação
moral, optando aqui por usar o conceito
de ambiente no lugar de paisagem por englobar tudo o que respeita à diversidade
natural e à cultura humana plasmada nessa paisagem, que é um lugar físico mas
também espiritual onde se sobrepõe o devir do pensamento e a multiculturalidade
das nossas civilizações.
Entendemos pela primeira a “ecologia da
paisagem” e pela segunda “a metafísica da paisagem”, melhor conceptualizada
como metafísica do ambiente.
Duas perspetivas muitas vezes imbricadas e cruzadas no mesmo autor e
diversas nos seus múltiplos cambiantes, como veremos, por exemplo, nos textos de
O Livro de Cesário Verde, A Cidade e as Serras e Guia de
Portugal.
Vamos procurar demonstrar o valor operativo
destes dois conceitos a partir de uma referência antecipada à obra de Aquilino
Ribeiro e depois no quadro do estudo de alguns textos de Cesário Verde, Camilo
Pessanha, Mário de Sá Carneiro e Eça de Queirós.
Frederico Nietzsche considerava a arte como sendo“...a
missão superior e a atividade propriamente metafísica desta vida ”.[17] Veremos como os
princípios que presidem à sua conceção da “tragédia ática” parecem irromper na
obra de Aquilino Ribeiro quando nos retracta a alma profunda dos seus
concidadãos perdidos nas Terras do Demo, seres humanos reduzidos à dupla condição de
sátiros (os faunos Aquilinianos) e anacoretas (condenados ao martírio), que
afogam nos prazeres da carne e na bebedeira alcoólica ou mística o terror da
existência, sonhando não com o Olimpo mas com uma vida sem míngua de sustento e
paz, sem carência de terra para cultivar e, no entanto, capazes também de
perseguir o sonho apolíneo (Volfrâmio, Uma Luz ao Longe), pelo qual atravessam
oceanos, escavam montanhas, carregam o diabo às costas em busca do seu
individual e libertário destino, longe do fausto e da nobreza dos gregos (sem
nada de comum com o novo homem, “espectador estético,” com quem sonha o
filósofo alemão), mas com um autêntico sentido de dignidade, consubstanciada na procura da material espiritualidade que a luta
pela terra, a casa e o pão representam. Simples seres humanos carentes dos
benefícios da civilização, mas que lá, onde os Lobos Uivam não conseguirão sobreviver
sem a conservação do ambiente sublime das montanhas agrestes, lugar onde a alma
serrana se une ao espírito universal.[18]
Abordemos agora o conceito de “ecologia da paisagem”,
seguindo a própria cronologia dos autores em estudo, sem deixar de revelar o
lado estético, metafísico, da sua representação da natureza e do ambiente.
Recordemos O Sentimento dum Ocidental,
dedicado por Cesário Verde a Guerra Junqueiro, que começa com as Aves-marias,
que evocam o sofrimento e a dor humanos, num ambiente de “De prédios sepulcrais,
com dimensões de montes “…e o desejo absurdo de sofrer”.[19]
Óscar Lopes evidencia o carácter transfigurador
das metáforas usadas pelo poeta, intersecionando vários planos narrativos e
relativizando o tempo, como o fariam depois Pessoa e os modernistas em geral. O
desejo “...de uma plenitude que incluísse todos os sujeitos e todos os objetos
possíveis de saber e de sentir”, base da criação artística que Walt Whitman
legou aos poetas do século XX e ao futurismo do nosso Álvaro Campos.[20]
Mas é sobretudo a dimensão critica dos primeiros
sinais de globalização do mercado mundial e a perceção da metamorfose urbana e
burguesa da cidade, à custa da mercantilização da natureza e da condição
humana, que nos importa avaliar em Cesário, reconhecendo que soube transpor o
terreno do naturalismo, positivista e evolucionista, e atingir com invulgar
espírito de vanguarda os temas e inquietações que atravessam o Modernismo e o
pós-Modernismo. Se a escrita do poeta nos surge como intemporal e suscetível de
ser reinserida no nosso próprio tempo, deve-o seguramente ao ambiente e
preocupações humanistas que transporta como matriz e se traduzem na expressão
política e poética da sua solidariedade para com os pequenos lavradores e os proletários
das cidades:
“É a fase em que ele acaba de descobrir a cidade
de Lisboa, no seu tempo, para além da poetização da cidade moderna por
Baudelaire; e em que, correlativa e simultaneamente, descobre também a poesia
de uma vida rural sem idealismo, dura, prática, dir-se-ia até que irremissivelmente
prosaica (ou “corna”, como ele diz em calão num verso)”.[21]
É
ainda Óscar Lopes quem situa o período de maturidade do poeta a partir do
poema. Em Petiz. Versos de surpreendente atualidade que testemunham a perda de valor
relativo do Capital-Terra e a sua visão realista da vida rural.
”Que inferno! Em vão o lavrador rasteiro
E a filharada lidam, e a mulher!...
Ah! O campo não é um passatempo
Em Cesário, acontece a redescoberta do campo
como refúgio salvador da cidade insalubre. E o que parece
mais notável, no contraste a que submete, relativizando-os, os valores das
produções industriais da Inglaterra face aos produtos agrícolas portugueses, é
a descoberta de um valor intrínseco, a que a ecologia chama hoje conservação da
biodiversidade, que a seleção genética artificial e a produção industrial têm
vindo a destruir.
Eis
como, de forma premonitória, se expressam os valores científicos da “ecologia
da paisagem”, que as Ciências do Ambiente defendem, na atualidade, como base da
conservação da espécie humana e garantia da sua sobrevivência futura _ uma
humanidade consciente da sua dependência da terra e da necessidade de conservação
da mais ampla diversidade biológica.
Neste contexto, de valoração das bênçãos da
terra (e do esforço do homem como construtor da paisagem), da função criadora
da natureza mãe, a exaltação do modo de vida “sustentável” da aldeia não surge
como apelo atávico e passadista, mas configura-se como surpreendentemente
moderno.
“Chorai” pois “arcadas de violoncelos” por estes poetas e aqueles outros,
poetas do Orpheu, companheiros do destino trágico de Mário de Sá Carneiro. No
caminho do exílio, percorrido antes por Camilo Pessanha, o poeta Narciso, a
vida esgotada nos grandes salões artificiais de Paris, “...de perfumes esguios,
luas zebradoras, cores intensas, rodopiante…”, assume pateticamente a sua
condição de Ícaro-suicida.[23]
É deste ambiente hostil à natureza humana que nasce o sofrimento do poeta.
“Quase/Um
pouco mais de sol-eu era brasa
Um pouco mais
de azul-eu era além
Para atingir
faltou-me o golpe de asa...Fim
A um morto
nada se recusa
E eu quero
por força ir de burro”.[24]
Ele comoveria Schiller, na sua exigência da mais viva representação e
legitimação do herói trágico, capaz de assumir a liberdade moral de enfrentar o
sofrimento e a morte, mas mereceria a sua condenação ao associar o seu funeral
à indignidade de um caixão transportado sobre as costas de um asno.[25] É que os tempos eram tão adversos e prenunciadores de
tão formidável mudança, que o ser humano se sentia esmagado até ao mais fundo
da sua individualidade e a sua vida parecia caminhar em direção ao nada. O
ambiente deste novo período da civilização retirava ao homem o sentido do
patético que enobrece o sacrifício humano, tornando-o “sublime” apenas quando
serve a causa comum da humanidade (Schiller). A validar a asserção filosófica
de Schiller pelo seu contrário, agora o sofrimento humano parecia ser mero
sofrimento e negação da própria liberdade moral.
…Ou como afirma Eduardo Lourenço:
“…a
consciência aguda de que esses tempos eram tão originais (o crepúsculo Nietzschiano
de Deus) que não podiam ainda ser vividos senão negativamente pela fuga ao que
neles emergia, quer dizer, o primeiro esboço de uma sociedade de massas, cuja
simples visão provocava uma espécie de náusea, ao mesmo tempo social, política
e espiritual, para os que apercebiam essa emergência como o anúncio da morte do
«indivíduo»”.[26]
Os versos finais deste conjunto, articulados sobre a imagem-metáfora do
marujo inglês que come sofregamente as laranjas, evocam-nos, na força
sinestésica do prazer e dos gestos gulosos, o reencontro alegórico do homem,
mesmo aquele que é produto da civilização maquinal e cosmopolita, com a sua
condição natural.
“Jack,
marujo inglês, tu tens razão
Quando,
ancorando em portos como os nossos,
As laranjas
com cascas e caroços
Comes com
bestial sofreguidão!”[27]
São ainda de Cesário estes versos chave:
”AH! Ninguém entender que ao meu olhar
Tudo tem
certo espírito secreto!”[28]
Versos que poderiam ter sido escritos por Camilo Pessanha, seu contemporâneo,
mas cuja obra apenas seria publicada em 1916. Recordemos o autor de Clepsidra.
“... Eu vi a
luz em um país perdido
A minha alma
é lânguida e inerme.
Oh ! Quem
pudesse deslizar sem ruído!
No chão sumir-se,
como faz um verme ...”[29]
Nesta “inscrição” encontramos, na opinião de António Falcão Rodrigues de
Oliveira, os quatro temas de toda a obra: a Dor, a Solidão, a Morte
e a Transitoriedade e Fuga para o Nada.[30]
Poesia simbolista, que intui para uma
realidade assustadora, sem projeto de saída individual e coletiva, enquanto, no
plano estritamente poético, procura uma nova plenitude, longe do senso comum.
Reação assumida de forma diversa e
contraditória, como misticismo tolstoiano ou outro, revolta anarquista e socialista
ou esteticismo, que atingiria a sua plenitude sobretudo nas grandes metrópoles_
Paris, Londres, Berlim…
Mas na renúncia à vida de Sá Carneiro, como fora
de Antero de Quental, Oliveira Martins e de outros “Vencidos da Vida”, a
tragédia tem um valor diferente daquele que evidenciámos em Nietzsche,
significa derrota, desistência ou renúncia mortal: ”Oh! Quão diferentes eram as
palavras que eu ouvia a Dionísios”![31] A autonomia da condição
humana, mesmo quando levada ao extremo libertador do suicídio, derradeiro ato
de liberdade inaceitável para a moral schilleriana é, de igual modo, contrária
à atitude moral que o discurso de Zaratustra preconiza, quando rejeita firmemente
o conselho suicida de Sileno.
Deste modo, através da reflexão sobre a obra de
Camilo Pessanha e de Mário de Sá Carneiro, nos aproximámos de novo do conceito de
“metafísica do ambiente”, completando o ciclo metodológico a que,
alternadamente, recorreremos para desenvolver o nosso trabalho.
O primeiro protesto deste século vem do próprio Eça de Queirós e da sua
obra A Cidade e as Serras (1901).[32]
A Cidade e as Serras, de Eça de Queiroz, dá-nos o testemunho dos malefícios
da civilização, representada pelas grandes metrópoles, onde o consumismo
excessivo conduz ao tédio, depois ao pessimismo e ao vazio existencial. Só o
regresso à Natureza, que a paisagem humanizada do Douro e as serras simbolizam,
pode fazer renascer a natureza humana que existe em Jacinto, como uma segunda
pele liberta dos artifícios da vida urbana.
A cidade representa, tradicionalmente, a
passagem da natureza à cultura. Mas a cultura da cidade começara a ser
entendida como artificial, responsável por uma desnaturalização do homem.
Acompanham a Cidade e as Serras, Os Meus Amores (1901) e In Illo Tempore (1902), de Trindade
Coelho...representativos de um apelo ao rústico, ao passado à tradição; ou o Amanhã (1901), de Abel Botelho, romance naturalista eivado de atmosfera
finissecular.[33] Tal como Os Simples, de Guerra Junqueiro, de apelo ao regresso à Terra,
às tradições, à voz lírica das virtudes dos simples...”[34] E o Só, de António Nobre, já que as outras
obras, no dizer de Jorge de Sena, não podem salvar-se hoje de uma tonalidade “sentimentaloide”.
Estamos em presença, no plano social e político, de uma consciência
conservacionista, de uma visão parcial do mundo rural, que corresponde à classe
dos proprietários deslocados para a cidade.
Testemunhos partilhados pelo grupo
da Renascença Portuguesa, e a sua revista A Águia, em torno da qual se
aglutinaram Teixeira de Pascoaes, o seu diretor literário entre 1912 e 1917,
António Correia de Oliveira, Afonso Lopes Vieira, Afonso Duarte, Augusto
Casimiro, Mário Beirão e Jaime Cortesão, entre outros.[35]
Mas de Pascoaes, o seu guia, doutrinador e poeta
maior, vai emergir uma outra emoção estética e uma nova leitura da paisagem,
através do retorno metafísico à natureza, como paradigma reencontrado;
filiar-se-á numa linha espiritualista, que sonha e deseja a comunhão dos homens
com a terra-lar; terra-lar, símbolo original de Pascoaes que é reminiscência
dos afetos e da função protetora do lar, associada ao eterno retorno ao seio da
terra, de onde se nasce e sobre a qual se morre. E a comunhão surge da “romaria
espiritual ao Tâmega”, às montanhas e rochedos que são o lugar sagrado da união
cósmica do ser individual com o universo.[36]
Na descrição dos céus noturnos do Douro na Quinta de Tormes, feita por
Jacinto ou nos versos daquele poeta sobre o Marão, emerge um turbilhão de sensações
onde “brilha” a reminiscência platónica da harmonia e da beleza que o filósofo
atribui á imanência das coisas: ”E é impossível não sentir uma solidariedade
perfeita entre esses imensos mundos e os nossos pobres corpos.”[37]
Assim se retoma a “metafísica do ambiente” e se partirá, no ponto seguinte,
para a “ecologia da paisagem”, num processo analítico encadeado ao longo de
todo o percurso temático deste ensaio.
Esta metodologia permitir-nos-á reconhecer, ao longo das diversas obras e
autores, as grandes questões colocadas pelo emergir da crise ambiental no texto
literário e procurar, paralelamente, as raízes que determinam a configuração da
cultura contemporânea e prenunciam as suas linhas evolutivas. Apreciaremos
ainda a sua influência na questão social e como o ambiente determina
decisivamente o devir da nossa sociedade globalizada, desde a ciência à
política e à ética.
Raul Proença concebeu e prefaciou o I volume do Guia de Portugal,
datado de 1 de Novembro de 1924. Com notável antecipação sobre a consciência
ambientalista contemporânea, o autor exprime na sua prosa os modernos conceitos
de paisagem global e de preservação do património cultural e biogenético.[38]
Destaca “a variedade quase inexaurível dos tipos de paisagem”, o paraíso
botânico, que era o nosso país.[39]
Poderíamos dedicar várias teses ao estudo aprofundado desta obra monumental
e verdadeiramente percursora da razão ambientalista, de que não conhecemos
paralelo noutro país.
Dela faremos referência em diversos passos do nosso trabalho, começando por
evidenciar que os seus textos, redigidos num estilo de divulgação científica
que hoje é comum mas era inédito na época, contêm uma perspectiva interdisciplinar
e sistémica da paisagem, são sensíveis à sua beleza estética e estão
profusamente impregnados de uma visão ambientalista moderna. De tal modo que um
dos seus usos actuais de maior valia científica e eficácia pedagógica é o do
estudo e observação comparados das paisagens humanizadas que descreve e interpreta.
Da Introdução geográfica de Silva Teles retenhamos os Tipos de Paisagem.
Da Introdução histórica, escrita por António Sérgio, a sua visão
crítica do liberalismo.
Da Introdução Etnográfica de Aquilino Ribeiro, e deixando para o
próximo capítulo a análise da relação entre a terra e o homem (e a Casa do
Homem), reconheçamos a teia de ligações entre o ambiente e o vestuário.
Da flora nos fala o próprio Raul Proença, apoiado no testemunho de
visitantes sábios e ilustres.[41]
Deixemos a caracterização ambiental da cidade de Lisboa para um momento
posterior deste ensaio, quando abordarmos outras perspetivas do nosso desenvolvimento
urbanístico e concentremo-nos agora numa das superiores mais-valias do Guia
de Portugal: A descrição pluridisciplinar e interdisciplinar da paisagem,
que nos permite hoje avaliar a profundidade e gravidade das suas
transformações, nomeadamente, quanto à conservação da biodiversidade, a preservação
dos recursos naturais e as relações de equilíbrio ambiental entre o trabalho do
Homem e a Terra.[42] Tomemos como exemplo a escolha, no extenso percurso
que o I Tomo do Guia oferece nos arredores de Lisboa e na Margem
Sul, os sítios da Arrábida e da Costa da Caparica. Comecemos por esta, enunciando,
primeiro, o texto de Raul Brandão. “No imenso areal, o barco da duna, próprio
para a arrebentação, de proa e popa erguidas para o céu;” comparando-o, depois,
com a descrição atual feita por Sant´ Anna Dionísio de degradação: “A Costa da
Caparica seria hoje irreconhecível para o autor do Húmus e dos Pescadores.
Em trinta anos tomou-se uma espécie de rival dos Estoris, pletórica de
vivendas, de cafés, de pastelarias, de pensões, de esplanadas, de colónias de férias,
e alguns hotéis.”[43]Ou então, pela positiva, depois de revelar na Arrábida
os seus valores florísticos e patrimoniais, a leitura estética e metafísica da
paisagem:
“O que há na Arrábida de tão belo e empolgante, que a pode bem emparelhar
com as serras de Sintra e do Buçaco, depara-se escondido, para mais funda e
atónita emoção, na vertente que olha ao Sul, sobre aquele ângulo da costa onde
o mar forma baía imensa e ganha azul e suavidade. Sintra é toda um paço
alcantilado, parque e jardim, envolto pelas névoas do mar e ressoante de
memórias heráldicas; e o Buçaco a catedral de verdes naves, cheias de penumbra
religiosa, de cujas flechas a vista rola, afogada em carícias, sobre a macia
catadupa do seu teto de frondes. A Arrábida, que excede as duas em aspereza
natural, se pela sua condição humilde e místicas memórias se afasta da fidalga
Sintra e se aproxima do Buçaco, é, mais do que esta, arrebatada e ascética.”[44]
A identificação e preservação dos principais habitats naturais onde
a vida se renova, surge nos nossos
escritores como produto da própria experiência estética da natureza.
O mosaico agro-florestal, fruto do empirismo ecológico dos nossos cultivadores
e exemplo secular do correto ordenamento da paisagem, surge claramente percecionado
e esteticamente valorizado na obra dos poetas e prosadores da primeira metade
do século.
Irene Lisboa escrevia no seu poema Passeios:
“...A terra,
o homem a faz.
A picota, o
chão de milho e abóboras
… a casa...
E de um lado
e outro, nas abas muito
juntas da
Dir-se-ia que estamos em presença de uma interpretação da paisagem feita
pelo próprio Ribeiro Teles, ou por Jorge Paiva em defesa da paisagem de
“bocage” explicando que o homem não é um ser da floresta mas um animal da orla,
um construtor de sebes contínuas onde é maior o valor biológico, jardineiro das
hortas e anacoreta sábio, sobrevivendo entre a bouça e o socalco.[46]
Esta relação, atravessa toda a obra da poetisa e dos nossos maiores prosadores
da primeira metade do século XX, cujos contributos se podem cotejar com o dos
naturalistas, mediatizados a partir da década de setenta, a quem se reconhece
um importante papel na tomada de consciência dos valores ambientais em crise.
Os Prados de Lima
Miguel Torga evoca o Minho, com referência à obra maior da agricultura
ecológica dos camponeses: os prados de lima, que repartem a água dos ribeiros e
a fazem descerem e circular por gravidade, restituindo-a depois aos seus
leitos, fornecendo ao gado um pasto abundante e acessível.
“...Um Minho de cores austeras, trágico ou
épico, de courelas inventadas nos despenhadeiros, de águas com ponteiro ou de
matriarcado à míngua de varões...”[47]
“Courelas inventadas nos despenhadeiros” que seguram o solo avaro, armado
em socalcos, verdadeiros monumentos ao trabalho e à inteligência humana,
“prados de lima” cujo nome provém da repartição fina da água, como se fosse limada,
para que possa ser distribuída equitativamente em pequenos regatos,“ águas com
ponteiros” e recuperada mais abaixo no leito das ribeiras.[48]
Os socalcos
É dele (Torga) também a imagem do Reino Maravilhoso de Trás-Os-Montes
associada ao respeito e afeto misturados no beijo que se dá ao trigo amassado
de suor, quando ele cai no chão, expressão simbólica da relação umbilical do
homem com a terra-mãe. E a visão do Douro, exaltado nos seus socalcos que são
monumentos ao esforço do homem para combater a erosão e exemplo das tecnologias
limpas, que no xisto sustentam o solo e transformam o calor do sol em energia e
frutos consumíveis…
”E daí a
pouco há sol engarrafado a embebedar os quatro cantos do mundo.”[49]
Completada pelo ambiente de epopeia e tragédia do Ciclo Port Wine de
Alves Redol:
“…tempestades
de Maio, em que o vento macera os pâmpanos das videiras e as chuvas torrenciais
arrastam muros de socalcos…”e o Douro é uma serpente que rasga no leito
profundo galerias e poços e os rabelos vencem “…a poder de velas e remos, de
varas ou de sirga.”[50]
Os terraços madeirenses, num texto retirado do seu Diário…
ӎ o milagre
dos abismos povoados, das levas de água conduzidas, das grandes ravinas
amanhadas que levo na retina maravilhada.”[51]
A trilogia mediterrânea: azeite, vinho e pão
O valor pedagógico do sítio de Conimbriga, lugar de encontro entre a
paisagem setentrional, atlântica e a paisagem do sul, tipicamente mediterrânea,
na visão das crónicas do geógrafo-escritor Orlando Ribeiro:
”Nada falta
à meridionalidade do quadro: o pano de fundo das montanhas calcárias, secas e
descarnadas, os olivais a perder de vista, os campos onde o trigo já predomina
sobre o milho, e até, circundando a igreja da freguesia, meia dúzia de negros e
esguios ciprestes, tudo isto recortado num céu quase sempre azul, brilhante,
limpo, sereno, luminoso, e debaixo do sol forte e quente, a terra quase árida.”[52]
As planícies aluviais e costeiras, os estuários e o seu património
biogenético
Para olhar a planície, regressemos ao Portugal de Torga e à Estremadura,
território onde historicamente se regista a introdução na agricultura das
modernas relações de produção e das suas tecnologias de ponta, paisagem
humanizada por excelência e que, por isso, carece de ver preservada a sua biodiversidade
em risco.
“...O nosso
lirismo devia ser coutado. O país devia consagrar-lhe um parque de reserva, onde
fosse proibido dizimar as espécies que ainda restam, deixando-as viver num
paradisíaco devaneio, à lei da inspiração. E nenhum sítio mais indicado para
isso do que esta província portuguesa, feita de dunas e calcário.”[53]
A revelação dos valores biogenéticos e das riquezas naturais dos estuários
que o Tejo representa nos plainos ribatejanos e nas zonas húmidas; na asserção
de Torga…
“…aquela nesga da pátria é um mundo à parte dentro das suas
entranhas-um mundo rico, de aluvião , de maná…”[54]
A costa algarvia, como era na sua mediterrânea riqueza faunística e
florística, antes das profundas destruições provocadas pela expansão
desmesurada da atividade turística:
“...A terra
não hostiliza os pés, o mar não cansa os ouvidos, o frio não entorpece os
membros, e os frutos são doces e sempre à altura da mão.”[55]
O património oceânico
Naveguemos para as Ilhas Desconhecidas, agora com Raul Brandão. As
condições edafo-climáticas dos Açores e a extraordinária riqueza biológica das
suas costas preenchem longos passos da obra em referência:
“Nos Açores
a primavera não existe, por causa dos “icebergs”...Ao mesmo tempo o “Gulf
Sream” aquece e modifica a temperatura…aconteceu-me meter a mão no mar e
achá-lo tépido como o sangue…A quatro e cinco mil metros verdadeiras florestas
animais_ umbelárias, górgones, que, sob excitações variadas, emitem fogos violetas,
azuis, vermelho-laranja…Todas as formas e todos os feitios: a jamanta, avejão negro
e voraz estendida como um manto, o raião ou tremelga que fulmina quem lhe toca,
a enguia titureia, o albafar”.[56]
E poderíamos percorrer toda a diversidade paisagística, com outros autores
e novas obras.
De conservadores da natureza a reformadores sociais, de divulgadores a
filósofos, eis em síntese o percurso dialético das lideranças e do pensamento
arco-íris ambientalista.
O conhecimento das interações ambientais permitiu à comunidade humana
identificar os riscos que representam para a sua qualidade de vida e para o seu
futuro as agressões ambientais, sobretudo a partir de 1860, quando a ecologia
se organizou como ramo autónomo da biologia, tendo como objeto o estudo da
relação dos seres com o seu ambiente.
Mas tal facto, por si só, não anula a perspectiva antropocêntrica. Afinal o
reconhecimento de que as plantas estão na base da cadeia alimentar e da
transformação química da energia solar necessária à produção dos alimentos ou
das reservas minerais de carbono, ou de que a conservação da biodiversidade ou
do solo são fundamentais para evitar a rotura da cadeia alimentar ou prevenir
os efeitos da desertificação, podem conduzir apenas à definição de um novo
finalismo utilitarista, que proceda, com novas tecnologias “limpas,” à seleção
e manipulação dos seres vivos para o consumo mercantil, racionalizado no limite
dos conhecimentos humanos sobre a interação dos fatores de crise ambiental e o
equilíbrio dinâmico dos ecossistemas. Na verdade, não é possível determinar com
rigor qual é a capacidade de carga e renovação dos diversos ecossistemas face,
por exemplo, ao surgimento todos os anos de centenas de novos compostos
químicos, cujo impacte ambiental é desconhecido ou está insuficientemente
estudado, pelo que a regeneração ambiental com recurso às novas tecnologias
despoluidoras será sempre uma solução de recurso e mais cara, sendo preferível
seguir a estratégia ambientalista para o desenvolvimento, que concede a
primazia à redução, depois á reutilização e, em última escolha, à reciclagem.
Sendo certo que as revelações e denúncias dos ambientalistas, podem também gerar,
ao contrário, atitudes de absolutização de certos valores ecológicos em confronto
com os valores humanistas clássicos.
Eis um conjunto de questões extremamente complexas que o progresso
científico, no interface das disciplinas tradicionais e a reflexão ética têm de
enfrentar passo a passo.
Os naturalistas
É neste contexto que abordaremos os contributos, de sentido diverso, de uma
das fontes da ecologia contemporânea, a intervenção dos naturalistas, como
Robert Hainard e Konrad Lorenz, deixando para o estudo da ética a obra do
americano Aldo Leopold e, tendo sempre presente o esquecimento a que foi votada
a contribuição do seu contemporâneo e biólogo soviético, Vladimir Vernandsky, a
quem dedicaremos uma nota mais adiante.
O primeiro, de origem suíça, pintor e escultor naturalista, vem desde os
anos 40 refletindo sobre as contradições entre a cultura da moderna civilização
e a natureza, considerando que aquela tem vindo a subjugar a dimensão
instintiva e orgânica da natureza humana, que necessita de se libertar da
tirania da razão. O seu fascínio pelos processos de reprodução e seleção
naturais leva-o a rejeitar o antropocentrismo em favor de um certo tipo de panteísmo,
acompanhado pela transposição mecânica dos processos de competição entre as
espécies para a sociedade humana, conduzindo-o ao elogio amoral dos vencedores,
à rejeição das políticas de solidariedade social e à identificação da sua
filosofia com a máxima brutal, aplicada às relações sociais, que afirma:“…o
direito natural resume-se a comer ou ser comido“! [57]
Diversamente, O Sermão da Humildade, de K. Lorenz, enuncia o
princípio que…
“…o
nascimento de uma forma superior de vida a partir de um antepassado mais
simples significa para nós um acréscimo de valor, ”esclarecendo que não se pode
resumir a vida a um conjunto de processos físicos e químicos, resultantes das
leis científicas do devir filogénico,“…porque uma matéria viva é
qualitativamente mais do que o processo orgânico”.[58]
Neste contexto e como mostraremos adiante, a propósito do Romance da Raposa, de Aquilino Ribeiro,
o homem é encarado nos planos da ontologia e da ética. [59]
É o que procuraremos demonstrar ao longo do estudo dos seus escritos e da
procura de uma visão partilhada da ecologia
da paisagem, em paralelo com uma outra perspectiva, a metafísica da
ambiente, que podem surgir na mesma obra e no mesmo autor e reciprocamente se
completam, gerando propostas de mudança social e política e de fundação de uma
outra ética.
O pensamento filosófico desenha-se na escrita literária como o veio atravessa
ou impregna o filão mineral.
Se os artistas dos finais do século XIX se angustiavam com o espectro de
uma nova época que ameaçava reduzir o indivíduo a um número de série da cadeia
produtiva, os escritores contemporâneos vêem o fantasma corporizar-se em todo o
mundo e reduzir a condição humana ao ofício de precarizado consumidor. Os
próprios produtores da cultura, sábios cercados em modernas Constantinoplas, ou
abnegados filósofos que não se limitaram a interpretar o mundo, questionam
agora cada um dos seus atos, pois difícil se torna saber se é o mercado que
gera a obra e a sua respetiva moral, ou o espírito humano resistindo ainda, num
estertor criativo e de elevação ética.
A condição humana
Esta poética, da condição humana, e particularmente do estatuto da mulher
rural, encontrará um caminho de renovação em Agustina Bessa Luís, no ano da Sibila,
1953. Dela diz Eduardo Lourenço ser a romancista “...do ancestral e arquétipo
mundo português do «fuso e da roca» e da sua morte”…[60]
Donde podemos inferir o peso social e ideológico que esse velho modo de
produção continuava a ter nos anos 50 na paisagem camponesa e espiritual do
país.
Simbolicamente, a personagem Gema, que Agustina caracteriza como a
“…artista, o produto mais acabado da natureza, que se pode definir como uma
inutilidade acabada,” representa a passagem de uma tradição rural (a vidente)
para o presente da cultura citadina, que se ergue sobre os escombros do velho
Portugal.[61] Numa época de avanço da indústria e da mineração, de eletrificação
do país a partir das grandes barragens durienses, recrutando os seus trabalhadores
entre as famílias de camponeses-operários, sem rudimentos de higiene e segurança
no trabalho, sem preparação técnica e qualificação profissional, quando chegam
significativos investimentos estrangeiros e arranca o primeiro Plano de
Fomento, enquanto o movimento de urbanização e litoralização do país se
acentuam.
Óscar Lopes reconhece no ambiente do romance a “…sociedade nortenha de entre
1870 e cerca de 1950”. E é o mesmo crítico que cita as últimas páginas de Sibila…
“Tudo o que
vivemos nos faz inimigos, estranhos, incapazes de fraternidade. Mas o que fica
irrealizado, sombrio, vencido, dentro da alma mais mesquinha e apagada, é o
bastante para irmanar esta semente humana cujos triunfos mais maravilhosos
jamais se igualam com o que, em nós mesmos, ficará para sempre renúncia,
desespero e vaga vibração...”[62]
Colocando-a deste modo em oposição ao otimismo e
racionalismo burgueses do século XIX, que impregnaram outrora a visão do mundo
rural de Júlio Dinis e ou Alexandre Herculano.[63]
A obra de Virgílio Ferreira estrutura-se em torno de uma única e reiterada
questão: o sentido da existência pessoal num universo sem sentido.[64] Quando o autor aborda a natureza é como alegoria, da
vida ausente na paisagem coberta de neve que cobre a aldeia da Beira Baixa,
definitivamente deserta, consubstanciando a única alegria breve que é permitida
ao homem, mas com a particularidade de, para além da persistente metáfora da
angústia existencial, emergirem da própria estética do texto as imagens
realistas… da neve na serra natal, dos estorninhos voando a uma figueira, da
morte piedosa de um cão…[65]
Enfim, angústia existencial perante a morte de todos os deuses, mesmo
daquela ideia do divino imanente ao devir da natureza e da natureza humana para
o Bem, que em Antero de Quental substituiu os cultos religiosos e que significa
o fim do esplendor que “…irradiava da criação vivida como obra de Deus.”[66]
Mesmo quando estamos em presença de um
escritor telúrico, que compreende intuitivamente as relações sistémicas da
paisagem, a emoção estética conduz igualmente a uma reflexão metafísica. É o
que iremos analisar nalgumas passagens da obra de Miguel Torga, e também de
Teixeira de Pascoaes, extraindo da sua escrita sobre os grandes quadros
paisagísticos toda uma metafísica do ambiente, em diferentes cambiantes.
Miguel Torga e o Litoral como cenário do drama humano
No confronto com o mar, a alegoria da aventura humana sobra a Terra, que
evoca a precaridade da condição e do engenho humanos, nas suas tentativas para
dominar a natureza.
“…Um porto que
é sempre a mesma praia imensa, estéril e fustigada, onde as mulheres, Cassandras
eternamente de luto, rezam e profetizam”.[67]
Torga, Pascoaes e o sublime das serranias
A Beira e a sua Serra da Estrela, espelho da relação telúrica entre as
pedras e os seres...
”Há rios na
Beira ? Descem da Estrela. Há queijo na Beira? Faz-se na Estrela. Há vento na
Beira? Sopra-o a Estrela. Há energia elétrica na Beira? Gera-se na Estrela.
Tudo se cria nela, tudo mergulha as raízes no seu largo e materno seio. Ela
comanda, bafeja, castiga e redime. Gelada e carrancuda, cresta o que nasce sem
a sua bênção; quente e desanuviada, a vida à sua volta abrolha e floresce. O
Marão separa dois mundos - o minhoto e o transmontano. O Caldeirão, no pólo
oposto de Portugal, imita-o como pode. Mas a Estrela não divide: concentra. O
muro cresceu, alargou, e transformou-se na extensão que teria de partilhar. O
pouco que ficou desse abraço, são flancos, abas, encostas e escorrências de
aluvião.”[68]
Numa viagem lunar entre o Vouga e o Douro, agora com Teixeira de Pascoaes,
encontramo-nos em presença do seu arquétipo da união espiritual com a
montanha-mãe, mediuna do próprio universo.
“Em derredor
da montanha tudo é sonho, silêncio e crepúsculo, espraiando-se numa onda
circular, até às estrelas remotas do horizonte. Todo o vasto mundo é feito de
matéria imponderável; mágoas nublosas formas espirituais, cingindo a densa
cristalização da serra.”[69]
Miguel Torga e a epopeia humana nos Plainos e
Charnecas
O Alentejo, dos grandes espaços
abertos que moldam o carácter dos seus trabalhadores, no apelo à dignidade e à
liberdade da condição humana como símbolo do valor intrínseco das mais humildes
manifestações da vida...
“É preciso ter uma grande dignidade humana, uma certeza
em si muito profunda, para usar uma casaca de pele de ovelha com o garbo dum
embaixador. Foi a terra alentejana que fez o homem alentejano, e eu quero-lhe
por isso. Porque o não degradou, proibindo-o de falar com alguém de chapéu na
mão”.[70]
Casimiro de Brito e Nemésio, a tragédia do Al Andaluz
e das Ilhas Encantadas
O Algarve, como memória dramática do ocaso civilizacional dos árabes na
península, silenciosamente ajoelhados na lembrança do país que construíram e
perderam …”o mar/ sem peso as noites inclinadas a terra volúvel…,”de Casimiro
de Brito.[71] O Primeiro Corso, de Vitorino Nemésio, com os seus símbolos de eternidade no “sal que torna
incorrupto o aro da terra,” consciência da humilde grandeza da condição humana,
“na conquista da terra” e no “pasmo” perante a imensidão do oceano e do mundo.
“Oh, solidão
das ilhas!…Conquista de terra por firmeza no pouco que se tem e por tino e
recuo a
tempo no muito que se deseja…Portos fechados, ilhas à vista…Entre nós e
o mundo aquela porção de sal que torna incorrupto o aro da terra. Movimento e
força; outras vezes tranquilidade e pasmo…Extensão…Extensão…”[72]
Os novos “naturalistas”
Referimos já como uma das origens da moderna consciência ambientalista, o
contributo dos naturalistas. Recordemos melhor a sua ação para a cotejar com as
obras dos nossos prosadores e poetas. No âmbito da União Internacional para a
Conservação da Natureza, evoquemos Jean Dorst, como exemplo da ação educativa
dos museus de história natural, de que foi diretor em França; o comandante
Jacques Yves Cousteau e a sua fundação, dedicada à defesa dos oceanos; os
programas da Nacional Geographic na TV, dedicados à conservação da vida
selvagem, e os do biólogo espanhol Félix De La Fuente em prole da diversidade
biológica; ou o livro choque da bióloga americana Rachel Carson, Primavera Silenciosa, denunciando a
hecatombe provocada pelo uso maciço de pesticidas na agricultura. Estes
trabalhos de investigação e divulgação ganharam notoriedade por revelarem as
complexas relações dos seres vivos entre si e destes com o meio físico onde
evoluíram historicamente, ao mesmo tempo que produziam a denúncia multilateral
da crise contemporânea do ambiente.
Aquilino Ribeiro, notável e premonitório escritor
ambientalista
É igualmente notável e surpreendente encontrar na obra de Aquilino Ribeiro a
constante presença dessa Via Sinuosa ambiental, desde os contos de Jardim
das Tormentas (1913) até ao Livro
da Marianinha (1967), com destaque
para alguns escritos de onde emerge uma premonitória e nítida temática
ambientalista.[73] Tais são as obras de reflexão sobre a ética antrópica
e a ética animal, do ciclo animalista que inclui O Romance da Raposa
(1923), Arca de Noé, III Classe (1935)
e O Livro de Marianinha.[74] Os romances
nos quais se analisa o impacto no mundo rural da expansão do capitalismo internacional,
onde se pugna pela conservação da natureza e a favor do desenvolvimento sustentável,
em Volfrâmio
(1944) e Quando os Lobos Uivam
(1958). E aqueles outros em que se revela uma aguda conceção da ecologia
global, da infinidade das relações entre os seres vivos e a terra, que percorre
a totalidade da sua obra, e atravessa claramente os livros Terras do Demo (1919) e A
Casa Grande de Romarigães (1957). Este romance conta a história de três
séculos de paisagem humanizada do Noroeste, retomando a tese aquiliniana de
1923”…A natureza não tem simpatias especiais por nenhum dos seus seres”,
inscrita no seu comentário ao Romance da
Raposa e desenvolvida no posfácio do segundo destes livros, quando a
precariedade da vida e da obra do homem se confronta com a neutralidade da
natureza “…em matéria do bem e do mal, sem privilégio de carinhos para ninguém,”
traduzindo neste postulado o princípio filosófico que sustenta toda a crítica
coeva ao antropocentrismo egocêntrico. Mas em que a vida, não sendo mais que um
momento de equilíbrio que fulge”…nos laboratórios de integração e desintegração
da Natureza , é, …com a sua beleza e o
seu drama, uma razão suficiente, por assim dizer, para o Mundo existir .”[75] A génese da floresta surge - nos, no início de A Grande Casa de Romarigães, como
esplendor desse nascimento e fundamento ecológico do sortilégio (da
diversidade) da vida:
“Do pinhão, que um pé de vento arrancou ao dormitório da pinha-mãe, e da
bolota, que a ave deixou cair no solo, repetido o ato mil vezes, gerou-se a
floresta. Acudiram os pássaros, os insectos, os roedores de toda a ordem a povoá-la.
No seu solo abrigado e gordo nasceram as ervas, cuja semente bóia nos céus ou
espera à tez dos pousios a vez de germinar. De permeio desabrocharam cardos,
que são a flor da amargura, e a abrótea, a diabelha, o esfondílio, flores
humildes, por isso mesmo
trofeus de vitória. Vieram os
lobos, os javalis, os zagais com os gados, a infinita criação rusticana…”[76]
Enfim, o quadro da evolução da vida, ou o retracto poético da floresta
mediterrânica vista como um ecossistema suporte da diversidade biológica.[77]
Vladimir Vernandsky
Eduardo Lourenço, tal como antes Óscar Lopes e Mário Sacramento, revela-nos
a analogia entre o nascimento e a evolução da ficção neorrealista e o utopismo
realista e onírico da literatura americana da grande crise dos anos 30, aquele
que nos deu As Vinhas da Ira e, sobretudo, a Estrada do Tabaco, a qual coloca no
centro da sua poética a relação entre a Terra e o Homem.
A expulsão dos colonos das suas quintas no Texas
e Oklahoma, para dar lugar às grandes explorações da agricultura capitalista,
dita racionalizada e moderna, que ocorreu na década de 20 e constituiu o drama
real sobre o qual Steinbeck montou a sua trama romanesca, viria a dar origem em
1932 a uma das maiores catástrofes ecológicas da nossa época, quando violentos
tufões varreram literalmente o solo desprotegido, motivando em seguida uma
verdadeira revolução tecnocientífica nos EUA com a criação pelo Estado Federal
do Instituto de Estudo dos Solos, seguindo o exemplo da União Soviética. De facto o nascimento da ecologia global, espantoso para a época,
deveu-se ao biólogo soviético Vladimir Vernandsky (1863-1945 ), o criador da
biogeoquímica e autor da obra Biosfera, publicada em 1926 em Leninegrado, que
permanece ainda hoje num quase esquecimento. Contudo, foi
nos seus trabalhos que se inspirou George Hutchinson, o fundador da escola
superior de ecologia científica de Yale, base do ensino atual das novas
Ciências da Terra e do Homem, de onde saíram cientistas notáveis como Raymond
Lindeman, Eugene e Howard Odum. Depois da tragédia ambiental de
1932, os EUA levaram a sério a contribuição vanguardista da União Soviética e adotaram
sem preconceitos ideológicos os seus ensinamentos, nomeadamente passando a
considerar o solo como um elemento vital e vulnerável dos ecossistemas da Biosfera
.
Por outro lado, e quando comparamos a obra pioneira
dos biólogos soviéticos com as tragédias ambientais mais recentes que marcam a
decadência da primeira experiência histórica do “socialismo científico”,
fica em aberto o estudo (sem preconceitos ideológicos) das causas que
conduziram ao tremendo retrocesso entretanto verificado.
Voltemos a Eduardo Lourenço, e ao seu labor de crítico literário, para
evidenciar que ele estende a afinidade entre a nossa literatura e a ficção
americana das décadas de 20 e de 30, às obras da literatura brasileira desse período,
ao ambiente de tragédia e sonho, da terra árida e uma humanidade sem horizontes,
presentes também na escrita de Carlos de Oliveira, Manuel da Fonseca e,
particularmente, em Fernando Namora.[78]
O desenvolvimento capitalista nos campos portugueses seguiu um processo
diverso dos EUA ou do Brasil dos coronéis e dos posseiros, das vidas secas e
dos retirantes do sertão, mas também os seus períodos de rotura e crise ficaram
registados na nossa produção literária, conferindo-lhe particularidades
estéticas e especialmente temáticas suscetíveis de configurar obras de carácter
nacional e vocação universalista. Na época em causa, “as campanhas do trigo”,
que ocuparam uma parte substancial do montado alentejano, viriam consolidar o
sistema económico e social do latifúndio, com consequências ambientais (e políticas)
dramáticas, a longo prazo, nomeadamente pelo esgotamento precoce dos solos e a
diminuição das suas reservas freáticas.
A II Guerra Mundial deu origem à proliferação intensiva da mineração do
volfrâmio, com empresas inglesas e alemãs revolvendo as terras de Norte a Sul
na procura desse mineral estratégico, provocando impactos brutais no interior
do país, mas que o final da confrontação reduziu aos coutos mineiros de
Aljustrel e S. Domingos, Panasqueira, Borralha e Nordeste Transmontano. Deste
processo retiraram os livros Minas de S. Francisco, de Namora, e Volfrâmio,
de Aquilino, a sua matéria poética. Obras contemporâneas do romance singular de
Soeiro Pereira Gomes, Engrenagem, que as precedeu na narrativa dramática
do processo de industrialização do velho Portugal, limitado e contraditório, e
que Ferreira de Castro prosseguiu no romance A Lã e a Neve, paradigma das transformações modernas do mundo rural,
simbolizado na expansão e influência dos lanifícios da corda da Serra da
Estrela sobre o modo de vida e os costumes das aldeias serranas, dos seus
rebanhos, agricultores e pastores ancestrais.
Como veremos, é a saga destes heróis proletários ou dos seus novos
senhores, que está no centro das transformações profundas da paisagem
humanizada portuguesa estigmatizada pelo conflituoso
avanço da industrialização e das relações de produção capitalistas no mundo
rural, e que dariam origem ao romance proibido de Aquilino Ribeiro, Quando os Lobos Uivam.[79]
Industrialização e conservação da natureza, o emergir
do conflito.
Contra essa engrenagem política, económica e social, escreveu Soeiro
Pereira Gomes. Mas o que queremos destacar no livro Engrenagem é o surgimento direto, na nossa literatura, do conflito
entre o desenvolvimento industrial e a conservação da natureza e do ambiente,
personificado na recusa do camponês Zé Lérias em vender a sua terra aos donos
da fábrica e no intercalar na narrativa de painéis dramáticos denunciando os
efeitos nefastos da poluição, a destruição caótica da paisagem natural, marcada
pelas cicatrizes das grandes obras de engenharia, numa narrativa pontilhada
pelos desabafos dos rendeiros-operários que lamentam o abandono das suas
courelas e, finalmente, no trágico desenlace do romance, com a crise da
indústria e o seu encerramento, deixando apenas um ambiente de desolação e
ruína.[80]
O impacto das campanhas do volfrâmio, não apenas na
transformação da paisagem, mas ainda e sobretudo no plano ético, emerge das
obras Volfrâmio (Aquilino Ribeiro) e
as Minas de S. Francisco
( Fernando Namora ).
Podemos reler hoje esses romances e a trilogia do Ciclo Port Wine (Alves Redol), como paradigmas reveladores do
modelo atual das relações económicas desiguais entre os países do Norte
desenvolvidos e os países do Sul dependentes e subdesenvolvidos e do caracter
volátil do investimento que visa apenas o lucro.[81]
Mr. Hinckser, o poderoso alemão (como podia ser Mister Corbert, o
representante do império britânico) enfatizava a missão “ecuménica“ do capital
nazi, que fundia e destilava nos altos-fornos das indústrias de guerra, o
níquel da Finlândia, o ferro norueguês, francês e espanhol, o volfrâmio de
Portugal, o petróleo romeno, a bauxite de Itália, Hungria e Croácia, e o carvão
do Ruhr.[82] O “volfro“, na expressão de Aquilino…
”…significava
para as populações do Norte, deserdadas de Deus, o que o maná foi para os
Israelitas no deserto faraónico. Imagina-se o que seriam os impulsos da horda
esfaimada diante do alimento providencial, no afogo do dejejum…”[83]As
aldeias ancestrais mudavam de fisionomia. Em suma:“…Formava-se uma moral nova
com a nova indústria. Dolo, roubo, mentira, falsidade, desde que constituíssem
processos de promover o negócio do volfrâmio, tornavam-se ordinários, por
conseguinte, de prática corrente, discutível ainda, mas admitida. Resultava de
tal consenso que procuravam todos empulhar-se uns aos outros o mais conspicuamente
possível, e que falsificar o minério, fritando-o, desencantando-lhe substitutos
falaciosos, era um recurso industrial como outro qualquer…”[84]
Nas
terras do latifúndio, a destruição da paisagem construída laboriosamente pelo
trabalho de gerações irrompe na
metáfora da mina de S. Francisco que …
“floresce...Há
casas que os homens deitam abaixo para não perder a pista de um filão;
derrubam-se paredes e árvores, soterram-se searas e pomares, tudo o que
embarace o caminho…”[85]
E no
testemunho lúcido do velho camponês, alegoria personificada da sabedoria
popular e um dos símbolos da consciência crítica do romancista:
“Amanhã, depois
da guerra, ninguém falaria mais desses camponeses feitos mineiros, que, em vez
de proteger a seiva da terra, a despojavam, desvairados, enchendo vagonetas,
enriquecendo bandidos e negociantes. Voltariam a atravessar o rio, curvados,
tossindo tufo, esmolando as graças dos feitores…”[86]
Do
Ciclo Port Wine, selecionámos uma passagem do primeiro volume, Horizonte Cerrado, reveladora da trama
de sujeição que atinge os pequenos produtores durienses, um diálogo entre o
agente intermediário dos exportadores e um dos seus homens de mão…
“O Dr.
Freitas deu uma gargalhada.
_ Pois de
quem queria que fosse?…Nosso?!…Você tem coisas!…O lavrador é o burro e o
comércio português a albarda; mas quem vai às cavaleiras é o beef. Pois
então!…E sem risco de cair, porque o burro é manso e a albarda vai bem presa.”[87]
O povoamento da terra “...áspera, nua, seca...”,
poeticamente transfigurado no esforço e sofrimento, dos homens, na construção
da paisagem, que a poesia de José Gomes Ferreira evoca.[88]
Assim chegamos ao romance de Ferreira de Castro, A Lã e Neve, construído como um fresco
clássico, esculpido num frontão aberto sobre as naves da Estrela, de onde
emergem Os Rebanhos e a Casa dos homens. É exatamente no Pórtico que fica registado o
percurso histórico da manufatura dos lanifícios e se destaca o papel da
evolução tecnológica na transformação da natureza e das relações sociais.
A lenta transformação
da paisagem rural, pelo esforço camponês de arroteamento da terra inculta e o
esbulho desse património secular, em proveito dos novos proprietários
capitalistas, das monoculturas industriais e do mercado das rendas fundiárias,
que marca a viragem económica e social dos anos 50, de fomento do capitalismo
nos campos, encontrou a sua primeira expressão na narrativa dramática do Romance A Noite e a Madrugada, de Fernando Namora, sob o pano de fundo da
saga dos camponeses e pequenos contrabandistas da raia fronteiriça.
Todos os símbolos elementares da sua relação
patriarcal com a terra estão aqui representados: A laranjeira plantada no
quintal, que um comerciante de palavra enviara pelo caminho-de-ferro. A seara
familiar e o forno comunitário. A lenha roubada do pinhal do novo senhor e
transportada furtivamente pela mulher, dona da casa e responsável pela alimária
e pela criação doméstica. Relação patriarcal mas também anúncio do fim brutal
de um período histórico, pressentido na violência crescente que percorre o
diálogo entre o camponês e o feitor, cortado abruptamente com a morte a tiro do
cão de guarda, alegoria da morte próxima de um mundo antigo que Ti Parra
protagoniza. E se fecha no cruel assassinato do velho, enquanto liderava a
reclamação dos direitos das suas gentes, aparvalhadas e indefesas, chicoteado
até à morte quando pretendia suster o ataque dos mastins açulados pelo feitor.
Mas
este protesto dos escritores, solidários com a terra e a vida dos camponeses,
retratados como conservadores e agricultores da paisagem, atingiria um eco
nacional, num outro romance. A obra de Aquilino Ribeiro, Quando os Lobos Uivam, partindo do conflito, gerado nos anos 50,
entre a economia dos povos serranos e a florestação dos baldios para abastecer
as novas indústrias das madeiras e da celulose, procedeu a um amplo confronto
de posições, questionando os interesses em presença e colocando, no centro do
debate, o impacto no ambiente rural do modo de produção do capitalismo
contemporâneo. Assinalemos os dois momentos nucleares da confrontação. O
primeiro, na Câmara, antes da revolta. E o segundo, já no Tribunal. Basta-nos
seguir aquele para nos apercebermos da atualidade das questões.[89]
O Engenheiro Streit dos Serviços Florestais vem defender a superioridade
técnica e económica do modelo de exploração florestal monoespecífica. Na
segunda parte do seu discurso, utiliza mesmo argumentos de natureza ambientalista,
acerca dos benefícios do regime hídrico.
Responde-lhe o advogado dos serranos, Dr. Rigoberto, contrapondo-lhe, em
primeiro lugar, o valor da liberdade e do livre arbítrio das comunidades, contra
a prepotência da burocracia centralizadora e dos seus títeres e, depois, o da
racionalidade, ecologicamente sábia, do modo de produção camponês.
Neste
discurso, ressaltam duas ideias novas: A proposta do governo rompe o equilíbrio
da relação homem-ambiente; e ao provocar uma mudança global no ciclo de renovação
da natureza impede o modo de vida dos serranos de se reproduzir pondo em causa
a sua sobrevivência.
A
resposta vem brutal e estranhamente familiar aos argumentos esgrimidos nos
debates da questão ambiental:
”...O
progresso não é um ferro de engomar. Alguma coisa vai cilindrando na sua marcha.
Sempre assim foi. O comboio matou o almocreve; o automóvel está a matar o
comboio; amanhã o automóvel, será vítima do avião. Entravar a renovação do mundo
em nome de coisas que apenas têm de recomendável a poesia de que as cerca a
madureza dos nossos hábitos não é de admitir...[90]
Nada pode entravar o progresso e quem assim não
pensa é “lírico“, "louco”! Rigoberto contra ataca, não apenas com a defesa
de que o homem é o produto e o construtor sábio do meio, mas também com o
argumento das "almas", do respeito pela dimensão espiritual, ética e
moral, do ser humano. E a voz do camponês, João Rebordão, irrompe à coima do
debate, como se viesse do fundo dos tempos medievais, com o preceito moral de
que o direito à vida se sobrepõe a todos os direitos. É então que toma a
palavra Manuel Louvadeus, o emigrante regressado do Brasil e do Mundo. A traço
grosso, teoriza o que chamaríamos hoje como a defesa do biótopo serrano ou,
até, do desenvolvimento sustentável, retoma o argumento da espiritualidade e
trata a natureza como o espelho da alma, imagem das mais ricas e um dos temas
mais fecundos da metafísica do cristianismo.[91] Encerra o confronto, de um lado, o argumento da moral
cristã em favor da igualdade e do direito à revolta contra as leis antinaturais.
E, do outro, a ameaça de retaliação pelo poder. O debate alonga-se no texto e o
engenheiro Streit recorre ao argumento da rentabilidade económica, segundo a
perspectiva de desenvolvimento tão cara ao neoliberalismo. Em vão lhe opõe
Manuel Louvadeus o apelo humanista, usando o paralelo da colonização americana.
E surge o paternalismo autoritário, concluído
por uma frase lapidar:
“Coitados dos serranos, defendem as suas conveniências!
Tenho muita pena deles, mas nada posso fazer! Eu, no lugar deles, também não
sei se me conformaria! Mas o interesse geral faz o Direito”![92]
Foram talvez longas as referências analíticas desta obra. E nenhuma ainda
sobre a narrativa do julgamento, onde o confronto ideológico se prolonga e
acentua. Mas porventura suficientemente reveladoras e perturbantes: É que hoje,
sete décadas após e em plena vivência democrática, as questões em polémica
parecem ser... as mesmas!
A Casa do Homem
É nesta paisagem humanizada, nestas orlas e clareiras dos bosques, nos
vales abrigados das montanhas e estuários, que o homem português constrói (diversamente)
os seus casais.
Vamos ao seu encontro, no ambiente das vilas rurais, com Fernando Namora.
“...A vila é
uma rua. Vem do alto dos eucaliptos pedindo licença à planície para lhe
interromper o sono, uma encruzilhada de estradas por onde corre o aceno de
Espanha ou do mar e, bruscamente, num ímpeto de ousadia, trepa ao planalto, ao
encontro de uma igreja que foi coito de moiros e abades, e ali se fica,
arrogante, a desafiar o pasmo da campina. À volta da igreja, as casinhas
brancas, com altas chaminés que lhes furam o dorso atarracado, fecham-se num
reduto que a voracidade calma do trigo não consegue romper.”[93]
E é o ambiente do trabalho na terra e no mar que molda a diversidade do
homem português, como a retratam os romances de Alves Redol. Na recensão de
Joaquim Namorado sobre a obra de Redol, aquele crítico literário afirma:
“... é, sem dúvida, o mais largo fresco do homem e da vida portuguesa feito
neste século. Entre os que do Alto Alentejo e da Beira Baixa descem às lezírias
pelas mondas e ceifas, gaibéus lhes chamam, e os pescadores da Nazaré, de proas
viradas, à muralha de morte e de tragédia que os separa de uma vida melhor,
desenha-se o perfil vincado dos avieiros, que de Vieira de Leiria vão buscar ao
Tejo um pão menos salgado de sofrimento, os fangueiros da Golegã, corpos de terra
e olhos de água, os barqueiros do Douro, nos torvelinhos do rio e da vida, os
vindimadores das suas margens; ribas em que o sangue e a carne dos homens
realizam o milagre de colher o sol, os pequenos empregados, os estivadores,
toda uma enorme multidão de homens, com a sua corte de miséria e grandezas, a
massa de mil rostos em que a vida do Povo português se reflete e se exprime...”
…como nos poemas de W. Whitman.[94] E é o presencista Miguel Torga, como podia ser Vitorino
Nemésio, quem associa a imagem de Portugal ao berço.
”É mais um povo que pelos séculos dos séculos
terá de arrastar um destino próprio, a fazer milagres da pobreza do chão, das
vogais da língua, do lirismo da alma”.[95]
“Vós
virais os olhos para os matos e para o sertão? Para cá, para cá; para a cidade
é que haveis de olhar. Cuidais que só os tapuias se comem uns aos outros; muito
maior açougue é o de cá, muito mais se comem os brancos. Vedes vós todo aquele
bulir, vedes todo aquele andar, vedes aquele concorrer às praças e cruzar as
ruas? Vedes aquele subir e descer as calçadas, vedes aquele entrar e sair sem
quietação nem sossego? Pois tudo aquilo é andarem buscando os homens como hão-de
comer, e como se hão-de comer”.[96]
Há uma
linha de continuidade na reflexão político-social, mas também no plano da metalinguagem,
acerca dos valores simbólicos e dos significados dos conceitos de cidade e
mundo urbano, não apenas por oposição ao mundo rural em desaparecimento, mas
através da consciência de que a grande metrópole se torna no arquétipo de todas
as contradições da civilização moderna, especialmente através do antiquíssimo
símbolo do labirinto e das suas mitologias, antigas e modernas. Caos
labiríntico, informação labiríntica, paradoxo do progresso e esmagamento da
individualidade humana, tudo isto e muito mais a metrópole representa. Mas
também existe uma contínua reflexão filosófica que atravessa o trabalho
literário, desde o sermonário do padre António Vieira, que citámos em título,
emerge nos autores de fim de século (XX) e se desenvolve, como veremos, ao longo
de todo o período contemporâneo.
A
consciência da desordem urbana nasce já com os poetas finisseculares.
Regressemos
ao Cesário Verde, não só do Sentimento de Um Ocidental mas também do Bairro
Moderno, Cristalizações, Milady...“ A espaços, iluminam-se os
andares /E as tascas, os cafés, as tendas, os estancos.”[97]A vida insalubre dos bairros populares e dos
primitivos cortiços (ilhas) onde os fabricantes alojavam os seus operários,
dramaticamente marcada pelos sinais da desigualdade social. “E eu sonho a Cólera, imagino a Febre,/Nesta
acumulação de corpos enfezados…”[98]A paisagem urbana e os
registos de povoamento sobreposto, que na sua monotonia antinatural
deprime o ser humano. “Eu temo que me avives/Uma paixão defunta”![99]
Olhemos
de novo para a cidade de Lisboa, trinta anos depois, com Afonso Lopes Vieira. A
mesma visão trágica e condoída do destino dos camponeses desenraizados e dos
novos proletários, sobrevivendo miseravelmente nas periferias.
“…onde
rebanhos lastimosos
encharcados
em gafas,
vivem sem ar
nem luz
nos imundos
currais.”[100]
Dez
anos após, o olhar de Sophia. A mesma consciência da destruição violenta e
opressiva das relações de harmonia entre o homem e o meio natural e com a sua
própria e primordial natureza.
“
CIDADE
(…) E eu
estou em ti fechada e apenas vejo /Os muros e as paredes, e não vejo / Nem o
crescer do mar, nem o mudar das luas.”[101]
E, nova
década transcorrida, a visão de Régio: A cidade como barreira artificial entre
o ser humano e a sua condição natural. A poluição atmosférica. “O céu parece um
muro./No entanto amanheceu.”[102] Toda a vida natural silenciada no ambiente citadino,
que nos sugere o título de Rachel Carson sobre a primavera silenciosa, sem aves,
”calou-se o rouxinol…” despojadas dos seus habitats ou mortas pelos agroquímicos…
cidade sem rouxinóis, sem a música da natureza…[103]E são os versos premonitórios de José Régio, estávamos
ainda em 1954 (!), que nos conduzem ao lado negro da cidade, metassímbolo do
progresso, numa síntese admirável da crise labiríntica das urbes modernas. O tema
é de novo Lisboa, mas podia ser o da história urbana de qualquer outra grande
cidade contemporânea.
“ Nem flor;
nem flébil folha, haste de arbusto;
Nem pio de
ave, ou perpassar de inseto.
Chão! Cemitério
reto:
Só
cemitério, e abstrato e adusto”. [104]
O quadro
realista da completa destruição do coberto vegetal e das sebes contínuas das
hortas e quintas dos arredores, para dar lugar às novas urbanizações. Uma visão
crua do aprisionamento do homem num meio antinatural. A multiplicação das
formas de poluição e das agressões ambientais, das quais o homem é, afinal, a
última vítima.
“ …
Funcionam turbamultas automáticas,
Num delírio
geométrico e gelado,
Por entre o
caos regrado
Dos
caixotões de linhas áticas“.[105]
Evocação
da grande massa de cidadãos anónimos da cidade, que perdem a sua liberdade e
dignidade, empurrados para um ciclo vicioso de trabalho insane, stress e
labiríntica circulação, onde a vida rapidamente se esgota. Chegamos, quase
nessa data, aos Paraísos Artificiais, de Jorge de Sena. A mesma cidade.
Nos versos do poeta a crítica aos planos de urbanização que arrasam todas as
manifestações da vida natural e à utilização perversa das modernas
tecnologias”…Na minha terra, não há árvores nem flores./As flores, tão
escassas, dos jardins mudam ao mês,/e a Câmara tem máquinas especialíssimas
para/ [desenraizar as árvores”.[106] Mas também o acentuar de que a separação do homem da
natureza, que é uma parte da sua ligação global à terra e à paisagem
humanizada, acentua a fragilidade daqueles que na cidade têm por casa o
pardieiro que, no campo, era o abrigo…dos animais (!), imagens apenas
sugeridas, que os tempos eram de feroz censura e tão pouco os poetas estavam ao
abrigo da repressão política.[107]
E
terminamos, no lirismo amargo e na sátira de Alexandre O'Neill, cidadão da
Lisboa atual. “…Dias do dia-a-dia /Comboios que trazem o sono a resmungar para
o/trabalho.” A referência aos milhões de trabalhadores que a voragem produtiva
das cidades engole e lentamente consome, operários de fábrica mas também
empregados dos serviços, condenados ao desgaste de um dia a dia burocrático e
repressivo. ”Não podias ficar nesta cadeira/onde passo o dia burocrático/o
dia-a-dia da miséria.” O fluir mecânico da vida na cidade, percecionada como
espaço concentracionário, rigorosamente vigiado e alienante.[108]
As
condições de nascimento e evolução histórica das cidades, nas suas relações com
o ambiente onde se inserem, estão concretamente presentes em inúmeras obras, a
partir das quais outros escritores fizeram antologias muito ricas e diversas.[109] Desse vasto
repositório, escolhemos um curto trecho de Vitorino Nemésio:
“As cidades
dos Açores não foram urbes traçadas a rede de arado, nem empórios crescidos em embocaduras
de rios férteis, nem aglomerados feitos em arraiais de feiras ou em grandes nós
de comunicações terrestres naturais. De nove ilhas que conta o arquipélago só
duas tiveram durante quatro séculos o timbre de cidade: a Terceira e S. Miguel.
Angra e Ponta Delgada cresceram primeiro como fixadores de populações dotadas
de maior área insular, e logo com chaves de situações geográficas mais
acessíveis e demandadas.”[110]
As cidades têm Alma e é a escrita de Miguel Torga que nos revela as
cambiantes das três grandes urbes do Portugal contemporâneo. Coimbra e o seu
ambiente mediterrâneo, que, sob o impulso de novos produtos agrícolas trazidos pela
expansão, como o milho, criou condições favoráveis à produção de excedentes
agrícolas, utilizados para erguer os monumentos renascentistas e pagar o soldo
dos artistas estrangeiros. Mas à escala da pobreza e da mediania cultural que
marcaram os primeiros séculos da nossa nacionalidade e, em regra, a conduta das
nossas classes dominantes e círculos do poder: com a expulsão dos judeus, a
perseguição dos árabes, cristãos novos e estrangeirados e o mau governo das
especiarias, do ouro e dos diamantes, deixando-nos quase sempre afastados ou em
atraso face às grandes revoluções científicas, culturais, económicas e sociais
da Europa.[111]
“…Nenhuma
outra cidade como Coimbra testemunha tão completamente, na sua pobreza arquitetónica,
na sua graça feita de remendos e pitoresco, nos seus recantos sujos e secretos,
os limites da nossa capacidade criadora, a solidão da nossa alma, e o jeito
camponês com que nascemos para tirar efeitos cénicos do próprio gesto de erguer
uma videira…”[112]
O Porto, metaforicamente reduzido às duas faces da natureza humana, a
imagem terrosa da nossa condição animal, capaz de tudo para sobreviver, mesmo
de ingerir o mais repugnante manjar (as tripas) e o seu lado solar, que
produziu a mais perfeita alquimia do engenho humano: o envelhecimento do “vinho
fino” do Douro, que contém as cores das pedras preciosas, os aromas das
madeiras nobres e das flores, o gosto dos frutos silvestres e das especiarias.
No plano social, a miséria degradante das ilhas operárias e os gestos
heróicos da emancipação popular.[113] E, finalmente...Lisboa. Nascida do seu ambiente
estuarino e estratificada por todos os grandes ciclos da história social que
mudaram a sua paisagem e a terra portuguesa.
”…Narcisos
que fomos também um dia, esperava-nos um destino igual ao do filho de Céfiso.
Lisboa é essa flor em que o destino nos transformou; o Tejo, o rio onde nos
perdemos a contemplar a própria imagem…”[114]
Como
monumento de ironia ao consumidor padrão e ao efémero retorno ao campo do homem
urbano, em excursão de fim-de-semana, escreveu Alexandre O'Neill um dos seus
últimos poemas com endereço: “A UMA OLIVEIRA (…)/Ao som bárbaro de um rádio de
pilhas,/desdobram toalhas/na tua sombra rala.”[115] Extremamente
curiosa é a reflexão que Raul Proença desenvolve sobre o turismo e o lazer.
Passemos além da sua notável descrição das regiões pitorescas e curiosidades
monumentais, nas quais capta a diversidade da paisagem e da sua humanização.[116] Registemos a visão otimista que marca a época, onde
os veículos eram escassos e circulavam à média de 40 km/h, no que respeita aos
transportes motorizados, como grandes impulsionadores das viagens turísticas.
Mas o que nos merece maior atenção é a sua perspectiva acerca do usufruto do
céu e da praia, que, como veremos, se articula numa visão ambientalista do
turismo, mesmo do turismo para as grandes massas. Antecipando a ideia chave das
primeiras campanhas publicitárias do turismo, na década de 60, coloca em vez do
“sol“ a luz do céu e descreve-o como“… «profundo, lustroso, azul de safira,
de que só Portugal parece ter conservado o segredo» …”[117] Mas onde a sua visão crítica e premonitória se manifesta
claramente, é quando analisa a “Época de Viajem”, produzindo “esclarecimentos
práticos“ que conduzem à consciência de algumas práticas irracionais e anti
ambientais que já na época marcavam a evolução do turismo e que, na atualidade,
com a rarefação da camada do ozono, ganham permanente acuidade, face aos
perigos inerentes à exposição prolongada à radiação UV. O programa alternativo
que nos propõe é o do novíssimo turismo de natureza e cultural, e, sobretudo, do
turismo que os abrange e transcende, o turismo ambiental, aquele que é suscetível
de interpretar a paisagem humanizada e contribuir para a sua conservação e
desenvolvimento sustentável. Em suma conclui:
“…Aconselhamos sem hesitar a Primavera
para o Alentejo, e a Primavera e o Outono para o Minho. Mas para as viagens no
Algarve, pronunciamo-nos decisivamente pelo Inverno…”[118]
Prossigamos.
Eduardo Prado Coelho, ao analisar o Delfim, procura estabelecer a
dimensão simbólica deste título. Retenhamos, como linha de força interpretava,
a relação de propriedade sobre a lagoa, área protegida por uma antiga tutela
senhorial cobiçada pelos negócios do turismo, cujo arauto é o Regedor e comerciante
do lugar. Se recorrermos à metodologia
analítica preconizada pelo autor, encontraremos talvez um novo círculo
interpretativo, aquele que equaciona o conflito entre a preservação da natureza
e a sua utilização pelas novas indústrias do turismo, com destaque, no caso
vertente, para o comércio e a caça massificados. Enquadra este problema a visão
do tempo atual protagonizada pelo engenheiro proprietário-herdeiro da lagoa.“
«Positivamente», disse-me uma vez Tomás Manuel. «Cada tempo tem um preço.»
Via as florestas trituradas pelas fábricas de celulose (ele próprio trabalhava
numa, e que remédio); via a caça a desaparecer («não tarda muito, só nos restam
perdizes de aviário e coelhos enlatados», ameaçava); nas vilas do interior
surgiam snack-bars («manjedouras», chamava-lhes ele) onde o sincero e
palpável linho ia sendo substituído por guardanapos de papel («papel higiénico
para limpar o olho da boca»); via na Gafeira os filhos dos emigrantes passeando
transistors «garrafões de música») - via isto e não criava ilusões…”[119]
E a perspectiva do autor, que se assume também como testemunha de um tempo
de trágica transição. O advento no
nosso país de um modelo de desenvolvimento turístico insustentável, que a ironia
de Cardoso Pires fustiga, completado
pelo quadro simbólico e infernal do massacre das aves.[120] Fechando os círculos interpretativos: o acesso livre à
Lagoa como arquétipo da desvinculação da propriedade do Antigo Regime e a sua
transformação em mercadoria de compra e venda, num contexto sociopolítico que
anacronicamente a conservou até à atualidade.[121]
Passemos a Ruy Belo. É a saudade da infância vivida em contacto com a
natureza despoluída, um tempo ainda não detergente, na aldeia simbolizada pela
torre do relógio e pelo espaço do pátio, entre a andorinha e a nespereira e a
nostalgia de um presente envolto na angústia de amores e rostos familiares que
passam sem deixar marca na cidade solidão e morrem novos num país
opressivo, quem dão o mote e justificam o sentido do seu poema Odeio Este tempo Detergente.[122] Vejamos os primeiros versos. “(…)um tempo português
que até utilizou/os primeiros acordes da quinta sinfonia de Beethoven/como
indicativo da voz do ocidente…”[123] No início, a alusão direta à propaganda política que
não tinha escrúpulo em manipular obras e autores ao serviço dos seus fins. No
segundo grupo de versos, um jogo conotativo de alegorias que nos evocam a utilização
publicitária da imagem da mulher e a subversão do objecto cultural pela sua mercantilização.“
(…) De uma poesia que discreta até se erótica antigamente/hoje se prostitui
numa publicidade…”[124] Avancemos, finalmente, para o meio do poema, retrato
de um país oprimido e sem horizontes. “ (…) maneira triste de ser ibérica
onde/da terra emerge o homem que depois o rosto nela imerge…”[125] Deste modo, a massificação consumista e a agressão
publicitária começam nos anos 60 a ser percecionados pelos antigos e novos
escritores, merecendo de Fernando Namora um livro de retorno à poesia, com o
título sugestivo de Marketing. E aquela perceção assume desde logo uma
consciência de que o consumismo vinha trazer novos e graves problemas éticos.
No início da década, e tendo Paris
como lugar de nascimento do poema, escrevia José Fernandes Fafe.
“ Réplica Ao Epigrama de Schiller
«Dignidade do
Homem»
O EPIGRAMA
Não me falem mais disso, por favor!
Dai-lhe de comer, dai-lhe
onde morar, dai-lhe de vestir
_ e a dignidade, essa, virá por si.
A RÉPLICA
Deram-lhe de comer
(As grandes telas fauves das charcuteries!
)
Deram-lhe onde morar
( E não só onde morar:
televisões e frigoríficos… )
Deram-lhe de vestir
(Os nylons, as peliças, a
indiferença…)
E a dignidade, essa,
continua habitando
os que lutam por ela.”[126]
As crónicas de Maria Judite de Carvalho colocam-nos face a face com a
engrenagem consumista onde em vão nos debatemos. A urbanização já não é apenas antinatural,
mas espaço concentracionário: ”Era um tempo de …água fresca (não gelada), nesga
de terra que às vezes era nossa. Aqui, agora, não possuímos nada. Tudo é
alugado a alguém ou pago a prestações”.[127] E é Miguel Torga, testemunha crítica dos excessos
turísticos da década de 80, quem escreve no seu Diário de 28 de Agosto de 1980,
que a Madeira que ele ama é aquela:” Que se não deixou corromper por nenhum
turismo, que se mantém ciclópica, abissal, rebeldemente estéril e inacessível. “Veremos
mais adiante como a crítica ao consumismo alienante atinge a sua plena
expressão na obra de Armando Silva Carvalho.[128]
Vimos emergir no início dos anos quarenta um conjunto de obras que
defendiam o mundo rural, na sua ancestral biodiversidade, das destruições
provocadas pelo avanço do capitalismo nos campos. Num romance contemporâneo, A Nau de Quixibá, de Alexandre Pinheiro
Torres, um dos personagens antecipa igualmente a emergência da segunda vaga de
plantações monoespecíficas, que nos anos 80 atingiu a paisagem portuguesa,
deixando-nos uma curiosa observação acerca do modo como evoluiu a nossa
floresta endógena.
“...olhou a nossa nau…Imagina: uma
madeira escolhida só de árvores centenárias.[129]
Como um vinho amadurecido no casco. Não temos em Portugal carvalhos que se
comparem. Os alvarinhos e azinheiros que havia em terras da nossa família em
Braga só davam bolotada. Há ainda a carrasqueira das Beiras e raríssimos robles.
Um cercal aqui e acolá, e pronto!, é tudo. Estamos no século das velocidades:
eucaliptos. Se ninguém tem paciência para um sardão muito menos para um
robledo. Diz-me se sabes onde encontrar hoje no nosso país um bom carvalho de
Riga. Diz-me o que é feito do pinho de Alcácer, da madeira de cerne, que não há
água que apodreça…”[130]
A desflorestação das florestas tropicais e consequente desertificação, no
Índico ou nas ilhas atlânticas constituem temas centrais de escritores luso
cabo-verdianos ou timorenses, de que evidenciaremos Manuel Lopes, Baltazar
Lopes e Rui Cinnatti. Deste último autor selecionámos um longo extrato de Notas Aproximativas ao livro Paisagens Timorenses Com Vultos, pelo
que representa enquanto testemunho cívico e científico, escritas para comentar
o poema Parâmetro Ecológico.[131] Vejamos
primeiro um curto excerto do poema.
(…)
“Onde passei
havia florestas
há tantos
anos…
Hoje, a
paisagem é um deserto
de caules
nus.”[132]
E agora o comentário, começando pela referência à arvore que surge, simbolicamente,
nos versos.…
”A
podocarpácea mencionada corresponde à espécie Podocarpus imbricata BI.,
Ai-Amal, em tétum. Encontrei-a pela primeira vez em 1947 nas vertentes do monte
Boicau, sobre elevado a 2100 m, na
cordilheira de Matebian, e, pouco mais tarde, no Mundo Perdido, a 1500 m. É
dominante na floresta de chuva da montanha constituída por razoável acervo de
fanerogâmicas (dicotiledóneas, principalmente) e de criptogâmicas (fetos
arbóreos, licopódios, musgos, líquenes e fungos), mas aparece, por vezes, sob a
forma gregária, em povoamentos quase puros…”[133]
Para concluir com o comentário crítico, do qual transcrevemos a nota
inicial denominada
“PARÂMETRO
ECOLÓGICO. Assunto que não poucas vezes tenho anunciado, debatido, proclamado e
insistido, com persistência esclarecida e esclarecedora, que só encontra
resistência na ignorância e/ou inépcia de quantos, com uma honrosa exceção e
outros quase, governaram Timor desde 1916 até à data, ou, de Lisboa, lhes marcaram
diretrizes. E nem a visão objetiva de um Timor destruído cobra razão sobre a
cegueira do interesse, do imediatismo e do «passados quatro ou oito anos, os
Timorenses que morram à fome, pois eu já não estarei cá para os ver morrer.» A
verdade é que ainda não me cansei de proclamar publicamente que em Timor A
ÁRVORE É GARANTIA DO PÃO”.[134]
O trágico resultado da desflorestação nas ilhas de Cabo Verde, agravado
pelo regime de ventos secos de nordeste que varrem a monção para o mar,
encontra expressão dramática nos Flagelados
do Vento Leste como se fora o tríptico de um impressionante retábulo, consagrado
ao sofrimento do homem e da terra:
“Não há tempo para aquelas chuvas
mansas, penetrantes, cujas águas se entranham profundamente na terra e aí se conservam
por longo tempo, e se acumulam no interior das montanhas, enfartam os depósitos
de subsolo…As precipitações são violentas, a chuva cai às bátegas, são baldes
que os anjos despejam à pressa…as enxurradas abrem fendas, arrastam a terra
vermelha nas vertentes, as ribeiras derramam no oceano o sangue rico da terra.
Dos desmoronamentos só ossos ficam nos caminhos; o resto é devorado pelo mar,
que envolve as ilhas de larga faixa cor de barro, como sinal derradeiro de uma
carnificina sangrenta. O lento naufrágio da carne viva das ilhas é o preço da
generosidade do Céu…”[135]
Mas
voltemos a Alexandre Pinheiro Torres e à Nau para exemplificar também a exaltação
emocional (“…injetar a natureza dentro de mim”) da biodiversidade das florestas
tropicais, que o autor nos oferece em quadros impressionistas, com o recurso
abundante a metáforas sinestésicas e saborosas onomatopeias:
“…Havia
um aroma intenso de baunilha no ar e enormes licopódios oscilavam lentos como
ondas de rebentação…”[136];“…A
cegonha faz carque…o cortiçol faz colquiveine…”[137];”…as árvores entram-nos dentro de
casa por meio dos sons das aves que nelas poisam…”[138]
Página: 88
Os poemas do livro Paisagens Timorenses com Vultos remontam a 1947 e estendem-se por três décadas, até 1972, sendo as Notas datadas de 1973. Que estranho sortilégio tornou possível, quase simultaneamente e há mais de 50 anos, que dois poetas de língua portuguesa, Sebastião da Gama (o poeta da Arrábida) e Rui Cinatti (o poeta de Timor), erguessem em uníssono a sua voz em defesa da floresta mediterrânea e das florestas tropicais de chuva, num mundo de governantes cegos? [139]
Os poemas do livro Paisagens Timorenses com Vultos remontam a 1947 e estendem-se por três décadas, até 1972, sendo as Notas datadas de 1973. Que estranho sortilégio tornou possível, quase simultaneamente e há mais de 50 anos, que dois poetas de língua portuguesa, Sebastião da Gama (o poeta da Arrábida) e Rui Cinatti (o poeta de Timor), erguessem em uníssono a sua voz em defesa da floresta mediterrânea e das florestas tropicais de chuva, num mundo de governantes cegos? [139]
O tempo é a 4ª dimensão do ser humano, que nele vive numa tripla
perspectiva: passado, presente e futuro. E, simultaneamente, desenrola o tempo
em três planos da vida: Interior, um tempo biológico. Exterior, um tempo astral.
E um tempo Histórico. As ciências médicas modernas concluíram que não há nenhuma
doença chamada envelhecimento, mas sim lesões residuais que se inscrevem num
programa genético potencialmente de maior ou menor longevidade. Já não faz
qualquer sentido dividir a vida por períodos fixos. Acresce que o cérebro
humano, cortical, mas também reptilínio e límbio como os animais, é a última
parte a envelhecer e dele depende o envelhecimento orgânico, tal como a vitória
da razão sobre a emoção e o instinto, ou, se quisermos, a sua harmonia
superior.
O envelhecimento é uma realidade
biológica, mas a velhice uma realidade humana e social. O envelhecimento
potencial depende de fatores genéticos e ecológicos, que podem estender a
existência humana a parâmetros entre os 115 e os 150 anos. Como o abutre. Três
vezes a idade do chimpanzé. Um pouco menos que a tartaruga.
O envelhecimento diferencial revela-nos a mulher como mais resistente que o
homem, porque possuidora de maior carga cromossomática e menos desgastada pelas
agressões ambientais. Ensina-nos também que no mesmo corpo humano os órgãos têm
diferentes idades e um coração juvenil pode bater nas arcadas centenárias dos
aldeões dos Cárpatos.
O envelhecimento médio depende, sobretudo, de fatores sociopolíticos: O Norte
vive mais que o Sul. A cidade que o campo. O trabalhador de colarinho branco mais
que o operário…
Então, o envelhecimento não é uma patologia, mas uma maior vulnerabilidade
às enfermidades e uma acumulação estatística de lesões patológicas residuais,
que progridem com o tempo e a usura, e que são consequências das doenças e
agressões da civilização.
E a velhice é uma realidade humana e um estatuto social. Marcado, na
cultura ocidental, pela desparticipação social, estigmatizado pelo afastamento
do trabalho, pelos preconceitos para com a 4ª idade, traduzidos nas ideias feitas de que os velhos são
naturalmente conservadores, renunciaram ao amor e à família, ao progresso e ao
prazer, à cidadania.
Sobre tudo isto escreveu, solitário, Almerindo Lessa, em textos esparsos de
ensaio científico, filosófico e poético.[140]
A estrutura do trabalho, escasso e não repartido, acompanhado por um
desemprego crónico que alastra, as construções de objetos técnicos não
ergonómicos, funcionado como barreiras arquitetónicas, o desaparecimento e
dispersão da família plurigeracional, o desenraizamento dos idosos face às suas
comunidades de origem, família e trabalho, a oferta escassa na velhice de meios
de integração na vida activa, cultural, associativa e económica, eis um quadro
problemático inseparável da necessidade de uma profunda reforma ou revolução, a
qual, diríamos agora, deve ser social … e ambiental!
Confrontemos, finalmente, um dos objetivos da Organização Mundial de Saúde
para a velhice, com as políticas sociais contemporâneas.[141]
Para que a condição destes jovens e destes velhos, que alguns de nós já fomos
ou seremos um dia, seja do conhecimento e da responsabilidade de todos,
sobretudo daqueles, diversamente felizes e protegidos, que percorremos com eles
os ciclos naturais da vida e da morte,“…que é de todos e virá!” Jorge de Sena),
os nossos escritores deixaram-nos uma extensa e terrível galeria de tipos e
quadros humanos, como testemunho do problema, na sua dimensão social e ambiental,
de inquietante atualidade.
Escolhemos quatro quadros para os representar.
A agonia de José da Cruz e Joaninha, Flagelados do Vento Leste.
A desflorestação como primeira causa da desertificação e da fome, no quadro
das economias coloniais orientadas para o lucro imediato, emerge das obras de
Rui Cinnati, de Baltazar Lopes e Manuel Lopes. Nos Flagelados do Vento Leste “,
deste último, somos testemunhas do drama da seca e do seu desenlace mortal nas
personagens do velho camponês José da Cruz e da pequena Joaninha.
“…Enroscou-se
nos ossinhos das canelas, a cabeça entre os joelhos, espiando as pedrinhas do
chão.
- Vamos, Joaninha.
Dá-me a mão. Faz um esforço... João Felícia levantou os olhos, divagou-os à
roda, como se esperasse um socorro...”[142]
A morte
de José da Cruz.
“…José da
Cruz abraçou-se ao tronco da árvore. Uma
grande nuvem negra abafou o Sol. As montanhas,
de repente, desabaram. Todas as luzes se apagaram e as trevas envolveram a
Ilha. E quando a árvore tombou e o
tronco se desfez na escuridão, José da Cruz caiu desamparado...”[143]
O operário suicida de Engrenagem
A tragédia de Gregório, oficial veterano, desempregado depois do fogo
consumir a sua oficina, recusado pelas novas indústrias, velho demais para
aguentar o maço de britador das estradas, sem recursos para pagar o
alojamento...
“…Gregório
levantou-se com lentidão, mas resoluto. Esticou a corda. Deu-lhe um nó corredio...E
de madrugada, quando os pássaros chilreavam ao regresso do sol, o corpo do
velho bamboleava ainda, pendente da corda, devagar, cada vez mais devagar...” [144]
O bando do Gineto dos Esteiros
Filhos dos homens que nunca foram meninos: João, o Gaitinhas, tocador de
realejo que queria estudar música, de corpo franzino, filho de um exilado
político, obrigado a deixar a escola, depois órfão e mendigo; Maquineta,
engenhoso criador de brinquedos e máquinas de madeira, sem lugar numa escola
que desvalorizava o trabalho manual; Malesso, pequeno jornaleiro que sonha com
touros e lavouras, afogado pelas cheias do Tejo nos barracões que serviam de
abrigo e caixão à malta assalariada; Saguí, criado ao deus-dará; Guedelhas, o
da bola de trapos; Coca, minado pelo raquitismo... e o seu chefe
”...escorraçado
e perseguido como um gineto - Gineto de nome e condição. Garoto da rua que se
perdera das ruas e não chegara a ser homem, porque fugira dos homens…”[145]
O velho emigrante, da obra homónima de Ferreira de Castro.
Manuel da Bouça, emigrante que o Brasil não enriqueceu e, no retorno
efémero à sua terra natal, esconde a sua pobreza, e parte de novo, com o
remorso das perdas irreparáveis.
“…pousou os
olhos sobre a campa da mulher, murmurando:
- Amélia…Trabalhei tantos anos, tantos!! E nem
roubando um morto arranjei dinheiro para comprar a tua cova!…” [146]
Retomemos agora a referência à obra de Dubos e Ward de 1972, que está na
base do Relatório Final da Conferência de Estocolmo sobre o Ambiente, promovida
pelas nações unidas em 1972. Nela encontramos também, a par da análise da
questão ambiental no plano da ciência, a denúncia da miséria que devasta o
mundo como “...a pior das poluições”. Ora, já vimos como os nossos escritores
se posicionam claramente contra o atraso e a opressão sociais, nas difíceis
condições do regime fascista e como eles pugnaram pelo desenvolvimento
equilibrado e sustentado, a favor dos direitos democráticos de escolarização,
cuidados de saúde e benefícios universais do progresso científico, tal como os
autores do Relatório o fizeram e, em paralelo com eles, abordaram frontalmente
as causas da sujeição dos países do Sul aos do Norte.
Os conceitos de progresso e desenvolvimento, inicialmente identificados
pela ideologia do mercado capitalista como uma e a mesma coisa, foram objeto,
desde o início do século, de uma complexa avaliação pela ciência
interdisciplinar, pela filosofia e pela literatura, assumindo uma conotação de
angústia existencial, de elogio futurista ou de confiança na sua humanização,
originando, na peculiar perspectiva ambientalista, a oposição categorial entre
crescimento e progresso, e, depois, entre desenvolvimento sustentável e
desenvolvimento insustentável. Veremos, depois de Cesário, Eça, Pascoaes e seus
contemporâneos, como evoluiu na nossa literatura aquela oposição, tomando agora
como referencia a obra de Fernando Pessoa e os seus heterónimos, a atenção centrada em Álvaro de
Campos e na sua Ode Triunfal.
O violento e brutal elogio do “progresso“ não esconde, revela, despojado de
eufemismos e de forma pungente, por dentro do próprio “discurso cínico“ do
engenheiro naval, todo o cortejo de
miséria social engendrado por um sistema irracional. Nesse plano, o texto
poético funciona como revelação, como desnudar da realidade e autodenúncia
hiperbólica dos partidários deste modelo de desenvolvimento.“...A gentalha que
anda pelos andaimes e que vai para casa/Por vielas quase irreais de estreiteza
e podridão...”[147] De facto, não é pelo deslumbramento que o engenheiro
naval escreve, mas de febre. Atentemos, por exemplo, no começo do poema.
“... A
dolorosa luz das grandes lâmpadas elétricas da fábrica
Tenho febre
e escrevo.
Escrevo
rangendo os dentes, fera para a beleza disto.
Para a beleza
disto totalmente desconhecida dos antigos...”[148]
O adjetivo dolorosa não evoca o substantivo luz, por ele qualificado, mas a
dor dos que trabalham na fábrica. É também por hipálage que podemos entender o
significado deste “Ranger de Dentes,” como reminiscência do conflito moral em
que está o poeta, “fingidor“ de engenheiro impiedoso mas homem profundamente
perturbado, febril, perante a monstruosidade social gerada por uma certa visão
do progresso. Julgo que é neste sentido que deve ser interpretada a controversa
e inovadora análise de Eduardo Lourenço acerca do “Modernismo“ de Álvaro de
Campos.“
“…o Modernismo
de Pessoa não foi e não será nunca apologia e delírio da quotidaneidade
presente e suas fulgurações, mera apologia do novo, mas consciência das insolúveis
contradições do mundo moderno e da mesma Modernidade, porventura até, rejeição
do seu próprio espírito.”[149]
Esta perspectiva afasta-se do lugar-comum da análise dos versos do Ultimatum
de Álvaro de Campos, interpretados linearmente como afins do Ultimatum
futurista às Gerações portuguesas do séc. XX, de Almada, e avaliados como
panegírico de exaltação dos avanços tecnológicos da sociedade contemporânea.
Para que não restem dúvidas, o notável ensaísta sublinha no mesmo
trabalho:“…este texto (o Ultimatum de Almada) é a antítese absoluta do
espírito que informa o Ultimatum de Álvaro de Campos…”[150] Naturalmente e, por absurdo, esta postura não faz do
heterónimo de Fernando Pessoa um apóstolo socialista. A palavra de novo a
Eduardo Lourenço.
“ Para a
Geração de 70, Portugal só podia esperar a redenção de uma catástrofe
regeneradora, de um qualquer apocalipse histórico ou sabre providencial. Para
Pessoa é puro futuro, manhã a amanhecer, vinda próxima do Encoberto, Cristo sem
cristianismo, fraternitates rosea crucis, quer dizer, invenção de uma
fraternidade de alma de que a divisão das nações e dos impérios reais, triunfo
da “Ordem,“ é a contrafação incurável e demoníaca.”[151]
Também Óscar Lopes, ao comparar o Ultimatum Futurista às Gerações
Portuguesas do séc. XX, de Almada Negreiros, com o Ultimatum de
Álvaro de Campos, traça a sua nítida diferença. Sigamos este autor: Ao
contrário e em relação com a obra homónima de Almada, “Os seus tópicos centrais
são a exaltação da guerra e de um novo patriotismo anti saudosista, antidemocrático,
baseado na concorrência técnica e vital entre os povos.”[152] Para mais adiante anotar a dissolução progressiva do Super-eu
transmutado no poeta da Noite-maternal, Noite Ísis, a Noite-Morte (Dois excertos de Odes, Passagem das Horas), enredado nos
sentimentos contrários do sado masoquismo da Ode Marítima e, na fase
final dos poemas, a partir de 1917, na frustração e no cansaço mortais.
Vale a pena percorrer os estados de alma da Ode Marítima, antes e
depois da orgia de sensações violentas e dolorosas que constituem o corpo
central do seu discurso poético. A princípio, a emoção da viagem para o
desconhecido, aventura de cada homem e nação no seu percurso de existência,
arquétipo da origem da vida…”todo o cais é uma saudade de pedra”.[153] Depois da embriaguez dos sentidos…” esgotou-se-me a
alma, ficou só um eco dentro de mim”;[154] vem a nostalgia da infância perdida: “Não poder viajar
para o passado, para aquela casa e/aquela afeição,/E ficar lá sempre, sempre
criança e sempre contente”![155] E, finalmente, o enfrentar da realidade e o elogio do
mundo novo, da poesia que a era das máquinas veio trazer para as almas e da
função ecuménica do mercado mundial:[156] “…Grandes hotéis do Infinito, oh transatlânticos
meus!/Com o cosmopolitismo perfeito e total de nunca pararem/ num ponto/E conterem todas as espécies de
trajes, de caras, de raças!”[157] Ideia singular, que “finge” desconhecer o lado negro
da civilização quotidiana, revelada pela Ode Triunfal, visão dum mundo
convenientemente ordenado pela boa consciência burguesa: ”A vida é isto”…[158] Mas a
realidade da condição humana não o é, e, quando a última ilusão, a imagem
longínqua do navio, se transforma em”…um ponto vago no horizonte (ó minha
angústia!), /ponto cada vez mais vago no horizonte…”O que fica depois da viagem
que simboliza a própria vida “…é só eu e a minha tristeza…o Nada,” como
consciência poética…”silêncio comovido da minha alma” gravado no texto pelas
imagens que persistirão da “…cidade agora cheia de sol” e do…” giro lento do
guindaste”, enquanto o meu tempo acaba…”hora real e nua.”[159] Eis o que resta depois de sublimado o paroxismo
triunfante: a angústia existencial face ao mundo moderno!
Outra foi a leitura de Walt Whitman e do seu pioneiro modernismo num poeta
como Casimiro de Brito. Dando um salto cronológico, passemos à leitura da Simulação do Homem Moderno.[160]
“The Modern Man I sing
Walt
Whitman
Ei-lo, moreno, vertical _
…. Contra o terror
palpável;
contra o bolor
envolvente.
As mãos deste homem
eu canto:
instrumentos dispersos no ofício
da morte e
da paz. Canto a imagem oblíqua
de um cordão
de homens
em sua
fecundíssima comunhão_ essa imagem,
a do homem
essencial
diante do
labirinto,
eu canto: a
terra interior fraterna
que não
descobri ainda. Acaso terei Tempo
e Mundo?”
Começámos por denominar o objeto do ensaio como O
Contributo dos Poetas e Prosadores para a Génese da Moderna Consciência
Ambientalista em Portugal e terminámos modificando o título para O
Contributo dos Poetas e Prosadores Portugueses para a Génese da Moderna
Consciência Ambiental, o seu
título atual.
Não se trata de uma alteração de pormenor sem
significado, antes o reconhecimento, sem diletantismo nacionalista, de que essa
contribuição, porventura modesta à escala planetária, tem contudo um valor
universal. Na verdade, julgo termos começado a demonstrar que muito antes da
generalidade dos políticos, dos cientistas e das próprias organizações
ambientalistas, em paralelo ou antecedendo as descobertas dos primeiros investigadores
e dos pioneiros da causa ambiental, conotados geralmente com a cultura dos
países ricos da Europa e da América, os escritores portugueses trouxeram também
eles para os seus textos a questão ambiental, dela extraindo todas as
consequências enquanto crise multilateral da nossa civilização, no plano cultural,
económico, político, social e ético.
Num mercado mundial da cultura e informação
globalizadas e monopolizadas, a dimensão cultural do nosso país e a
inexistência de um trabalho sistemático de investigação, neste domínio, constituem razões suficientes para que aquele
contributo continue a ser praticamente desconhecido. Mas a verdade é que, por
toda a parte, a par das obras de autores consagrados pelos seus trabalhos diretamente
ligados às áreas científicas e técnicas do ambiente, os simples cidadãos, as
associações ambientalistas e a opinião pública, começam a descobrir e a rever-se
na obra filosófica, política, educativa, etc., de outras personalidades, que
não partindo das ciências da Terra e da Vida, chegaram à questão ambiental por
ínvios e inesperados caminhos, que se diz serem os da própria sabedoria divina.
E nenhuma cultura pode hoje ser rotulada de menor ou
inferior. É que, se o emergir da consciência cívica ambiental depende da
promoção da educação ambiental no sistema educativo e na comunidade, do
aprofundamento da democracia participada pelos cidadãos e da abertura da
comunicação social às mensagens que transporta, a sua génese, por ser produto
de todos esses diversos e singulares contributos, não é propriedade de ninguém
em particular.
Neste contexto, tomámos como referência analítica
desta Parte II a obra de Konrad Lorenz, ao enfatizar a importância da razão e
da ética social, no seu papel de controlar o instinto animal. Evoquemos agora o
pensamento de Lévi-Strauss, assinalando, previamente, as diferentes
perspectivas sobre a relação entre natureza e cultura que os diferenciam,
situada numa linha de continuidade, para o primeiro e de rotura, na ótica do
segundo. Mas é a sua complementar contribuição para a crítica do
antropocentrismo ocidental e eurocêntrico que nos interessa aqui ressaltar, em
confronto com a visão característica dos nossos escritores.
Reconhecendo os contributos da Biologia para a
compreensão dos processos de evolução das culturas, Lévi Strauss introduz os
conceitos de árvore e de trama para visualizar a diversidade dos seus caminhos
de evolução e desmistificar os conceitos de culturas superiores e inferiores,
demonstrando que elas correspondem apenas a diferentes conceções do mundo e das
relações do homem com a natureza, que se traduzem, em muitas das culturas indígenas,
em práticas e valores que as modernas ciências do ambiente e as éticas
ambientais identificam como justas e suscetíveis de servir de paradigma para o
tratamento das doenças da nossa civilização. É da ordem desta grandeza o
contributo dos nossos escritores.[161]
A visibilidade da questão ambiental, que passou do domínio dos cientistas,
dos filósofos e criadores literários para a opinião pública, a sua peculiar visão
sistémica da paisagem humanizada, da relação homem-natureza, conduziria ao
questionar do nosso modo de produção social, das suas estruturas económicas,
sociais, políticas e ideológicas e à elevação da controvérsia filosófica ao
domínio ético. Vamos procurar seguir a nossa investigação a partir do surgimento,
à escala universal, de novos factores de crise do ambiente, nomeadamente a
poluição e a guerra, que vieram colocar em debate a questão crucial:
crescimento ou desenvolvimento sustentável? Deixaremos para o último capítulo a
reflexão sobre a nova ética ambiental, confrontando ali a obra dos nossos
escritores com os escritos ambientalistas que constituem referência
internacional.
[5] Pedro Calafate, na obra A Ideia
de Natureza no Século XVIII, assinala a existência de uma tradição secular
na cultura portuguesa de reflexão filosófica e expressão artística valorativas
da natureza, que define assim: ”A tradicional
oposição cidade/campo, que se vinha formulando desde o Renascimento, encontrara
expressões bastante felizes na nossa literatura, nomeadamente em Sá de Miranda,
sendo agora prolongada em novos contextos, pois que se intensificará, em alguns
espíritos mais sensíveis, a fadiga existencial perante uma sociedade cada vez
mais submetida ao império do artifício, da aparência, da inauticidade e da
intriga”…“Se a cidade representa, tradicionalmente, a passagem da natureza à
cultura, a cultura da cidade começara a ser entendida como responsável por uma
desnaturalização do homem, por isso que o indivíduo se distanciava,
progressivamente, dos seus ritmos
vitais.” Ob. Citada, pág. 141.
[6] Padre António
Vieira, Sermão de Santo António aos Peixes: ”Mas, para que conheçais onde
chega a vossa crueldade, considerais peixes, que também os homens se comem
vivos, assim como vós.”Pág. 34. Ramalho Ortigão, O Mar, in As Praias
de Portugal-Guia do Banhista e do Viajante.
[7]
Recreações Botânicas, pág. 27, em Obras Poéticas, Tomo IV.
[8] Citado por Fernando Catroga e Paulo Archer
de Carvalho, no manual Sociedade e Cultura Portuguesa II da Universidade Aberta, 1996. A influência do
fisiocratismo, de Adam Smith na Inglaterra a Thomas Jefferson nos EUA, do seu ideário
económico, político e filosófico, é notória no pensamento da época e também na
reflexão dos nossos liberais oitocentistas. Veja-se, sobre o tema, a obra de
Viriato Soromenho Marques, Regressar à Terra,
particularmente a síntese do pensamento político de Jefferson, no que respeita
à propriedade da terra, pág. 189.
[9]
Vejamos a obra citada: “É esta uma ideia predileta dos liberais de
1833, Herculano à cabeça. Acreditava-se que a única riqueza provém da terra
fecundada pelo trabalho e receitava-se como remédio para a penúria nacional, o arroteamento dos baldios, o
melhoramento dos processos de lavoura e o desenvolvimento das indústrias
dependentes da agricultura. ”A. José Saraiva, Para a História da Cultura em Portugal, Vol. II,
parte II, pág.
67.
[10]
Retirada do dossier pedagógico organizado pela Drª Adília Alarcão para a
Ação de Formação Contínua de Professores denominada Testemunhos Materiais da
História, em 1996, sem menção da obra citada, guardado no arquivo do CEFOP.
Conimbriga.
[15]
“I believe a leaf of grass is no less than the journey-work of the
stars,/ And the pismire is equally perfect, and a grain of sand, and the egg of
the / wren/ And the tree-road is a chef-d’oeuvre for the highest/ And the running
blackberry would adorn the parlors of the heaven,/ And the narrowest hinge in
my hand puts to scorn all machinery,/ And the crow crunching with depress’d
head surpasses any statue,/ And a mouse is miracle enough to stagger
sextillions of infidels./ I find I incorporate gneiss, coal, long–threaded moss,
fruits, grains, esculent/ roots./ And am stucco’d with quadrupeds and birds all
over,/ And have distanced what is behind me for good reasons,/ But call any
thing back again when I desire it. ”Walt Whitman, Canto de Mim Mesmo,
Edição Bilingue, pág. 77, 1855.
[16]
De ora em diante utilizaremos apenas o conceito de “paisagem”, entendido como
quadro natural humanizado pelo esforço (o trabalho) humano, entendida
filosoficamente como paisagem cultural, na interação do homem com a restante
natureza .
[17]
Frederico Nietzsche, Prefácio a Richard
Wagner, da obra O Nascimento da Tragédia, escrito em 1871, pág. 22.
[18]
Ver as obras de Aquilino Ribeiro: Andam Faunos Pelos Bosques, São Bonaboião,
Anacoreta e Mártir, Terras do Demo, Volfrâmio e Uma Luz ao Longe e a
nossa análise do romance Quando os Lobos Uivam, pps. 52 e 53.
[24]
Ibid., o poema Quase, de 1913 e da
obra Últimos Poemas, os versos Fim, 1916.
[25]
Frederico Schiller, Textos Sobre o Sublime, o Belo e o Trágico.” A
primeira lei da arte trágica era a representação da natureza sofredora. A
segunda é a representação da resistência moral ao sofrimento. ”Mas a terceira
exigência prescrevia que o herói se mostrasse como um ente civilizado”. Pág.
167.
[26] Eduardo Lourenço. Dois Fins de Século, Comunicação apresentada no XIII Encontro de
Professores Universitários Brasileiros da Literatura Portuguesa – UFRJ - Rio de Janeiro- Julho-Agosto-1990. Inserido na obra O Canto do Signo, Existência e Literatura, pps. 320 e 321.
[29] Camilo Pessanha, Clepsydra, pág. 75, versos de abertura
do poema, acompanhados da nota: Intitula-se Inscrição
em A, B, C, D.
[31]
Demarcando-se de Schopenhauer, na obra O
Nascimento da Tragédia, cita da obra Mundo
como Vontade e Representação, II, um pensamento chave schopenauriano: “
«...O que dá a tudo o que é trágico o particular impulso de elevação...é o
desabrochar do reconhecimento de que o mundo, a vida, não pode dar nenhuma
verdadeira satisfação, logo que não vale a nossa dependência: nisso
consiste o espírito trágico_ ele conduz portanto à resignação”. Ver a
obra citada de Nietzsche, pág. 16.
[32] Sobre ela escreveu Maria das Graças Moreiras de Sá:… “A Cidade e as Serras
de Eça de Queiroz é o testemunho queirosiano-embora tardio-dos malefícios do
excesso de civilização ou, talvez melhor, de uma sobrevalorização dos valores
nele implicados; a figura de Jacinto subjaz a caricatura do homem supercivilizado,
quase artificial , enclausurado no «202», autêntica torre de inventos
resultantes do progresso tecnológico do século XIX; inventos estes voltados
agora contra o seu criador, levando-o ao tédio e ao vazio irremediáveis. Só o
regresso à Natureza, que as serras simbolizam, pode fazer renascer o Homem que
existe em Jacinto. O fim da verdade da sua fórmula e da sua crença (Suma
Ciência X suma potência = suma felicidade)
não era só seu, mas de todo o final de século”. Estética da Saudade em Teixeira
de Pascoaes, pág. 24.
[37] Contos de Eça
de Queirós, Civilização, pág. 269. Este conto é, na estratégia literária
de Eça, o ensaio preparatório de A Cidade e as Serras.
[38] A primeira lista de colaboradores, incluída
no Tomo I do Guia, refere uma
vastíssima e diversa participação de escritores, museólogos, arquitetos,
professores e homens de cultura, prenunciando a moderna interdisciplinaridade e
o arco-íris ideológico que caracteriza o pensamento ambientalista. Esta linha
editorial continuará a alargar-se nos Tomos seguintes. Entre outras figuras ilustres, Raul Proença
destacou Silva Teles e Reynaldo dos Santos e nós, a título de exemplo,
registamos os escritos de Jaime Cortesão, António Sérgio, José de Figueiredo,
Teixeira de Pascoaes, Raul Brandão, Aquilino Ribeiro, Afonso Lopes Vieira…
Sant´Anna Dionísio, (que a partir de 1944 e do 3º Volume assumiu a responsabilidade de
prosseguir a publicação da obra), João Couto, Ruy Luís Gomes, Câmara Reys,
Amorim Girão, Orlando Ribeiro, Rodrigues Lapa, Ferreira de Castro, Vitorino
Nemésio…
[39] Raul Proença, Prefácio do Guia de
Portugal, Lisboa e Arredores, pag. LX, 1924. Seguiu-se-lhe o Volume II
dedicado à Estremadura, Alentejo, Algarve, de 1927. Já sobre a direcção de Sant‘Anna
Dionísio, o Volume III, 1º Tomo, a Beira
Litoral e 2º Tomo , a Beira Baixa e
Beira Alta, editado em 1944. O IV
Volume, de Entre Douro e Minho, desdobrou-se também em dois Tomos, o 1º sobre o Douro Litoral
e o 2º sobre o Minho, surgindo, posteriormente, em 1964. O Volume V,
Trás-Os-Montes e Alto Douro, aparece igualmente desdobrado, o 1º Tomo abrangendo Vila
Real, Chaves e Barroso e o 2ºTomo Lamego, Bragança e Miranda, editado em 1969.
O projecto de estender o Guia às chamadas Ilhas Atlântidas foi então definitivamente
abandonado.
[40] Da Introdução
Artística de Reynaldo dos Santos, que se orienta sobretudo para o passado
anterior ao séc. XIX, deixamos aqui esta observação do autor, pela sua
pertinência: ”Na determinação
da época dos nossos monumentos, deve ter-se presente ( pelo menos até à
Renascença ) que as formas de arte chegaram a Portugal com um atraso por vezes
superior a meio século e sobreviveram muito além do período histórico da sua
florescência no país de origem”. Ver também o Anexo 7.
[42]
Distinguimos os dois conceitos segundo a perspectiva das Ciências da Educação:
A pluridisciplinaridade corresponde aqui aos diferentes estudos da paisagem
efetuados na ótica da Geografia, das Ciências da Natureza, da História, etc.. A
interdisciplinaridade ocorre quando, na análise de um determinado fenómeno, por
exemplo, a poluição de um rio, aquele é diagnosticado, entendido, analisado e a
sua solução equacionada, através da convergência dos diversos conhecimentos
científicos aplicáveis ao seu estudo: A geomorfologia, elucida-nos das
características do seu percurso; a biologia, da sua fauna e flora peculiares; a
arqueologia e a história, da evolução das comunidades que povoaram as suas
margens; e é desta visão multifacetada que nasce a abordagem sistémica e interdisciplinar
do problema “poluição”. Na nossa literatura emergem estudos científicos pluridisciplinares
e visões integradoras da sua interdisciplinaridade, como continuaremos a
demonstrar.
[43] Guia de Portugal, Tomo I, pps. 136 e
137, de 1924, reedição da Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1991.
[46] Segundo a definição deste eminente botânico
e conhecido ambientalista, a paisagem de “bocage” é caracterizada por campos ladeados
por sebes vivas, onde dominam árvores de grande porte, insurgindo-se contra a
sua mutilação e destruição, porque constituem, em Portugal e amplas regiões do
Globo, causas da desertificação. Trata-se de um galicismo, originário do francês “bois” (bosque). Ver a
obra de Jorge Paiva, A Crise
Ambiental, Apocalipse ou Advento de Uma Nova Idade.
[48] Os socalcos, verdadeiros monumentos ao
trabalho do homem, constituem um obstáculo
ao pisoteio das reses, que os prados de lima conseguem evitar. Nas nossas montanhas,
do Minho à Madeira, em paralelo com as brandas e inverneiras (as fajãs
açorianas), as maceiras de Vila do Conde, as gândaras, as dolinas arranjadas
dos maciços calcários… constituem notáveis exemplos da ecologia da paisagem,
que fazem dos seus camponeses
verdadeiros arquitetos e conservadores da natureza humanizada pelo trabalho,
paisagem cultural.
[56] Raul Brandão, As Ilhas Desconhecidas, obra de 1924, aqui citada na edição das Obras Completas, nas pps. 140, 144 e 145, edição de 1987.
[57] Ver a obra de Robert Hainard Expansion et Nature. Une morale à
mesure de notre puissance, 1972.
[64] Óscar Lopes refere ainda:…”é o próprio texto
romanesco a encenação óbvia e aquela que as diversas leituras dela (ideológica,
metafísica , simbólica) têm glosado com maior ou menor pertinência. Em função
dessa temática, de que o autor é o primeiro comentador, se construiu, e bem, o
estatuto literário do autor de Aparição. Desse
estatuto, e ainda mais da imagem vulgarizada dele, faz parte que se considere
Vergílio Ferreira numa perspectiva ideológica, como um autor de rutura e
tentativa de superação e reformulação do ideário neorrealista; numa perspectiva
metafísica, como romancista do existencial no sentido que ao termo foi dado
pela temática chamada existencialista; e, finalmente, numa perspectiva
simbólica , como romancista de uma espécie de niilismo criador, ou talvez
melhor, de humanismo trágico ou tragédia humanista…”Ob. citada, pág. 97.
[65] Ou, como afirma Eduardo Lourenço:
“Quando Vergílio Ferreira investir a fundo no projeto consciente da sua
criação romanesca e na reflexão que lhe é consubstancial, todo esse processo de
queda do seu mundo de plenitude mítica será englobado num mais vasto processo histórico-cultural,
conhecido pela designação proposta por Nietzsche e pela cultura ocidental de morte de Deus.” Eduardo Lourenço,
O Canto e o Signo, pág. 116.
[66] Antero, citado por Fernando Catroga e Paulo
A. M. Archer de Carvalho, no Manual da
Universidade Aberta, Sociedade e Cultura Portuguesa II, 1994, pp 294 - 295, afirma que Michelet lhe ensinou
“… a ver e a amar na Natureza uma existência espontânea, uma vida
universal, e não uma sucessão de formas inertes, e a Humanidade, uma razão e
uma consciência coletivas, uma alma e não um mecanismo ou uma abstração”.
[73] Como afirma Urbano Tavares Rodrigues: “Não
há talvez em toda a literatura portuguesa quem, como Aquilino Ribeiro , sinta e exprima o campo em
todas as suas dimensões, sem cisco bucólico no olhar que lhe tolde a visão das
violências, dos medos, das ferocidades,
da terrível luta pela sobrevivência, mas sempre maravilhado ante a beleza
ardente de um arrebol ou da erva geada e do
caramelo a brilhar nos rios e nas lamas em manhã límpida e azul. Familiar dos
animais e das plantas, das amplas carvalhas, das flores subtis, dos próprios
alcantis quedos e rudes. Deslumbrado não só perante os quadros que a natureza a
todo o passo compõe, para os que sabem vê-los, mas sobretudo perante o milagre
da vida a suceder-se, a nascer, a vibrar em alta tensão ou em suave murmúrio, a
brotar da próprio morte.” Aquilino Ribeiro, Romances
Completos, A Via
Sinuosa, pág. XVIII do
Prefácio.
[74] Para o desenvolvimento do nosso tema seria igualmente
interessante abordar a literatura para jovens, mas afinal dirigida a todas as gerações,
do tipo do Romance da Raposa ou dos Bichos, de Torga, mais adiante estudados, de que são exemplo certos contos e
novelas de Alves Redol, como o Constantino,
Guardador de Rebanhos e de Sonhos e a História de Uma Sementinha.
[77] Carlos de Oliveira, na crónica
intitulada Na Floresta, escrita e reescrita entre 1966 e 1970, publicada
em O
Aprendiz de Feiticeiro, traça um largo quadro da utilização da floresta
como metáfora e símbolo, na literatura portuguesa.
[78] O seu poema Terra (1941), é considerado arquétipo da poesia neorrealista, que
terá a sua expressão no Novo Cancioneiro: Ramos de Almeida,
Políbio Gomes dos Santos, João Cochofel, Joaquim Namorado, Arquimedes Silva Santos,
Carlos de Oliveira ...
[79] Sobre este romance e os outros que
destacámos no texto, faremos incidir a nossa atenção nos próximos capítulos.
[81] Esta dependência aflora também noutras narrativas
romanescas, em torno do ciclo de recessão que acompanha sempre as monoculturas,
do cacau, na Nau de Quixibá, de
Alexandre Pinheiro Torres, da borracha, em A
Selva, de Ferreira de Castro…
[87] Alves Redol, do Ciclo Port Wine, o romance Horizonte
Cerrado, pps. 274 e 275, três
volumes publicados entre 1949-53. A este título seguiram-se Os Homens
e as Sombras e Vindima de Sangue.
[95] Miguel Torga, Portugal, pág. 10, 1950. Onde Torga usou a imagem do “berço“,
Vitorino Nemésio coloca “o ovo”, nos versos de O
Canário de Oiro, do livro O Bicho
Harmonioso, 1ª Edição de 1938.
“ Ah, ovo que
deixei, bicado e quente ,
Vazio de mim, no mar
E que ainda hoje
deve boiar, ardente.
Ilha !
E que ainda hoje
deve lá estar”!
Alegoria da
relação umbilical do Homem com as “ ilhas encantadas, “para além do Mar Tenebroso (segundo a lenda que Jaime Cortesão conta). Alegoria
que atravessa o símbolo maior dessa relação dramática, o romance Mau Tempo
no Canal, escrito por
Nemésio em 1945. Ver também o Anexo 59.
[105] Ibid.
[109] Citemos, como exemplo, as Antologias sobre Coimbra, Memórias
de Alegria e sobre o Porto, Daqui Houve Nome de Portugal, que
Eugénio de Andrade deu ao prelo, respetivamente, em 1971 e 1968, através das
Editoras Inova e Oiro
do Dia.
[110] Vitorino Nemésio,
O Primeiro Corso, VI Corisco...
[111] No seu Manifesto
Para a Ciência em Portugal, Mariano Gago
insurge-se contra a mitificação da ciência quinhentista e a favor de uma
análise rigorosa das condições sociais e culturais que impediram o desenvolvimento
em Portugal, nos séculos XVI e XVII, das atividades científicas, considerando
esta atitude como uma primeira e profilática medida indispensável à construção
de atividades científicas modernas e de qualidade. Ob. Citada, pág. 63. 1990.
Mas a investigação do problema, questão chave e decisiva para compreender o
afastamento do nosso país da revolução científica, cultural, filosófica e
política que conduziu a Europa para a Idade Moderna está ainda por concluir, e
a referência contida na obra citada, permanece, na nossa opinião, longe da
resposta.
[122] Ruy Belo, da obra Transporte do Tempo e da série Nau dos Corvos, o poema Odeio Este Tempo Detergente. Publicado em 1973.
[128] E se manifesta noutros poetas seus contemporâneos, leia-se,
por exemplo, o poema Silves 83, de Luísa Neto Jorge, Poesia, do livro A Lume, pág. 260.
[129] Romance escrito em 1957, o autor decidiu
publicá-lo apenas em 1976, certo como estava de que a censura impediria a sua
divulgação, pois se tratava de um livro que punha abertamente em questão “...a
máquina pedagógica do fascismo e do imperialismo”, segundo afirma no prefácio.
[130] Alexandre Pinheiro Torres, A Nau de
Quixibá, pág. 26.
Diversos autores ambientalistas, como o botânico Jorge R. Paiva, enfatizam a
destruição maciça dos Quercus e pinhais nacionais, por obra dos descobrimentos e expansão marítima,
usados nos cavernames, tavelados, mastreação e barricas de suprimentos, que
prosseguiu, de tal forma que no séc. XIX se atingiria a mais baixa densidade
florestal da história nacional, logo seguida de sucessivos projetos
de reflorestação, realizados, sobretudo, com
plantações monoespecíficas, onde domina o pinheiro bravo e, contemporaneamente,
o eucalipto.
[131] Charles Darwin, no Capítulo I (Santiago, Ilhas de Cabo Verde) do
seu Diário da
Viagem do Beagle (Journal
of the Voyage of the Beagle), escrito em
Junho de 1845, afirma:” Na época do descobrimento da ilha, os arredores do
porto da Praia eram sombreados por numerosas árvores, cuja destruição, ordenada
com tanta indiferença, causou aqui, como em Santa Helena e em algumas ilhas
Canárias, uma esterilidade quase absoluta.” Pena é que a recente edição deste
diário, por iniciativa da Expo 98, no que toca a
Cabo Verde, só tenha escolhido um
extrato datado de 1832, onde o notável cientista incide a sua análise sobre o
problema no fogo vulcânico e calor tórrido, perdendo-se assim aquela referência
fundamental.
[139]
Num comentário final, pedimos emprestada a Nota de
Abertura de Jorge de Sena: “…E quando a indignação e a dor ante a destruição
ecológica e civilizadora do mundo é profissional, ou cínica, ou literata, sabe
bem ler e ouvir a voz de um poeta em que ela brota de uma vivida experiência,
de um amante convívio e de uma consciência lúcida de quanto a humanidade se não
salva sem outras palavras que foram mágicas: consideração, respeito, amor.”
Ibid., do prefácio, 1973.
[140] Ver o texto do
autor citado na Bibliografia.
[141] Tomemos também como referência a definição de saúde produzida por aquela
instituição, onde a dimensão ambiental se tornou visível: “A Saúde é um estado completo de bem- estar físico, mental e social, e
não somente uma ausência de doença ou enfermidade.”
[143] Ibid., pág. 205. O tema da desflorestação aparece também em Soeiro Pereira Gomes,
respetivamente, Esteiros, da Obra
Completa, pág. 17; Engrenagem, da Obra
Completa, pág. 232 e,
ainda, Ferreira de Castro, Emigrantes, pág. 233.
[149] Eduardo Lourenço, O Labirinto da Saudade, Da Literatura como Interpretação de Portugal
(De Garrett a Fernando Pessoa), pág. 115.
[152] É ainda aquele crítico literário quem salienta: “Este heterónimo (Álvaro Campos) corresponde a duas atitudes que em
certos poemas ou passos coincidem, mas muitas vezes divergem…a do Futurismo: a
exaltação da energia, do paroxismo, da velocidade e da força em exercício, da
precipitação no sentido de um futuro social mecanizado e gizado segundo
lineamentos fascistas, belicistas, antidemocráticos. Expressão típica, a Ode
Triunfal. A segunda
atitude foi inspirada não por Marinetti, mas por Walt Whitman e apresenta
alguns traços comuns com o Unanimismo francês: trata-se do Sensacionismo,
norteado pela ânsia de sentir tudo de todas as maneiras, de incorporar no mesmo processo psíquico
individual todas as possibilidades sensoriais e afetivas da humanidade de todos
os tempos e de todas as circunstâncias…”Ibid., pág. 558.
[160] Casimiro de Brito, do livro Solidão
Imperfeita, o poema Simulação
do Homem Moderno, datado de 1958.
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