A Paisagem e a sua Literatura, na mudança de paradigma filosófico


The Landscape and its Literature, in the change of philosophical paradigm 

El Paisaje y su Literatura, en el cambio de paradigma filosófico

https://doi.org/10.47456/simbitica.v9i3.39803

Problema  3
Volume  9
Números de página  74-93
Data de publicação  2022 
Nome da Publicação  Simbiótica _ Brasil 

A Revista Simbiótica é um periódico científico internacional do Núcleo de Estudos e Pesquisas Indiciárias (NEI) e vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), em Vitória – BrasilDirecionada à comunidade acadêmica e à sociedade em geral, conta com associados de diversos campos do saber, tais como: Sociologia, Antropologia, Ciência Política, História, Psicanálise, Educação, Filosofia, Letras, Artes, Psicologia, Ciência da Religião, Comunicação, dentre outras.

António dos Santos Queirós

Orcid: https://orcid.org/0000-0002-1241-5831

Doutor em Filosofia das Ciências. Professor e investigador em Filosofia e Ética Ambientais no Centro de Filosofia da Universidade Lisboa. Foi professor e investigador visitante nas Universidades de Salamanca, Espanha, Bordéus e Sorbonne, França, e no Centro de Investigação em Educação, Wa Ching da Universidade de Hong Kong, China. E-mail: adsqueiros@gmail.com

Resumo

Este artigo parte da definição do conceito de paisagem, com fundamento na filosofia da natureza e do ambiente, e da sua particular relação com a representação da paisagem na literatura. No seu percurso investigativo, desvela a vivência estética e ética da natureza, que evolui das conceções conservacionistas para a categoria de ambiente, com as suas correlações económicas, sociais, culturais e históricas, configurada no que chamamos de “paisagens culturais”, marcadas pelo dilema “crescimento ou desenvolvimento sustentável”. E analisa o novo paradigma da natureza, onde se integra o ser humano, que emana do conceito de ambiente e se traduz na construção de uma nova estética e de uma nova ética, de uma nova filosofia ambiental, premonitoriamente representada na literatura.

 Palavras-Chave: natureza; ambiente; paisagem cultural; filosofia ambiental

Abstract

This article is based on the definition of the concept of landscape, on the perspective of philosophy of nature and the environmental philosophy, and its relationship with the representation of the landscape in literature. In its investigative pathway, it unveils the aesthetic and ethical experience of nature, which evolves from the concept of conservation  to the category of environment, with its economic, social, cultural, and historical correlations, configured in what we call "cultural landscapes", marked by the dilemma "sustainable growth or development". And then, analysis the new paradigm of nature, where the human being is integrated, which emanated from the concept of environment and drive into the construction of a new aesthetic and a new ethics, a new environmental philosophy, premonitorily represented in literature.

Keywords: nature; environment; cultural landscape; environmental philosophy

Resumen

Este artículo se fundamenta en la definición del concepto de paisaje, basado en la filosofía de la naturaleza y el medio ambiente, y su particular relación con la representación del paisaje en la literatura. En su recorrido investigativo, desvela la experiencia estética y ética de la naturaleza, que evoluciona desde las concepciones conservacionistas hasta la categoría de medio ambiente, con sus correlaciones económicas, sociales, culturales e históricas, configuradas en lo que llamamos "paisajes culturales", marcados por el dilema "crecimiento o desarrollo sostenible".  Y analiza el nuevo paradigma de la naturaleza, donde se integra el ser humano, que emana del concepto de medio ambiente y se traduce en la construcción de una nueva estética y una nueva ética, una nueva filosofía ambiental, premonitoriamente representada en la literatura.

Palabras clave: naturaleza; medio ambiente; paisaje cultural; filosofía ambiental

Nascimento e metamorfose do conceito de paisagem na literatura

O conceito de paisagem, segundo Augustin Berque, emerge na China no século IV e na Europa com o advento do renascimento (Séc. XIV), como atitude contemplativa e estética das classes dominantes.[1] Arnold Berleant, ao elaborar o conceito de “paisagem sempre em transição” enfatiza a trajetória da visão pinturesca do século XIX para a experiência multissensorial contemporânea e a expansão do conceito de paisagem (rural) às paisagens urbanas, estabelecendo, com o seu outro conceito de Negative Aesthetics, que algumas práticas humanas na paisagem, ao ofender a nossa sensibilidade estética, assumem diretamente consequências morais[2]. Mas se o distanciamento estético é atributo aristocrático, tal significa que na relação entre os camponeses e a terra não exista algo mais que a luta pela sobrevivência e até uma ética camponesa plasmada na paisagem?[3] E haverá um saber científico que sustente as éticas ambientais? Deixemos, por agora, estas questões sem resposta.

The “aesthetic engagement

Arnold Berleant substituiu o modelo kantiano, a que chama, obsoleto (2020:4), pelo conceito de “aesthetic engagement” (2020:5), que podemos traduzir aproximadamente como “envolvimento estético”, a fim de refletir a incorporação do usufrutuário (da arte) em todos os contextos ambientais The central idea in appreciation now becomes aesthetic engagement, which recognizes the unqualified participation that active appreciation requires and that  the contemporary arts increasingly demand”. (Berleant, 1970:155-168). Arnold Berleant estabelece a ligação entre a estética e a ética, através da consciência da estética negativa e do sublime negativo: “(…) At the same time, through an awareness of negative aesthetics and the negative sublime, aesthetic sensibility provides a powerful tool for criticism by recognizing the human consequences of exploitative commercial and political practices.” (Berleant, 2020:7). A estética é redescoberta em cenários envolvendo diferentes formas de relacionamento humano, tais como amizade, família e amor, e alarga-se sempre mais, até ao conceito de “estética do quotidiano”.

Da criação da natureza ao fim da natureza?

Por outro lado, a tese do fim da natureza é a tese da dominação e inteligibilidade completas da natureza, o “sociocentrismo” de que fala Catherine Larrère. Admitiu-se a ideia de uma natureza criada por Deus, natura naturans (é o primeiro momento da modernidade clássica), uma natureza-processo e depois uma natureza-objeto, natura naturata, natureza artefacto, exterior ao homem, de que ele se separou ao instrumentalizá-la. Mas, como se sublinha na sua obra de referência, os processos naturais continuam e a artificialização da natureza não é controlável pelo homem nos seus efeitos.[4].  Acresce, que a filosofia ambiental reintegrou o  ser humano na natureza, sem nenhum estatuto de domínio ou privilégio. Mas a maioria dos seus pensadores reconhecem na vida humana o ente mais complexo da evolução cósmica, que não o seu cume ou final. Com a  extinção do homo sapiens sapiens e das espécies associadas à nossa evolução, um mundo imaginário de vegetais, micróbios e insetos, improvavelmente daria de novo origem à espécie humana ou mesmo aos mamíferos.

A origem da teorização da paisagem na literatura de língua portuguesa

Cabe aqui uma referência acerca da teorização literária do conceito de paisagem em língua portuguesa, que vem acompanhada pelo premonitório reconhecimento da importância concedida à literatura como recurso e instância da consciência ambiental, dos seus valores estéticos e éticos. à portuguesa Geração de 70, já no século XIX, legou-nos essa herança. Moniz Barreto apreendeu, na sua função de crítico, o conceito sistémico da paisagem e a necessidade de a interpretar à luz de uma nova cosmovisão assente numa pluralidade científica, da estética e ética. No prefácio ao Portugal Contemporâneo, de Oliveira Martins, elabora esse conceito de uma forma sintética e clara: “Uma paisagem é um conjunto de elementos materiais coordenados de um certo modo no espaço e refletidos de um certo modo no espírito”[5] (1987:28). Distingue depois dois tipos de paisagens, a que chama descritiva e expressiva, que documenta em seguida na obra de Oliveira Martins, apresentando extratos diferentes onde elas se manifestam ou combinam, de tal modo que se umas são a “transcrição de emoções” outras traduzem “a explicação de um mecanismo”. Porque, como afirma Moniz Barreto…

 

(…) a palavra, pela sua origem provável e pela sua ligação com a paisagem, é uma expressão natural dos movimentos da alma, que a obra literária tem antes um alcance moral do que um valor plástico e ver-se-á… que o Sr. Oliveira Martins procedia na composição das suas paisagens, não como um pintor, mas como um poeta.

Como um poeta e como um geógrafo. Não só as suas paisagens são sentidas, mas ainda pensadas. Elas são para ele, não só fontes de emoção, mas resultados de forças, constituídas em sistemas naturais pela comunidade das causas que a determinam, e pela identidade de efeitos que provocam nos espíritos sobre que atuam (1987:31).

Então…

 

Leia-se na História de Portugal esta descrição do litoral alentejano. As águas estagnam ou escasseiam nos baixos, as populações definham. Ou torradas pelo árido suão que os areais ardentes não podem suavizar, e sem montanhas que obriguem os vapores do mar a condensarem-se, ou envenenadas pelos miasmas dos pauis que o sol de fogo põe numa fermentação permanente, as populações amareladas e magras definham, curvadas pelo mortífero trabalho das marinhas de sal, ou da cultura do arroz (1987:31).

 

E compare-se com as expressivas páginas sobre o terramoto de 1755:

 

E as casas erguiam-se com as paredes desabadas, os tetos abertos sobre o esqueleto dos tabiques, mostrando a nu todos os interiores funestos, nestes dias em que para muitos, Deus julgara e condenara Lisboa, como outrora fizera a Sodoma. Por isso o rouco trovão dos desabamentos se ouvia cortado pelos ais dos moribundos, e pelos gritos dos homens e mulheres, abraçados às cruzes, aos santos, às relíquias, soluçando ladainhas, ungindo moribundos (1987:29).

 

E o “justo equilíbrio” entre os dois caracteres documenta-o com esta sequência sobre a paisagem minhota:

 

A vegetação, de si mesquinha, é amesquinhada ainda pela mão dos homens; as necessidades implacáveis da população abundante produzem uma cultura que é mais hortícola que agrícola: pequeninos campos circundados por pequenos vales, orlados de carvalhos pigmeus decotados, onde se penduram os cachos das uvas verdes. No meio disto, formiga a família: o pai, a mãe, os filhos, imundos atrás duns boizinhos anões que lavram uma amostra de campo, ou puxam a miniatura de um carro (1987:32).

 

Mais diante, o autor apresentará duas ferramentas hermenêuticas, a ecologia da paisagem e a metafísica da paisagem, que considera estarem aqui já esboçadas na analítica de Moniz Barreto, e que na sua perspetiva permitem ler e entender a paisagem como uma categoria em que não é possível separar a ciência, a estética e a ética. Por agora e para melhor explicar a validade hermenêutica e a competência operativa destes conceitos, que constituem uma única e global perspetiva filosófica, recorramos à Etnografia, à Antropologia e à Geografia

Orlando Ribeiro enquadra Portugal entre o Mundo Mediterrâneo e o Atlântico, olhando a Natureza pela perspetiva das Ciências da Terra e da Vida, analisa modos de vida e a história do povoamento, caracteriza influências naturais e civilizacionais, a economia e particularmente a vida agrária, o pastoreio e as formas de povoamento, a relação entre Natureza e Tradição, o Oceano como regulador do clima e da vegetação, o espaço arcaizante da montanha, a revolução do milho e o papel da vasta orla marítima e costeira, encontra os factores de unificação do país e os seus contrastes, fundamenta divisões regionais e caracteriza três grandes quadros paisagísticos: O Norte atlântico, o Norte transmontano e o Sul.  Define, deste modo, aqueles fundamentos:

 

Uma região geográfica caracteriza-se por uma certa identidade de aspetos comuns a toda ela. Não apenas as condições gerais de clima e posição, mas ainda as particularidades da natureza e do relevo do solo, o manto vegetal e as marcas da presença humana, nos darão o sentimento de não sairmos da mesma terra[6] (1988:140).

 

Na Orientação Bibliográfica da obra Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico, Orlando Ribeiro reenvia-nos para os contributos de outros geógrafos, mas também de historiadores, etnólogos, naturalistas, agrónomos e economistas (1988:148). Ainda Orlando Ribeiro, na sua comunicação Geografia e Reflexão Filosófica, apoiando-se na Geographia de Estrabão, sublinha a sua polimatia (pluri e interdisciplinaridade).

 

Pensamos que é uma preocupação do filósofo, se de alguma outra ciência o foi, a Geografia, que agora nos propomos estudar…A polimatia (pluridisciplinaridade) que, só por si, pode conduzir ao termo este trabalho, não existe em nenhum homem que não considere simultaneamente o divino e o humano, a cujo conhecimento chamam a Filosofia (1980:188)[7].

 

Neste contexto, entende o divino como instrumento e o humano enquanto objeto da sua Filosofia (1980:188). Seguindo sempre a obra de Estrabão, o nosso geógrafo sublinha a preocupação com o conhecimento dos céus, da terra e do mar e dos seus seres, «a vida política» e a «prática do governo», «a arte de viver e a felicidade», para concluir que a Geografia como…”…ciência de observação, cuja essência consiste em «descrever e interpretar» a Terra e os homens que vivem no seu seio…conduz a uma Filosofia nascida da observação («a alma da Geografia»), da análise e da síntese da Terra e do Homem que a habita, a transforma e a ameaça degradar ou destruir (1980:189)”. Neste mesmo texto, cita Ratzel e o seu “mestre” Silva Telles, que no fim do século XIX comungavam da mesma visão profética que.. “quanto mais o homem se civiliza mais depende da natureza (1980:191)”. Ilustra então este princípio com o exemplo das dependências energéticas face aos combustíveis fósseis e ao ambiente crítico das grandes cidades, que rasoira e uniformiza à custa da perda da diversidade que é a essência da Vida e da própria evolução da Terra.

Temos assim que a perceção da moderna crise ambiental tem como uma das suas fontes de reflexão filosófica a cidade moderna e a sua relação com o mundo rural, perspetiva que também foi adotada pelos escritores da Geração de 70. Prossegue Orlando Ribeiro, a Geografia é como uma ponte lançada entre a natureza e o passado (Ritter) e, enquanto corpo científico, uma ciência de observação seletiva e descrição significativa da paisagem, que, pela sua complexidade, não se pode reduzir a modelos matemáticos computorizados e cuja metodologia, indutiva e dedutiva, apenas nos permite «tocar a verdade» (Henri Baulig). Foi assim com Humboldt, físico e naturalista, Ritter, historiador e filósofo, Troll e Lautensach, geógrafos e exploradores, Baulig e, mesmo, Birot. Assim, e com a nova visão da Terra a partir do espaço, se foi construindo a «espessura» da Geografia e se retomou a tradição da polimatia, dando origem a novos ramos da ciência, mas conservando a visão de conjunto que integra e relaciona os saberes, mas também… "…as marcas humanas da paisagem e da organização do espaço" (1980:199). E é neste ponto que Orlando Ribeiro estabelece o nível de encontro e de fecunda partilha entre Ciência e Filosofia.

 

Epistemologia, isto é saber que deriva da experiência, Gnoseologia, que parte das ideias e não dos factos, Teoria do conhecimento, em que a própria realidade pode ser posta em causa. No fundo a famosa «questão dos universais» ou relação entre o particular e o geral, que perpassa na filosofia cristã medieval e nunca será provavelmente resolvida.

Como Humboldt, Goethe ou Einstein creio firmemente na «harmonia interna do nosso mundo», lógico como condição da inteligibilidade; com Jacques Monod «no postulado de base do método científico: a saber que a natureza é objetiva e não projetiva». Sem ignorar que, por trás das claridades que a razão faz resplandecer, permanece o mistério que o pensamento filosófico pretende penetrar de maneiras por vezes contraditórias. Contemporâneos de Newton, que coroa um século de investigação sobre a estrutura do Universo inteligível, são o realismo de Locke: «Nihil est in intelectu quod prius non fuerit in sensu» em perfeita concordância com o desenvolvimento científico da época; e o idealismo de Berkeley; «não sendo sujeito cognoscente nem objeto cognoscível não pode atribuir-se à matéria nenhuma espécie de existência»; ele move-se, como em Schopenhauer, em O Mundo Como Vontade e Representação título expressivo de uma ideia que nenhum cientista (recorde-se a frase de Monod citada acima) pode aceitar." (1980:200-201, destaque nosso).

 

É este apenas tocar a verdade, estas marcas humanas na paisagem, esta parte do mistério eternamente procurado, de que fala Goethe (Conversações com Eckerman), evocado por Orlando Ribeiro[8]: “(…) de muitas coisas nunca conseguiremos aproximar-nos mais que um certo limite que a Natureza reserva sempre por detrás daquilo que nos é acessível, qualquer coisa de problemático (…)”  (1980:201-202).

É sobre o significado de “paisagem”, que não é redutível à sua ecologia científica, que construímos o duplo conceito de "ecologia da paisagem" e de "metafísica da paisagem", adiante conceptualizados.

Recorramos agora à obra de Jorge Dias, já no século XX: “Portugal, apesar dos seus 89.000 km2... oferece rara variedade de paisagens naturais e humanas paisagem não só exterior ou material, mas também paisagem espiritual que se revela em inúmeras facetas da alma das suas populações” (1961:159)[9]. É a partir deste conceito de "paisagem espiritual" que aquele antropólogo analisa o fenómeno da heterogeneidade de culturas regionais, no quadro da homogeneidade da cultura nacional, explicando-o pela história (no sentido etnológico e político), pela geografia e pela afinidade. O princípio da afinidade está ligado à tendência para conservar as formas de cultura e acompanha o homem na sua marcha pelo mundo, sendo que a sua capacidade de assimilação e sucesso é tanto maior quanto a afinidade com a antiga pátria, sendo o oposto a causa da aculturação. E conclui: "A realidade humana e geográfica que nos é dado observar é o resultado desse diálogo secular ou milenário travado entre o homem e a terra: a terra humanizada pelo esforço do homem, o homem modelado pelas exigências e limitações do telúrico” (1961:162).

O alcance desta perspetiva, para avaliar a contribuição dos intelectuais da Geração de 70 para o emergir do conceito global de Ambiente, a partir das ciências que lhe estão associadas, compreendemo-la melhor a partir da definição complementar de Jorge Dias:

 

A etnografia portuguesa procura, por um lado, analisar minuciosamente as diferentes subáreas culturais portuguesas, ou seja, as culturas regionais, e explicar a origem, formação e função dos diferentes elementos e complexos culturais, relacionando-os com o seu ambiente natural e com a sua história particular, isto é, estudando-os sob o aspeto ecológico, funcional e difusionista. Por outro lado, a etnografia portuguesa tentará a interpretação da cultura portuguesa como cultura nacional (…o resultado não é a soma de todos eles, mas um corpo novo) (1961)[10].

 

E da sua crítica ao etnocentrismo:

 

Etnocentrismo é uma atitude emocionalmente condicionada que faz considerar e julgar outras sociedades pelos critérios originados pela própria cultura. É fácil ver que esta atitude leva ao desprezo e ao ódio de todas as espécies de vida que são diferentes daquela do observador. (1961: 219)[11]

A literatura portuguesa como instância e recurso da questão ambiental

            O estudo sistemático da literatura portuguesa como instância e recurso da questão ambiental, foi objeto dos trabalhos de mestrado e doutoramento, do autor deste ensaio, no contexto de uma mais vasta reflexão filosófica, social e política, enquadrada pela categoria do ambiente.[12] Aqui e agora, porque esse trabalho heurístico é globalmente pioneiro e de longa extensão, optámos por anotar e citar apenas alguns dos testemunhos menos conhecidos (ou mesmo ignorados) da obra literária dos nossos criadores contemporâneos, em relação com a moderna questão ambiental e partilhar a sua experiência estética da natureza. Como afirma o coordenador do Guia de Portugal, obra premonitória, à escala universal, de defesa do Património Cultural e Natural, no seu prefácio: “A literatura apresenta aqui a disciplina, a convergência de esforços e a harmonia das grandes massas corais. É um uníssono coro que se ergue ao esplendor e à beleza da velha terra de Portugal” (1924). Fica então traçado um dos limites deste artigo: Tornar visíveis algumas pistas que possam conduzir à revelação dos contributos dos escritores portugueses para a génese da moderna consciência ambientalista e à redescoberta das suas obras nesta perspetiva, os quais, celebrados embora na sua dimensão artística, permanecem na sombra enquanto mentores dessa outra consciência ambiental.

Para melhor elucidar esta questão, já no terreno da filosofia, recorramos à reflexão do professor Carlos João Correia, acerca da dialética da função simbólica, que implica “… dois movimentos aparentemente contraditórios sobre a experiência do sentido, ou seja, … uma estrutura transcendental do sentido e o poder operativo e transfigurador da experiência.” E noutro ponto da sua dissertação:

 

(...) o mundo da ficção distancia-se do mundo da experiência (situação), só que essa distanciação vai permitir uma nova descrição e transfiguração da experiência. Ora, só podemos ampliar o horizonte da nossa perceção elevando-nos a um ponto mais elevado que nos permita circunscrever o espaço em que estávamos imersos. É esse, a nosso ver, o sentido eminente das grandes criações literárias da humanidade. Oferecem-nos perspetivas novas nas quais podemos observar e transformar a experiência (1994:149, sublinhado nosso).

 

Neste contexto, perguntamo-nos mesmo se a literatura portuguesa não representa, à sua escala e face ao panorama da cultura mundial, um contributo de valor global para ultrapassar os paradigmas Modernista e Pós-Modernista, ao incorporar as suas audácias técnico-compositivas e conquistas formais, mas retomando os temas clássicos da arte e da literatura, a condição e a aventura humanas sobre a terra, iluminadas atualmente pelo espectro da crise ambiental e pela estagnação dogmática de todas as ideologias (estagnação que parece morte, mas é afinal morte aparente).

Este percurso temático, ao longo do qual se revelam os contributos e as obras dos nossos escritores, pareceu-nos mais adequado para demonstrar a sua amplitude e valor premonitório, a fim de provar que tal desiderato não é a exceção, mas a regra. Vale também, num sentido inverso ao da demonstração inicial, como constatação da influência que a crise ambiental, quer disso tenham ou não consciência os escritores, exerce hoje sobre a arte literária e a cultura.

A filosofia como tal, considera possuir o seu discurso próprio, que autoidentifica  como identitário da filosofia e, portanto, distinto, sem mescla de confusão, do discorrer literário ou da análise conceptual ou psicológica. Mas, tal não significa que o discurso filosófico não possa coexistir ou atravessar o discurso literário e de outras representações artísticas, não apenas do presente, mas também do passado e certamente do futuro. A título de exemplo, situemo-lo nos versos de Francisco Sanches, no sermonário de António Vieira ou nos sonetos de Antero e, no presente, nos romances de Albert Camus ou de José Saramago, como nos belíssimos poemas filosóficos de Jorge de Sena e nos escritos de Aquilino Ribeiro, obra clássica, que não é regionalista, mas recriadora do falar, da gramática, da ética da terra e animal, que a vivência milenar dos camponeses semeou, nas paisagens culturais. Mas para que o valor da filosofia seja reconhecido, na nossa sociedade global mercantilizada, acrescentaremos áà reflexão sobre literatura e paisagem uma nota breve sobre a magnifica influência da filosofia da paisagem para o desenvolvimento e progresso da economia do património e o turismo ambiental e a sua sustentabilidade

A contribuição da Filosofia Ambiental e das suas éticas, para a conservação da paisagem[13]

Na obra The Imperative of Responsibility. In Search of an Ethics for the Technological Age, o autor, Jans Jonas, judeu alemão emigrado para o Canadá e os EUA, perante a tremenda influência da técnica moderna sobre a natureza, formulou um novo imperativo categórico para a ação do homem, mais além da máxima kantiana de conformação dos atos individuais com o princípio de uma lei universal e desenha um novo quadro ético, o qual resulta da necessidade de configurar a conduta humana nos limites que salvaguardem a continuidade da vida e a sua diversidade. Act so that the effects of your action are compatible with the permanence of genuine human life (Jonas, 1979). De acordo com este princípio ético estamos no limite do humanismo, mas não atravessámos ainda a fronteira do antropocentrismo.

Retomando as perguntas capitais que a obra de Espinosa colocou no advento da nossa modernidade: como pensar a explicação racional da existência do homem e do universo? Como adequar o pensamento filosófico à razão de ser de tudo o que existe? E como transformar a vida espiritual em plena compreensão e serena fruição da vida até ao seu limite? A Filosofia da Natureza e depois a Filosofia do Ambiente permitem construir uma nova ontologia em crítica ao antropocentrismo, uma nova epistemologia, fundada na crítica ao etnocentrismo e, na perspetiva do autor, que se afasta da visão dominante que confina a ética no plano individual, uma nova teoria ética, de valor universal e de conteúdos práticos aplicáveis a todos os domínios sociais, num percurso que vai de Espinosa a Hans Jonas..

Tal como na filosofia de Espinosa e depois nos filósofos ambientalistas, o impulso fundamental de reflexão da filosofia ambiental foi a questão ética e são os problemas morais.

O esforço para distinguir os conceitos de ética e moral, ética normativa (o que devo fazer) do conceito filosófico ou meta-ethic (qual é a natureza do bem), pode não ser simples. Se ética normativa é o que o comum das pessoas entende por “ética” e meta-ethic pode ser o que o senso comum designa por moralidade… tal sucede no quadro da visão antropocêntrica destes problemas. E, a verdade é que, no século anterior a reflexão moral se orientou para um novo centro, o ambiente.

As éticas ambientais evoluíram em dois principais ramos: o Biocentrismo, uma teoria universal sobre o valor moral intrínseco de todos os seres, que por isso exigem o nosso respeito. E o Ecocentrismo, uma ética da comunidade biótica: How Nature can be a community of which we are members, and in within which it is possible for us to conduct ourselves well. (Leopold, 1947)… mas também a deep ecology e outras variantes...A obra de referência da Ética da Terra pertence a Aldo Leopold (depois de Walt Whitman e David Thoreau), que a retira dos estudos de Darwin e dos avanços científicos da Ecologia.[14] O sentimento da necessidade de ajuda e defesa comum, desenvolvido ao longo do processo de seleção natural, gerou o conceito de comunidade, fundamento da ética. E é uma nova conceção da natureza que emerge, agora entendida como uma sociedade de plantas, animais, minerais, fluídos e gases, estreitamente ligados e interdependentes.

Caberia ao australiano Singer e ao americano Regan enfatizar os sentimentos e os direitos dos animais face à brutalidade dos processos produtivos modernos: clonagem genética, jaulas prisão, rações baseadas na carne triturada de animais mortos e saturadas de hormonas, violação sistemática dos ritmos naturais e das necessidades da vida animal, tudo isto em função do lucro máximo. Nas suas obras afirmam que os animais são sujeitos de interesse em não sofrer e também, acrescenta Regan, são sujeitos de direito, por que são sujeitos de uma experiência de vida que possui valor intrínseco. Partindo da tese de que “...alguns animais não humanos parecem ser racionais e conscientes de si, concebendo-se como seres distintos que possuem um passado e um futuro…”, propõe-nos uma ética gradualista contra o assassinato de animais, que no seu patamar superior estende aos chimpanzés, gorilas e orangotangos a mesma proteção devida aos seres humanos (1993:141)[15]. Questiona se esta restrição não deve ser alargada a todos os mamíferos, para reconhecer depois que, em face de outros animais que não são seres racionais e autoconscientes, a sua argumentação enfraquece, postulando embora que é sempre inaceitável provocar a morte prematura de biliões de animais. Sobre esta base, propõe o alargamento do conceito de “pessoa”.

A ética ambiental, na nossa visão filosófica, assenta em dois princípios_ a crítica do antropocentrismo e a crítica do etnocentrismo, procurando dar uma resposta universal aos problemas fundamentais da nossa era: a crise ambiental, social, económica e política, a ameaça representada pela guerra nuclear e pelas armas de destruição massiva…e contribuir para reformular as atividades humanas em todos os domínios; tal é o caso da paisagem, a bioética, no campo da saúde e, mais tarde, da ciência,  e da política e do turismo, que, é, afinal, um percurso entre paisagens, urbanas e rurais.

A moral, ainda no nosso modo de filosofar, é sempre uma expressão e representação determinada pelo contexto histórico e pela dominação social, o que lhe confere um caracter sectário. Necessitamos, pois, de uma teoria moral que possa ser universal, intemporal (projetada no presente e no futuro) e capaz de orientar a conduta individual, a ciência e as ideologias políticas, mas que não considere o homem como o produto final da evolução da Vida. A biodiversidade da Vida, com a Vida Humana, representa apenas o cume atual da complexa evolução do Cosmos, mas nós não sabemos se a nossa espécie, nascida na Terra, representa o elo final da evolução cosmológica. Por isso o imperativo ético de conservar a Vida e não apenas o Homem e de conservar a Vida antes do Homem, e a Terra, berço da Vida cósmica e por ora o seu único berço, devem ganhar força moral nas sociedades humanas. Sendo certo que o Homem é simultaneamente predador e criador de novos biótopos e paisagens, sendo hoje a forma mais complexa da Vida, e a sua extinção poderia bloquear a expansão da própria diversidade, pelo que, e nesta perspetiva, o Humanismo moral regressa ao centro da reflexão filosófica ambiental e da Ética Ambiental: um paradoxo que representa afinal a complexidade do devir histórico.

Para procurar uma resposta a estas questões, nasceu uma nova cosmovisão, uma nova perspetiva ética, uma teoria construída com os princípios (meta-ethic que definem a natureza do “bem”) aplicados a todas as atividades humanas (as éticas práticas, que configuram a moral social e as suas deontologias), incluindo a reflexão sobre a paisagem.

 

Paisagem cultural: Ecologia e Metafísica da Paisagem

O conceito de ambiente constitui-se e adquire uma conotação “moderna” quando deixa de significar apenas conservação da natureza e oposição da cidade ao mundo rural, enriquecendo-se com novas significações que comportam os valores conotativos do despertar social perante os perigos da industrialização e urbanização e a resposta cívica aos problemas da saúde pública e da sobrevivência da humanidade gerados pela poluição generalizada e a destruição dos recursos naturais, ainda numa perspetiva antropocêntrica.

Ele incorpora, progressivamente, uma dimensão científica plural, não só aquela que lhe empresta a Ecologia tradicional, enquanto ciência da relação dos seres com o meio, mas também um vasto leque de outros domínios científicos, a Geografia e a História quando estudam a humanização dos grandes quadros naturais, a Biologia que revela a importância da diversidade dos seres vivos, a Geologia que nos conduz ao reconhecimento das condições paleoambientais geradoras dos ciclos de extinção e expansão da biodiversidade, a Matemática quando cria modelos de avaliação e gestão dos sistemas ecológicos, a Física e a Química que intervêm na análise dos fenómenos de poluição e mudança climática…ao mesmo tempo que remete para a necessidade de avaliar o nosso modo de crescimento nos planos da ética e da moral.

Falamos de nova visão da paisagem, pluri e interdisciplinar, que é, simultaneamente, um instrumento operativo da sua hermenêutica e uma categoria do domínio da Filosofia da Natureza, designamo-la duplamente por:

 – Ecologia da paisagem (humanizada). Que compreende, na nossa definição, uma visão estrutural e sistémica englobando os grandes quadros naturais, caracterizados e diferenciados, seja pelos diversos domínios da ciência – que vão das ciências do ambiente às ciências exatas; quer a presença transformadora do homem no seu esforço de agricultor, pastor e arquiteto da paisagem. E daí, também, o concurso das ciências históricas e humanidades. De facto, e como anteriormente sublinhámos, a expansão da espécie humana por todas as regiões do globo e a sua adaptação à diversidade dos habitats mais agrestes, em paralelo com a crescente universalização e globalização da ação antrópica, originou, a partir da Idade Moderna, uma nova relação da Humanidade com a Natureza: doravante, deixarão de existir os grandes quadros naturais puros, toda a paisagem se transformará, direta ou indiretamente, pela atividade humana. Então, o conhecimento físico e científico da paisagem humanizada, engloba a ecologia da paisagem. E de ora em diante utilizaremos apenas o conceito de “paisagem”, entendido como quadro natural humanizado pelo esforço (o trabalho) humano. Recordemos, a propósito a reflexão de Francisco Caldeira Cabral sobre a paisagem humanizada, no âmbito da definição do objetivo e da missão da arquitetura paisagista:

 

(...) o seu objeto próprio é a paisagem humanizada, isto é, aquela que o homem modelou para satisfação das suas necessidades primárias. Quer isto dizer que a sua ação tem por fim o homem em toda a sua complexidade material e espiritual, para o qual procura encontrar a satisfação dos fins materiais, mas sem esquecer nunca os aspetos de ordem, de beleza e equilíbrio. Procura realizar uma síntese das aspirações humanas neste mundo, e por isso é uma arte, uma das belas-artes (Cabral, 1956: 46).

 

Mais adiante, prossegue Caldeira Cabral: “Nos países da Velha Europa nada resta da natureza intacta… Aqui a intervenção do arquiteto paisagista, que defendendo a natureza defende o homem, é não só necessária, mas imperativa” (Cabral, 1956:47). Após o que desenvolve as suas metodologias de cooperação e trabalho, pluridisciplinares e interdisciplinares, associando arte, ciência e técnica, operários e lavradores, a ecologia e a biologia com as ciências físico-matemáticas, a história e a estética, enfim, citando Tomás, «uma arte que coopera com a natureza».

Mas a interpretação da paisagem, na ótica da Filosofia da Natureza e do Ambiente, ficaria incompleta sem o recurso a um outro elemento categorial, que definimos como: metafísica da paisagem, que é do domínio da “espiritualidade”, da “alma” das coisas, das categorias, emoções e sentimentos estéticos da “beleza” e do “belo” ou do “sublime”, do “maravilhoso” e do “misterioso”, do “monumental”, do “épico” e do “trágico”.

Parece-nos adequado recorrer ao conceito de metafísica associado à paisagem, quer pela génese da sua origem quer pela sua plurissignificação na história da filosofia. Os escritos de Aristóteles foram ordenados e coligidos primeiro pela Física e depois pelos “tratados depois dos tratados físicos”, critério igualmente utilizado pelos escolásticos que usaram a expressão transphysica. Assim procedeu, em Roma, cerca de 70 a. C. Andrónico de Rodes.

O conceito de metafísica surge no contexto do estudo da ontologia e da epistemologia, questionando os problemas últimos do Ser e da Realidade e a sua relação com o conhecimento humano. Através da metafísica da paisagem procuramos detetar os princípios permanentes dos entes, na sua relação com o conhecimento humano. Mesmo que de uma forma fragmentada é essa preocupação que se encontra latente em muitos dos autores da Geração de 70, apenas parcialmente evocados. À sua maneira, na representação da paisagem deram-nos testemunho de uma mais ampla visão do mundo. Uma visão que não se restringe às questões do conhecimento, da verdade do discurso, e do discurso como veículo da verdade. A metafísica da paisagem permite-nos efetuar também a passagem do ensaio e do texto poético para as artes plásticas, em particular a pintura. O usufruto da paisagem pode assim ser mediatizado pela arte literária e pelas belas-artes, mas também pela nova galáxia de comunicação multimédia.

Para o leitor menos familiarizado com estes conceitos, vamos procurar defini-los de forma sintética e ilustrá-los, sem deixar de referir que o seu debate prossegue desde sobretudo o século XVIII, conduzindo, por exemplo, no que ao belo naturalizado respeita, aos jardins franceses geometricamente projetados ou aos jardins românticos ingleses, onde predomina o arranjo da natureza em recantos, arboretos e tufos dispersos. Do conceito do ‘belo’ na paisagem, queremos entender a visão da harmonia de cores e de formas, do seu equilíbrio na diversidade, da ausência de agressões visíveis ao seu património natural e cultural, dos cheiros e perfumes, do movimento das copas e das searas e, portanto, valores que despertam todos os sentidos e apelam para outros valores morais.

Do ‘sublime’ na paisagem, entendemos a associação do belo com um sentimento de respeito e até de um certo receio, imposto pelo quadro paisagístico natural, ou, predominantemente natural, como seja a imponência de uma montanha coberta de neve ou a largueza da paisagem que dela se avista.

Do maravilhoso na paisagem, entendemos o belo elevado à potência, com todos ou alguns dos sentidos estimulados para uma emoção superior.

Do misterioso na paisagem, queremos representar a surpresa e o fascínio, por formas, cores e sobretudo ambientes, que não compreendemos espontaneamente.

Do monumental na paisagem, o reconhecimento da transformação da paisagem pela sua humanização através do trabalho humano, à escala do belo e com as dimensões do que chamamos monumento.

Do épico na paisagem, quando reconhecemos nesse esforço de humanização da paisagem, da sua transformação em paisagem cultural, um esforço excecional, muitas vezes secular ou milenário do homem, muitas vezes associado ao uso de animais e à criação de novos biótopos pela sua ação.

Do trágico (e do dramático), quando observamos, percorremos, sentimos, as paisagens culturais em processo de abandono ou já de total ermamento, conservando ainda os sinais da presença das comunidades humanas.

Categorias para-estéticas da paisagem

Tomando como exemplo a paisagem da Serra da Estrela, a montanha mais alta de Portugal continental, podemos nela referenciar um conjunto de categorias a que denominamos para-estéticas, com um valor moral intrínseco: “O único”, a sua Torre, cume panorâmico da Serra, coroa da neve, e configurar esse conceito como suscetível de expressar os atributos paisagísticos exclusivos de um sítio. “O singular”, a Cabeça da Velha, formas antropomórficas do granito produto da sua erosão, definindo agora o conceito como atributos bastante comuns, mas com forma identitária de um objeto paisagístico. “O autêntico”, como o dólmen de Cortiçô,  símbolo do esforço heroico dos primeiros agricultores e pastores, com os atributos conceptuais da conservação dos objetos e contextos paisagísticos originais, tais são os seus esteios de granito de vários tipos, de grão fino, mas também porfiroide, que, por não se encontrar nas redondezas, testemunha por si só o esforço épico dos seus construtores; local mágico, que parece orientado para o ciclo diurno do sol e representar simbolicamente a morte e a vida nos solstícios de Inverno e de Verão. “O genuíno e o raro”, objetos e detalhes da paisagem humanizada, que no seu processo de evolução tendem para o desaparecimento ou corrupção, aqui expresso pela figura e obra de Mateus Miragaia, o último ferreiro do Jarmelo, fabricante das tesouras de tosquia da lã da Estrela, a sua oficina e as marcas do seu trabalho em toda a paisagem rural da aldeia do Jarmelo. E diferenciá-las das Categorias para-estéticas paisagistas (sistémicas).

Enunciemos algumas dessas Categorias para-estéticas sistémicas: “O Mosaico agro-silvo-pastoril”, que constitui uma visão da paisagem, sistémica, pluri e interdisciplinar, material e espiritual, da paisagem humanizada (cultural) ou terroir, a floresta protegendo os cumes, os prados a meia encosta e no vale a horta e as terras de cultivo. “A Paisagem de Bocage”, do francês bois, uma sebe contínua. Com o bosque no alto da encosta, sebes vivas e linhas de arvoredo ligando as mantas de terra e pastagem armadas sabiamente sob as linhas de declive, sem muros de suporte. “Prados de Lima”, a água repartida finamente e como que limada em finos regatos nas veigas da ribeira, para que o pasto não seque no verão nem se queime pela geada no inverno; rega de lima mantendo o crescimento das pastagens e realizando a recarga alargada dos aquíferos. “Socalcos” monumentais, suportando o solo e recolhendo as escorrências pluviais. “O Carvalhal e a mata ripária”, conservando a agricultura tradicional, local privilegiado de observação da avifauna. “Jardins aquáticos”, cobrindo o leito dos rios e ribeiras. “Jardim de musgos”: microflora e microfauna …fungos de múltiplas cores e formas. A mais-valia paisagística e turística destas paisagens, as suas cores, musicalidade, salubridade, aromas, sabores…

Podemos identificar categorias estéticas e para-estéticas negativas, de par com as categorias estéticas positivas, num ciclo interminável de abandono e renascimento da paisagem cultural. O “feio”, o feio dos fios elétricos cruzando o horizonte visual dos monumentos, das feridas abertas nos montes pelas pedreiras e o repugnante de um eucaliptal sem outras vidas. O “desinteressante” da monotonia verde monotonal: de um pinhal. O “ofensivo”, dos inertes e restos das construções marcando as valetas e as veredas, acentuando a dimensão moral do problema. “O repugnante”, das lixeiras marcando a paisagem, do cheiro acre das celuloses em quilómetro de paisagens, das águas podres das ribeiras-esgoto, outra vez integrando o sentimento moral e estético.

 

O conceito de transcendência da paisagem

 

Podemos agora avançar para o conceito de transcendência da paisagem. Se a física da paisagem engloba tudo o que respeita à ecologia e à relação desta com outras ciências, a asserção de metafísica, traduz a cultura humana plasmada nessa paisagem, que é um lugar físico, mas também espiritual onde se sobrepõe o devir do pensamento e a multiculturalidade das nossas civilizações. Esta conceção metafísica não se opõe à realidade física da natureza, mas transcende-a, por exemplo, ao recriá-la e dar-lhe expressão e dimensão estéticas, reconhecendo-lhe o poder de gerar uma relação múltipla com o autor da obra de arte ou literatura, com o seu leitor-espectador, com o seu povoador ou simples viajante. Ou, quando funciona como referencial religioso, a paisagem como espelho da criação divina ou psicológica (afetivo), a “minha terra” no livro de Garrett (Viagens na Minha Terra).

Enfim, não nos basta falar simplesmente de ecologia e metafísica da paisagem, porque se torna necessária a vivência e a intervenção do sujeito (individual ou coletivo, comunidade etnográfica ou artista singular, ou o nosso turista) para ler, interpretar e recriar o que neste conceito se expressa nos domínios das diversas ciências e das denominadas Humanidades, e porque a própria paisagem, na sua dinâmica evolutiva e relação com o homem, representa mais do que a soma da natureza e das marcas da sua humanização cultural, possui uma terceira dimensão onde se interligam a ecologia e a metafísica, elemento categorial  que denominámos como transcendência da paisagem uma terra ignota, irredutível à análise objetiva, porque intrínseca a cada autor ou viajante, aquela que resulta da criação artística e das outras obras do espírito e da afetividade do indivíduo, da comunidade e mesmo da nação, e se expressa através da criação de objetos culturais, eruditos e populares e da própria evolução do espírito humano na sua subjetividade individual e imaginário coletivo. E é daqui que emerge a Literatura como mediadora entre a vivência pessoal da paisagem, onde peregrinamos e a comunidade humana de leitores da paisagem

 Conclusões 

A falta de rigor e confusão no uso dos conceitos de natureza e ambiente, tal como de ética e moral, mas também o carater plural das éticas contemporâneas, conduz à necessidade de conhecer e debater estas matérias no âmbito do discurso sobre a paisagem. A perspetiva da Filosofia e das Éticas Ambientais é holística, o Homem já não está no centro do conceito de valor moral, como senhor absoluto e discricionário de toda a natureza. Segundo a cosmovisão das éticas ambientais, cada atividade humana, na sua interação com a natureza de que é parte, deve subordinar-se ao respeito e conservação pela “comunidade biótica e abiótica”. Da paisagem cultural, emergem assim, novos filosofemas e valores, de crítica ao antropocentrismo e ao etnocentrismo, que configuram a passagem da Filosofia da Natureza à Filosofia do Ambiente, e as suas Ética da Terra e Ética Animal, com o alargamento do conceito de comunidade e de pessoa, e o dever moral abrangendo toda a natureza.

A paisagem não é um livro aberto. Para a sua leitura, interpretação e usufruto sustentável, propomos três novos conceitos: ecologia da paisagem, metafísica da paisagem e transcendência da paisagem, que foram apresentados e discutidos no artigo.

A hermenêutica da representação da paisagem pela literatura, de forma premonitória na literatura portuguesa, impulsionou a visão ambientalista e revelou, nas suas categorias ético-estéticas, na descoberta da sua biodiversidade e geodiversidade, e na história da sua humanização, a complexidade das paisagens, conduzindo à revalorização das Paisagens Culturais e conclamando a necessidade de mudança de paradigma civilizacional, a que podemos chamar Ecocivilização.

 

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[1] Filosofia da Paisagem, Uma Antologia. Coordenação de Adriana Veríssimo Serrão. CFUL. 2012

[2] Berleant, Arnold (2012) “Changing Landscapes”, keynote lecture at Transition Landscapes/ Paysages en Transition, International Conference, Lisboa, Portugal.

[3] O leitor interessado no tema pode reencontrar esta reflexão filosófica mais desenvolvida no artigo “Campos de Deméter: Da impossibilidade de separar a ciência, a ética e a estética na hermenêutica da paisagem”, Revista Philosophica nº 40. Departamento de Filosofia da FLUL. Págs. 69-94. 2012.

[4] Larrère, Catherine, Larrère, Raphaël. Du Bon Usage de La Nature. Aubier, Paris, 1997. Editado para português pelo Instituto Piaget.

[5] Portugal Contemporâneo, de Oliveira Martins, Prefácio de Moniz Barreto, pág. 28. Escrito no século XIX, reedição de 1987.

[6] Orlando Ribeiro, Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico, 1988.pág. 140,

[7] Orlando Ribeiro, “Geographia de Estrabão, Geografia e Reflexão Filosófica”, in Memória da Academia das Ciências de Lisboa, Classe das Ciências, Tomo XXI, Lisboa, 1980, pág. 188.

[8] A este propósito, recordemos Goethe noutra obra, a Metamorfose das Plantas: "A afinidade secreta entre as diferentes partes exteriores da planta, tais como as folhas o cálice, a corola, os estames, que se desenvolvem sucessivamente e como que a partir umas das outras…chamou-se Metamorfose das Plantas (...)” (p. 35, Tradução, Introdução, Notas e Apêndice de Maria Filomena Molder. Desta introdução, recordemos Goethe de novo: “É precisamente no cruzamento dos caminhos da arte, do saber e da ciência que a morfologia tem a sua origem (...)” (cf.«Die Absicht eigeleitet», HÁ 13, p. 55) (...) A forma é uma noção do poder alquímico e de valor liminar entre o ser e o aparecer. A natureza, a totalidade das formas, é tematizada a partir do eclodir de epifanias locais (...) «A doutrina da forma é a doutrina da transformação. A doutrina da metamorfose é a chave de todos os sinais da natureza» Aufsäte, Fragmente, Studien. Zur Morphologia», LAI , 10. p. 128) (p. 27).

[9]Jorge Dias, Estudos de Antropologia, Volume I, Tentâmen de fixação das grandes áreas culturais portuguesas, 1961, p. 159.

[10] Ver, Jorge Dias, Estudos de Antropologia, Volume I, A Etnografia como Ciência, págs. 44 e seguintes, onde se equacionam também os riscos de rotura cultural e do desaparecimento do património do mundo rural face à predominância na cultura contemporânea do elemento dinâmico, como produto da revolução técnico-científica e da comunicação, em paralelo com uma atitude de menosprezo "pelas formas de visa rústica" das elites dos países essencialmente agrícolas.

Acerca do tema afim, Campo e Cidade: O camponês e o Urbano, ver a comunicação de Manuel Viegas Guerreiro à Academia das Ciências de Lisboa, em 1980, publicada na coletânea Povo, Povos e Culturas, Portugal-Angola-Moçambique.

[11] Jorge Dias, Estudos de Antropologia, Volume I, Uma introdução histórica etnografia portuguesa, pág. 219, publicada em 1961.

[12] Consultar bibliografia.

[13] Como o tema é vasto, situemo-lo na dialética entre Cultura e Natura.

[14]  Aldo Leopold, A Sand County Almanac, 1949.

[15] Peter Singer, Ética Prática, do capítulo Tirar a Vida de Animais, 1993, pág. 141.

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