Do mestrado: A Nova Literatura e as suas Chaves de
Interpretação
“Quando
oiço «isto é um país de poetas», lembro-me logo de outra coisa que o país
também é: de romancistas”.[1]
1.
Não
constituindo objeto desta tese o estudo da cultura portuguesa e da sua
história literária, é óbvio que não pode nem quer alhear-se das suas
problemáticas.
Eduardo
Lourenço terá apreendido, primeiro que qualquer outro pensador, o advento de um
novo período cultural no nosso país, que abria caminho por entre o confronto
dualista que colocava frente a frente os intelectuais afectos ao regime
fascista, que invocavam os valores do cristianismo, versus
a oposição, largamente
influenciada pelo marxismo e pela estética neo-realista, pese embora a
importância cultural dos escritores dificilmente enquadráveis numa determinada
tendência. Os paradigmas do que denomina a “Nova Literatura” situa-os entre A Sibila
(1953), de Agustina Bessa Luís, e Rumor
Branco (1963), de Almeida Faria.
E com visível optimismo saudou a sua original
modernidade.
“Nem desinteresse pelo lá-fora cultural e
literário, nem idolatria. …a novidade é
que desta vez a ressonância é de pura superfície, a imitação quase só reduzida
a certos aspectos formais nalguns…Bessa Luís, Cardoso Pires, ou Almeida Faria”.[2]
E
definindo a sua especificidade literária: “admirável
anacronismo,”alimentando-se“…da nossa realidade mais visível…”, incomum no
contexto das literaturas contemporâneas“…cujo grande tema é a desmontagem e a
contestação ao nível mais radical, o da linguagem mesmo_ do que a literatura
foi ou quis ser”.[3]
Portugal
e Espanha, esmagados pelas ditaduras, económica e socialmente retrógradas,
respirando através da cultura os primeiros ares das novíssimas liberdades
criativas. Aprendendo a servir-se das conquistas formais, estéticas e
estruturais do modenismo e do pós-modernismo, mas continuando a escrever sobre
a terrível e heróica aventura da condição humana, num tempo universal mas
enraizado no drama da nação portuguesa.
E
prossegue Eduardo Lourenço.
“A
Nova Literatura é uma enorme parábola dessa ausência, mas como esta ausência
pode efectivamente mascarar-se sob formas aceitáveis e até fascinantes, ela é a
nossa verdadeira vida”.[4]
Passa em seguida à diferenciação da Nova Literatura,
face ao movimento neorrealista, cujo proselitismo ético, das “soluções
positivas“, questiona, e precisa o seu …”tema central (e obsessão
quase única do Ocidente na poesia e no romance) do amor, ou, mais genericamente, da relação erótica…”[5]
2.
Julgamos
que a definição deste novo contexto cultural e a sua assumida contestação das
ideologias devem ser prudentemente analisadas, porque se há substância capaz da
mais sofisticada e camaleónica metamorfose, essa é a que constitui o corpo
doutrinário das ideologias dominantes.
Mas
o valor inquestionável da reflexão de Eduardo Lourenço e a matriz da sua
notável lucidez está na forma como concebe e aplica o seu “policódigo interpretativo. "Reconheçamo-lo neste comentário paradoxal acerca da autora da Sibila .
“Pouco importa que uma leitura de sentido imediato ou o comportamento ideológico ostensivo de uma autora como Bessa- Luís assinalem a sua obra como inequivocamente reacionária. Até importa mais do que o que ela pensa. É caso para dizer que não é reacionário quem quer. A autora da Sibila pode por vezes reinviar-nos ao paraíso arcaico da «roca e do fuso», uma tal convicção, ingenuidade ou pensada e profunda provocação, são pouca coisa ao lado da descrição da desordem sentimental, da crueldade das «relações humanas», da visão demoníaca do dinheiro que das suas páginas se levanta desmentindo sem cessar a litania azul da nossa celebérrima e trágica «brandura de costumes». O que Bessa -Luís mostra, importa mais do que ela «pensa»”[6](sublinhado nosso).
Do doutoramento:
Talvez que uma
parte substancial da obra mais recente dos nossos escritores e poetas, a partir
da segunda metade do século XIX, cujo final serve de baliza ao nosso trabalho,
se possa interpretar, neste contexto, como um desafio permanente ao finito
destino individual de cada ser, através do dandismo, (e da sua dimensão
erótica), que Eça, com o seu heterónimo, Fradique Mendes, quis protagonizar, e
que reencontramos nalguma pintura de Columbano, mas também do espiritualismo e
do esforço de recriação literária e plástica tendente a abarcar toda a paisagem
natural e humanizada, objectiva e interior, onde o poeta (ou o pintor) se
transmuda nos elementos naturalizados que compõem a própria matéria poética,
como fez Antero, ou Silva Porto quando não pintou para o gosto medíocre dos
burgueses de Lisboa e Columbano, que no mais notável dos seus trabalhos, o
retrato de Antero de Quental, expressou a própria existência dramática da
Geração de 70.
Seguindo a asserção de Eduardo Lourenço, que evidenciava a náusea dos
escritores do fim do século na transição para o século XX, face ao surgimento
de uma sociedade de massas laicizada e destruidora do indivíduo e sabiamente a situa
na geografia social, conotando-a com o “espírito da época” típico dos
intelectuais das metrópoles capitalistas de Paris, Berlim e Londres, importa
reconhecer na literatura da Geração de 70, as marcas distintivas daquele fim de
século.
…/…
O pessimismo político de Eça, na fase final da sua vida, não se traduziu pela expressão de nenhum desespero metafísico ou social. Mas o modo como avalia as consequências do processo de industrialização oitocentista explica a persistência do seu ideário político e o seu apego à natureza, que levou à escrita de A Cidade e as Serras.
"…enganados pela ciência, embrulhados nas subtilezas balofas da economia política, maravilhados como crianças pelas habilidades da mecânica, durante setenta anos construímos freneticamente vapores, caminhos de ferro, máquinas, fábricas, telégrafos, uma imensa ferramenta, imaginando que por ela realizávamos a felicidade definitiva dos homens e mal antevendo que nos nossos pés, e por motivo mesmo dessa civilização utilitária, se estava criando uma massa imensa de miséria humana, e que com cada pedaço de ferro que fundíamos e capitalizávamos, íamos criar mais um pobre! No fim destes setenta anos de martelar e de forjar, havia com efeito alguns sujeitos muito gordos e muito ricos_mas havia uma multidão de famintos, mais faminta e maior que o mundo vira desde o velho patriciado romano (Jaime Cortesão, Eça de Queirós e a Questão Social). [7]
A cultura tornava–se naturalista e as Ciências da Natureza e a Biologia
destacavam-se, já naquele fim de século, como ciências globalizadoras do
conhecimento e da reflexão filosófica, vocacionadas para a investigação
interdisciplinar e para a promoção do progresso tecnocientífico, criando novas
áreas de investigação e fundamentando profundas roturas na história das ideias.
A vaga revolucionária que então se elevara, inspirada nas revoluções
burguesas e liberais que no século XVIII triunfaram na América e na França,
generalizara-se na Europa, mas com recuos contra revolucionários, bloqueios e
fracassos, que foram enfraquecendo e desanimando as convicções dos reformadores
da Geração de 70, então transformados em “Vencidos da Vida”.
Neste contexto, emergiu um ambiente intelectual de fim-de-século que Eduardo Lourenço caracteriza da seguinte forma:
“…a consciência aguda de que esses tempos eram tão originais que não podiam ainda ser vividos senão negativamente pela fuga ao que neles emergia, quer dizer, o primeiro esboço de uma sociedade de massas, cuja simples visão provocava uma espécie de náusea, ao mesmo tempo social, política e espiritual, para os que apercebiam essa emergência como o anúncio da morte do «indivíduo»”.[8]
Se o propósito dos intelectuais da Geração de 70 visava sobretudo
melhorar a condição humana e o estado da nação portuguesa, não se limitaram a
reposicionar mais modestamente o homem no contexto da natureza e da sociedade.
O antropocentrismo que emerge da sua crítica conservacionista já não é
o mesmo que legitimou a primazia do mercado mundial e das suas leis onde o sentido da vida e dignidade humanas
constitui uma externalidade irrelevante.
Em conformidade com esta
perspectiva, no plano social e do indivíduo, os seus projectos da reforma da
sociedade e da construção de novas cidadanias fizeram convergir, no seu
finalismo ético (e também dividiram nas suas singularidades) as doutrinas
religiosas e as filosofias políticas que partilharam e, cada um a seu modo,
prosseguiram de forma diversa e, às vezes, contraditória.[9]
Para atingir tais objectivos, uniram-se na afirmação da importância de
vencer a herança de menosprezo pela filosofia e pela ciência que atribuíam
à sujeição do rei, da Corte, da Igreja e
da Universidade face ao poder e ao pensamento da escolástica jesuítica, à acção
repressiva da Inquisição e ao carácter retrógrado da burguesia, que perdera os
seus elementos mais progressivos na
diáspora das comunidades judaicas, considerando que não existia outro
caminho senão o de partir da experiência e das ideias que a história nos legou,
com o seu lastro de tragédia e epopeia, de sucesso e fracasso, e adoptando uma
perspetiva onde o estudo da histórico se alonga para a Idade Média e a
Antiguidade Clássica, mas para configurar um novo presente e o futuro.[10]Foi esta a tarefa a que meteu
ombros a Geração de 70, aceitando, assim mesmo, a divergência, a pluralidade e
o confronto interno de ideias, uma constante a propósito de inúmeros temas e
problemas, sobretudo na polémica entre Antero de Quental e Oliveira Martins.
Encontramos, nas obras dos nossos escritores da Geração de 70 citados
ao longo deste trabalho, uma perspetiva que recusa os extremismos
anti-humanistas e assenta a sua ética da terra no elogio e na defesa do
agricultor como arquitecto e conservador da paisagem, empiricamente ecologista
no seu modo de produção.[11]
A cultura camponesa, muitas vezes identificada pela Geração de 70 como o “Velho Portugal”, dramatizado na escrita desde a obra de Gil Vicente, conforme refere o Conde de Ficalho, com a qual conviveram os seus escritores, conservava nas relações com a terra, os animais, a paisagem humanizada, nos costumes e no imaginário mágico e religioso, uma ética antiquíssima que a luta pela sobrevivência e o conhecimento empírico da vida moldaram contraditoriamente.[12]
…/…
Também os nossos escritores da Geração de 70 se posicionam claramente contra o atraso e a opressão sociais, pugnaram pelo desenvolvimento equilibrado e sustentado, a favor dos direitos democráticos de escolarização, cuidados de saúde e benefícios universais do progresso científico, e, neste sentido, não se identificando politicamente com o progressismo (fontismo, republicanismo) da época, se situaram, de facto, para além dele (com diversas, heterodoxas e inconsequentes propostas democráticas, socialistas, ou ecleticamente associando-lhe uma monarquia reformada), tal como os autores do Relatório o fariam, quase um século mais tarde, e, em diferente paralelo histórico, abordando, frontalmente os problemas da sujeição dos países e nações. É surpreendente, encontrar essa mesma postura política em escritores como Ramalho, que o senso comum associa a um certo conservadorismo.
"No teu grande e belo país, Jonh, quantos homens dedicados á humanidade! Newton, Shakespeare, Bacon, Adam Smith, Macauly, Buckle, Thackeray, Carlos Dickens, Lady Morgan, Carlyle, Stuart Mill. E todavia, apesar dos esforços dos teus sábios economistas, dos teus reformadores, dos teus imortais filósofos, dos teus incomparáveis romancistas, dos teus inexcedíveis poetas, quanta desgraça ainda, quanta perversão, quanta injustiça, quanta miséria: no teu exército, onde há seis mil deserções por ano; na tua marinha, onde homens livres recebem ainda os castigos dos antigos escravos; nas tuas tijolarias e nas tuas minas, onde definham sob um trabalho horrível quarenta mil crianças; nos teus workhouses onde tantas vidas se destroem; nas tuas tabernas onde a vendas do gin e dos licores espirituosos subiu, em dez anos, de novo a catorze milhões de libras; no teu Strand, finalmente, em Blackwall-rasilway, nos medonhos bairros vergonhosos de Londres e Liverpool!" [13]
Os anos oitenta do século
XX conhecerão uma outra etapa no desenvolvimento do pensamento ambientalista,
que se caracteriza pela coexistência de um arco-íris de concepções que emergem
nas expressões culturais das elites mas também das camadas sociais ditas, “de
massas”, com particular acento na juventude.
Admiráveis anacronismos,
escrita de filósofos mas também de cidadãos comuns, que parece desagregar-se
nas suas múltiplas cambiantes apocalípticas ou redentoras, vivificadoras de
velhas e novas utopias, do pequeno como ideal do equilíbrio ambiental, do
equilíbrio como símbolo do belo, isto é, da pureza moral, dos mitos
regeneradores da tecnociência ou do regresso à natureza e ao primitivo, por
vezes radical e anti-humanista, paradoxalmente próxima da profecia e do limiar
de um novo paradigma científico, que já não funda o progresso técnico e das
ciências na base das disciplinas tradicionais mas no emergir do conhecimento
científico integrador, mas capaz de empolgar renovadamente massas humanas de
milhões, a generosidade proverbial da juventude e a sensibilidade das mulheres,
depositárias de todos os mitos órficos.
Admiráveis anacronismos, formas de luta que pareciam ultrapassadas
regressando às praças, terríveis visões e moderníssimos recursos tecnológicos,
antiquíssimas procissões e rituais, tudo posto ao serviço da nova causa,
enquanto, no terreno da epistemologia, a relatividade das leis científicas é
sedimentada em torno de um eixo aberto de conhecimentos interdisciplinares que,
mutuamente, se suportam, justificam, ampliam e aprofundam, a física dos seres e
das coisas ligados pela relatividade geral e a visão quântica.
Admiráveis anacronismos, como se a espuma dos dias cristalizasse
repentinamente, na peneira empunhada por mil mãos, hábeis, frágeis, maduras e
rudes e ali depositasse o que, afinal, permanece de valioso nas nossas culturas
comuns, depois de longos anos de milenário afastamento.
O paradigma da
especialização científica e tecnológica, que fundamentava o mito do crescimento
irrestrito, sofreu sucessivos abalos e abriu brechas, por onde irromperam novas
abordagens das relações entre a natureza (mais tarde o ambiente) e o progresso,
e de onde emergiu o conceito da sustentabilidade, com um valor científico
interdisciplinar mas também uma dimensão de ética social.
Ao dizê-lo, não afirmamos que a razão ambientalista moderna
representa o triunfo da consciência comunitária e da ética da vida sobre o
indiferentismo e a barbárie dos tempos, dizemos apenas que é contra o vazio
ético, a selvajaria e a indolência sociais que ela se manifesta, recusa a
morte, o sem sentido e a noite da nossa civilização, e, ao fazê-lo, penetra
todas as esferas do pensamento humano e da(s) cultura(s), obriga mesmo à
reinterpretação dos textos mais conservadores, os livros sagrados de todas as
religiões e o modo de entender as suas doutrinas, enfim, questiona os
principais paradigmas político-ideológicos novecentistas que o marxismo e o
pensamento demo-liberal ofereceram ao
nosso tempo.
É certo que os ambientalistas não possuem corpo doutrinário estruturado e coerente, capaz de apresentar hoje um programa de sociedade alternativo e cimentar uma ideologia comum. Tão pouco é possível prever se a nebulosa das suas teses e propostas evoluirá para um corpo coerente de doutrina política e social. Mas, seguramente, todas as doutrinas e ideologias reformulam hoje princípios e grandes objetivos face à emergência da crise ambiental e de uma nova consciência cívica, fundadas nas descobertas científicas interdisciplinares, na análise dos limites do progresso tecnológico e na atividade de novos movimentos sociais.
No dealbar do século XXI, a máquina económica perdeu o seu volante
regulador: ele passou, sucessivamente, das mãos do grande industrial, para o
banqueiro, deste para o Estado, neo-liberal ou socialista, depois para
gigantescas multinacionais, e, atualmente, prevalecendo sobre as nações e os
tratados internacionais, para a nebulosa das sociedades financeiras.
A globalização tornou-se visível para todos os cidadãos mas os seus
factores de crise adquiriram uma enorme complexidade.
Eis um conjunto de questões, que englobamos no conceito de Ambiente, extremamente importantes e graves, que o progresso científico e a consciência ambientalista, no interface das disciplinas tradicionais e da reflexão ética ambiental, têm de enfrentar passo a passo.
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