Centro de Filosofia da Universidade
de Lisboa, Portugal.
In Bioética, Filosofia e Biotecnologia, Jorge Luis Gutiérrez / Sofia Valenzuela (organizadores)
Editora LiberArs, S.Paulo, Brasil, 2018. ISBN 978-85-9459-117-3. Pág.s 173-193https://www.liberars.com.br/bioetica-filosofia-e-biotecnologia
Editora LiberArs, S.Paulo, Brasil, 2018. ISBN 978-85-9459-117-3. Pág.s 173-193https://www.liberars.com.br/bioetica-filosofia-e-biotecnologia
“ O que é digno
de ser notado …é a ideia que o bem da comunidade biótica é a medida suprema do
valor moral, da correção ou incorreção da ação…”[2]
“… O verdadeiro humanismo não começa por si próprio,
devendo colocar o mundo antes da vida, a vida antes do Homem e o respeito pelos
outros antes do amor próprio…”[3]
Pode existir uma Ética Global?
Segundo Cristina Beckert
o projeto de uma Bioética Global procura integrar a Bioética Médica nos
pressupostos da Ética da Terra de Aldo Leopold.[4] Convirá pois analisar os fundamentos
da Ética da Terra, para entender o atual debate filosófico nesta matéria, não
sem antes questionar o sentido do conceito contemporâneo de Ética.
A distinção
wittgensteiniana entre a ética e a moral que é comum à generalidade das
reflexões filosóficas contemporâneas, situa a moral na ordem das normas e
convenções sociais e remete a ética para o plano da vivência pessoal. Ora se a ética emerge da
subjetividade e da diversidade dos sujeitos individuais, não tem valor
universal, o que constitui uma aporia aparentemente inultrapassável, que
compromete a hipótese de formulação de uma Bioética Global.
O autor desta reflexão
situa-se numa posição crítica face ao conceito dominante de ética e moral
wittgensteiniano. Considera que a existência de valores morais universais pode ser
reconhecido pela subjetividade de cada um e de todos os seres humanos, como o
tem vindo a ser o direito internacional, dando origem a um novo paradigma
ético, a diversas éticas práticas e novas convenções morais subordinadas a uma
bioética global.
“A moral, no nosso modo
de filosofar, é sempre uma expressão e representação determinada pelo contexto
histórico e pela dominação social, o que lhe confere um caracter sectário e
transitório. Necessitamos de uma teoria moral ( a que chamarei ética) que possa
ser universal, intemporal (projetada no
presente e no futuro) e capaz de orientar a conduta individual, a ciência e as
ideologias políticas, mas que não considere o homem como o produto final da
evolução da Vida. A crítica ao etnocentrismo e a crítica ao antropocentrismo
são os seus princípios fundadores e, com aquela afirmação, nos colocamos em
divergência com a tese dominante, que situa a moral na ordem das normas e
convenções sociais e remete a ética para o plano da vivência pessoal. Onde
outros vêm antagonismo, vislumbramos nós uma complexa dialética.”[5]
Tal como não nos
conformamos com a oposição ética individual-moral social, igualmente nos opomos
à dicotomia filosofia-ciência.
“Convirá aqui abordar o
problema da “causa das coisas” e a sua relação com o “ser”. O pré-conceito que
concede à filosofia o domínio de se questionar sobre “o que significa ser” e
atribui à ciência o domínio do estudo das “causas” fenomenológicas, pode
reconduzir-nos ao velho mecanicismo e a uma espécie de nova escolástica. Onde
aquela conceção, assim pré-determinada, encontra sobretudo oposição, n´s
vislumbramos uma relação dialética. [6]
Clarifiquemos os conceitos: a crítica
ao etnocentrismo tem como postulado:
"Etnocentrismo é uma
atitude emocionalmente condicionada que faz considerar e julgar outras
sociedades pelos critérios originados pela própria cultura. É fácil ver que
esta atitude leva ao desprezo e ao ódio de todas as espécies de vida que são
diferentes daquela do observador.” [7]
A crítica ao
etnocentrismo conduz não só ao respeito por todas as culturas nacionais, e por
todas as formas de expressão cultural, eruditas ou populares, mas também
rejeita qualquer noção de superioridade de um modelo social, de “raça” ou
etnia.
Em convergência com esta
visão filosófica, a crítica filosófica ao antropocentrismo põe em causa a visão
religiosa ou política que concede ao Homem, criatura eleita por Deus para
presidir à criação divina, o direito absoluto a apropriar-se da Natureza para
os seus fins, sem qualquer limite ou restrição e lhe permite o primado do
crescimento económico sobre o desenvolvimento sustentável.
Neste contexto, ao
contrário da história anterior da filosofia ocidental, cuja problemática tem
por centro o homem, a filosofia ambiental dirige o pensamento para a razão de
ser do mundo e da sua fenomenologia, para a descoberta da unicidade da
Substância em todas as suas manifestações ou “modos”, no vocabulário do nosso
Bento de Espinosa, sem que se transforme numa filosofia anti-humanista, pois a
Natureza do homem, como de todos os entes e seres do universo, tem a sua origem
na mesma “poeira das estrelas”.
O ponto de partida da
renovação filosófica do séc. XX foi o conceito de ambiente e como seu desidrato
supremo, a justificação racional para que a ética ambiental prevaleça sobre as
conquistas mais avançadas da ciência cega e a mais democrática das democracias
liberais e socialistas do passado séc. XX, geradoras da crise ambiental. Retomando
as perguntas capitais que a obra de Espinosa colocou no advento da nossa
modernidade, como pensar a explicação racional da existência do homem e do
universo, como adequar o pensamento filosófico à razão de ser de tudo o que
existe e como transformar a vida espiritual em plena compreensão e serena
fruição da vida até ao seu limite? A Filosofia do Ambiente permite construir
uma nova ontologia em crítica ao antropocentrismo, uma nova epistemologia,
fundada na crítica ao etnocentrismo e uma nova teoria ética, de valor universal
e de conteúdos práticos aplicáveis a todos os domínios sociais.
Tal como na filosofia de
Espinosa e depois na de Antero, o impulso fundamental de reflexão da filosofia
ambiental foi a questão ética e são os problemas morais. E assim chegamos a um
novo conceito de razão, o conceito de “razão ambiental”, cujos fundamentos
assentam na crítica ao antropocentrismo e ao etnocentrismo, na elaboração do
conceito moderno de ambiente e nas contribuições essenciais dos filosofemas da
ética da terra e da ética animal, que adiante vamos concetualizar.
Do paradigma conservacionista da
natureza ao conceito de ambiente
Conceptualizamos o
ambiente como o conceito que exprime as relações entre a natureza e a cultura,
na complexidade e diversidade das paisagens culturais_ urbanas e rurais,
completamente humanizadas ou em estado semisselvagem ( com menor influência
antrópica). Incluindo o seu património material e imaterial, as suas formas e
expressões culturais, a sua incomensurável relação afetiva com os incontáveis
seres humanos que nela nasceram e a transformaram, transformando-se
também.
É certo que hoje não há
praticamente quadros naturais puros mas sim paisagens humanizadas em maior ou
menor grau e o seu equilíbrio ecológico é sempre dinâmico e relativo. Os
defensores da Teoria Sintética da Evolução, partidários de um gradualismo
filético que entende a evolução das espécies como resultado da convergência de
mutações biológicas e mudanças ambientais[8].
Ou os seus contraditores, mais inclinados para as doutrinas do Equilíbrio
intermitente, que enfatizam o facto de a paleontologia, em regra, não
evidenciar modificações graduais e para os quais as espécies podem surgir num
estado avançado, permanecer longamente com existência estável e depois perecer
para dar origem a outras, contribuíram igualmente para compreendermos hoje a
complexidade dos problemas da evolução e da extinção das espécies.[9]
As descobertas
científicas permitem-nos ter a certeza apenas de que o equilíbrio dos
ecossistemas favoráveis à vida depende de uma infinidade de relações
geológicas, biológicas e físicas e reconhecem que quanto mais alta é a posição
ocupada pelos organismos na cadeia alimentar, maior é a sua vulnerabilidade,
podendo a destruição de algumas espécies afetar drasticamente todo o sistema.
Houve sempre extinções ao
longo das várias épocas da história da vida e o património biogenético
recuperou a sua riqueza e diversidade_ foi assim nos finais do Pérmico (com o
desaparecimento das Trilobites), do Cretácico Terminal (o fim dos dinossáurios
não-avianos), do Plistocénico superior (quando sucumbem os mamíferos oriundos
da América do Sul) e do Quaternário (extermínio e morte de espécies
contemporâneas do homem, como o tigre
dente-de-sabre e o mamute). O que hoje é dramático, conhecida a lei de
bronze da Paleontologia, que postula a Irreversibilidade da Evolução, é o ritmo
a que se processa a perda da biodiversidade, a destruição dos recursos naturais
energéticos e a multiplicação dos efeitos poluidores que atingem não só o
conjunto do planeta_a litosfera, a hidrosfera, a criosfera, a atmosfera e a
biosfera, mas também e, com consequências imprevisíveis, o material genético
fundamental, o ADN que conserva e reproduz os códigos da vida.
Mas, no lado oposto da
crítica á conservação da natureza e da sua biodiversidade, a tese do fim da natureza é a tese da
dominação e inteligibilidade completas da natureza, o “sociocentrismo” de que
fala Catherine Larrère e que assim procura justificar um modelo de crescimento
social sem restrições e despojada de qualquer moralidade.
A visão ambientalista é o
que melhor distingue o pensamento moderno do antigo: Admitiu-se a ideia de uma
natureza criada por Deus, natura naturans
( é o primeiro momento da modernidade clássica), uma natureza-processo e
depois uma natureza-objeto, natura naturata, natureza artefacto,
exterior ao homem, de que ele se separou ao instrumentalizá-la. Mas, como sublinha
Larrère, os processos naturais continuam e a artificialização da natureza não é
controlável pelo homem nos seus efeitos.[10] Acresce, que a filosofia ambiental
reintegrou o homem na natureza, sem nenhum estatuto de domínio ou privilégio.
Mas reconheceu na Vida Humana o ente mais complexo da evolução cósmica, que não
o seu cume ou final.
Contudo, a extinção do homo sapiens sapiens e das espécies
associadas à nossa evolução, um mundo imaginário de vegetais, micróbios e
insetos, improvavelmente daria de novo origem à espécie humana ou mesmo aos
mamíferos. E assim, concluímos nós, o humanismo regressa ao centro da reflexão
moral, mas noutra visão ética: Se enquadrarmos o surgimento dos antepassados da
espécie humana há 4 ou 5 milhões de anos, no quadro do tempo biológico, que é
imenso, nada nos assegura que, tal como aconteceu com os dinossáurios há
sessenta e cinco milhões de anos, o reino dos mamíferos não termine e outras
formas de existência mais avançadas e inteligentes continuem a perpetuar a
música da vida pelos espaços siderais. E ninguém pode imaginar hoje qual é o
elo da cadeia onde o salto evolutivo se poderá
produzir, como ninguém sonhou antes que o tetravô da nossa condição de
quadrúmanos fosse um insignificante roedor, que sobreviveu à extinção
generalizada das espécies dominantes no final da era mesozoica.
Então, em consequência
científica e imperativo ético, devemos igualmente considerar que os múltiplos
laços entre todas as formas de vida (e mesmo destas com o ambiente abiótico),
obrigam, para além do dever de preservação da nossa espécie, a conservar a
diversidade dos seres e os seus nichos ambientais, de cujo equilíbrio (?)
dinâmico, como na pirâmide trófica de Aldo Lepold, tudo depende.[11]
E daqui decorre o
princípio da preservação da Vida, antes do Homem e da Terra com toda a sua
biodiversidade.
A Ética da Terra. The
Land Ethic
Todas as éticas assentam
sobre uma premissa: que o indivíduo é membro de uma comunidade
interdependente”. A Ética da Terra alarga o conceito de comunidade:
“…The land ethic simply enlarges the boundaries of the community to
include soils, water, plants, and
animals, or, collectively: the land “ [12]
Mas o reconhecimento do
valor económico da conservação e usufruto pleno da biodiversidade pode ainda
ser uma forma de recusar os valores da Ética da Terra e da Ética da Vida. Conduz
geralmente a confinar a conservação da natureza aos parques e reservas, às
espécies potencialmente úteis ao ser humano e à ação do Estado, deixando
inteira liberdade à iniciativa privada. Parte da premissa, cientificamente
falsa, de que os elementos com valor económico do biótopo podem existir na
natureza sem a presença dos outros elementos.
A argumentação científica
como suporte do discurso ambiental e moral, atravessa a obra de referência da Ética da Terra de Aldo
Leopold, um técnico florestal e não um académico (depois de Walth Whitman, e do
transcendentalismo de David Thoreau e Waldo Emerson, a John Muir e G. Pinchot,
pioneiros da gestão racional da floresta e do ambiente ou George Perkins
Marsh), que a retira dos estudos de Darwin e dos avanços científicos da
Ecologia.
O sentimento da
necessidade de ajuda e defesa comum, desenvolvido ao longo do processo de
seleção natural, gerou o conceito de comunidade,
fundamento da ética. E é uma nova conceção da natureza que emerge, agora entendida
como uma sociedade de plantas, animais, minerais, fluidos e gases,
estreitamente ligados e interdependentes. Uma comunidade alargada aos entes
naturais.
Nesta linha de
pensamento, duas correntes emergiram em paralelo: o
biocentrismo (modelador das organizações, Earth first !, Greenpeace, Wilderness Society), que atribui um valor intrínseco a toda a
entidade viva; e o ecocentrismo focalizado nos deveres que temos face à
comunidade biótica de que fazemos parte. Não se trata de aplicar a novos objetos,
como a natureza, as teorias morais pré-existentes. A natureza passa a estar
incluída no nosso campo de reflexão moral, os nossos deveres, antes limitados
aos seres humanos, passam a ser extensivos aos outros entes naturais.[13]
A Consciência Ecológica
(Os deveres para com a Natureza), será assim, Conservation is a state of harmony between men and land…[14]
“The image commonly employed in conservation education is «the balance
of nature», .this figure of speech fails to describe accurately what little we know about the land
mechanism. A much true image is the one employed in ecology: the biotic
pyramid.”[15]
A pirâmide biótica e abiótica, que
Aldo Leopold descreve assim:
“Plants absorb energy from the sun. This energy flows through a circuit
called the biota, which may be
represented a pyramid consisting of layers…The species of a layer are alike not
in what they came from, or what they look like, but rather in what they eat…The
lines of dependency for food and other services are called food chains…The pyramid is a tangle of
chains so complex as to seem disorderly, yet the stability of the system proves
is to be a highly organized structure. Its functioning depends of the co-operation and competition of
its diverse parts.”[16]
Na perspetiva da cadeia
biótica a classificação do homo sapiens
na ordem dos Primatas, transforma os seus membros em “irmãos e primos “,
integra o homem na família dos hominídeos, com gorilas e chimpanzés, e
aparenta-o com macacos e lémures. O solo é nesta visão científica, o suporte da
Vida, nele vivem e permanecem biliões de decompositores: Termite, red velvet mite, pseudoscorpion, springtal, earthworm, root
tipe, nematode, fungi, protozoa, bacteria.
A Ética Animal. Animal Ethics
Caberia ao australiano
Peter Singer e ao americano Tom Regan enfatizar os sentimentos e os direitos
dos animais face à brutalidade dos processos produtivos modernos: clonagem
genética, jaulas prisão, rações baseadas na carne triturada de animais mortos e
saturadas de hormonas, violação sistemática dos ritmos naturais e das
necessidades da vida animal, tudo isto
em função do lucro máximo.
Partindo da tese de que
“…alguns animais não humanos parecem ser
racionais e conscientes de si, concebendo-se como seres distintos que possuem
um passado e um futuro…”, propõe-nos uma ética gradualista contra o
assassinato de animais, que no seu
patamar superior estende aos
chimpanzés, gorilas e orangotangos a mesma proteção devida aos seres humanos.” [17]
Questiona-nos então se
esta restrição não deve ser alargada a todos os mamíferos, para reconhecer
depois que, face a outros animais que não são seres racionais e
autoconscientes, a sua argumentação enfraquece, postulando embora que é sempre
inaceitável provocar a morte prematura de biliões de animais. No entanto,
admite que há situações especiais em que pode não ser errado permitir a
substituição, por morte, de uns animais por outros (o abate indolor das
galinhas para alimento e para dar lugar a novos exemplares, como exemplo). Mas conclui que lhe parece ser melhor elevar
a princípio elementar o evitar
matá-los, porque não são essenciais à
alimentação humana, a menos que isso seja justificado tendo em vista a própria
sobrevivência.
Em nome do princípio da
igualdade, os dois autores referidos recusam o conceito da superioridade da espécie
humana, que comparam ao racismo, por violar aquele princípio, censurando à
maioria dos humanos o não reconhecimento da capacidade de sentir e sofrer dos
animais. Nas suas obras afirmam que os animais são sujeitos de interesse em não
sofrer e também, acrescenta Regan, são sujeitos de direito, por que são
sujeitos de uma experiência de vida que possui valor intrínseco, a “Senciência”
que não é senão a capacidade de sofrer ou sentir prazer ou felicidade. Sobre
estes fundamentos postulam o mais radical imperativo moral: a ampliação do
conceito de pessoa.
“Proponho o uso de «pessoa» , no sentido de um
ser racional e autoconsciente, para incorporar os elementos do sentido popular
de «ser humano» que não são abrangidos por
«membro da espécie Homo Sapiens
».[18]
Singer, perante o
sofrimento dos animais e dos seres humanos, postula a obrigação ética de ajudar e
vai desmontando uma a uma as objeções que se lhe opõem: cuidar de nós mesmos;
deixar a cargo do governo…e a derradeira, o padrão alto da ajuda…
Peter Singer merece-nos
uma referência especial, para assinalar as perseguições e boicotes de que foi
vítima, em diversos países do mundo mais desenvolvido, Alemanha à cabeça, não
diretamente por causa das conceções acerca da ética animal, mas sobretudo pela
sua defesa de algumas formas de eutanásia. Os seus detratores tomaram a
preservação da vida humana como bandeira, acusando-o de ignorar o seu valor
intrínseco e, naturalmente, de se preocupar mais com os animais do que com as
pessoas.
Não é o lugar, aqui, para
explorarmos este último conceito na ótica do filósofo, mas importa realçar que
as suas preocupações quanto à defesa dos direitos dos animais estão carregadas
de “humanismo“ e o seu discurso crítico se preocupa sobremaneira com a
hipocrisia da moral oficial no tratamento do conflito entre ricos e pobres,
sejam pessoas ou países. Vejamos, resumidamente, os seus princípios no que toca
ao dever de ajuda: Na obra citada, Singer denuncia, com as próprias cifras do Presidente do Banco Mundial e os seus
relatórios, o drama da “ pobreza absoluta “ no planeta, destacando a morte, que
classifica como assassinato, de 14 milhões de crianças por ano, devido a
carências nutritivas, ao pôr em evidência que o mundo produz alimentos e bens
suficientes para erradicar estes problemas, pelo que a sua génese está nas
relações injustas de distribuição. [19]
Postulando a obrigação
ética de ajudar, vai desmontando uma a uma as objeções que se lhe opõem _
cuidar de nós mesmos; direitos de propriedade; a ética da triagem populacional;
deixar a cargo do governo…e a derradeira, o padrão alto da ajuda. Para concluir
que podemos e devemos impedir uma parcela da pobreza absoluta, sem que isso
implique de facto sacrificar nada de importância moral comparável, sendo a
prioridade “… as necessidades de vida ou morte dos outros” e deixando
explícito que, se é mais importante lutar politicamente pelos direitos dos mais
pobres, nada nos inibe de lhe somar a ajuda concreta possível. Torna assim
claro que há, entre a fome no mundo e a matança brutal dos animais, um padrão
civilizacional comum, o da sociedade de consumo atual e do seu modo amoral e desigual de produção e
circulação das mercadorias.
Em apoio desta linha de
pensamento, o conhecimento aprofundado das comunidades animais permitiu revelar
formas notáveis da sua organização comunitária e inusitadas capacidades: a
inteligência dos golfinhos, o uso de instrumentos de trabalho por algumas
espécies de chimpanzés, o sistema de vida igualitária das comunidades de aves
de rapina, o formidável instinto maternal das baleias, complexos e ternos jogos
nupciais...enfim, potências animais até
então ignoradas, que em comum parecem ter a capacidade afetiva, de sofrimento e
de comunicação, elementos chave para fundar uma nova perspectiva ética.
Esta visão
filosófica evoca o pensamento moral de
António Vieira: “Comerem-se uns animais aos outros é voracidade e sevícia, não
estatuto da natureza.”[20] “ Mas também o premonitório
filosofema aquiliniano “… A natureza não tem simpatias especiais para nenhum
dos seus seres .” [21]
Pluralismo e Controvérsia
Filosófica
Um dos mais populares
defensores de uma ética da terra, Joel de Rosnay, atingiu a notoriedade com o
título sugestivo de O macroscópio. Para uma visão global, seguido de O Cérebro Planetário.[22]
O macroscópio, ao invés do microscópio, amplia os laços existentes entre os
grandes sistemas ecológicos e encara a terra e o conjunto das organizações e
relações sociais _ desde as cidades às empresas, como autênticos organismos
biológicos, onde a espécie humana é considerada apenas como uma das suas
células constituintes, entre muitas outras espécies! Ou, melhor dizendo, como
os “neurónios” da terra, células de um cérebro em formação, de uma consciência
planetária nascendo à escala do planeta.
O equilíbrio ecológico dos
sistemas sociais seria assegurado pelo funcionamento pleno do mercado, que no
entanto carece de ser humanizado, através duma reforma social inspirada nos
sistemas biológicos, pela descentralização de decisões e o incentivo à
participação por intermédio de múltiplas redes interativas. Enfim, a exclusão pela competição,
segundo Rosnay, típica dos ecossistemas e portanto aplicável às relações
Norte/Sul, entre países ricos e pobres, seria o resultado daquela “seleção
natural”, carecendo também de ser corrigida por intermédio de uma nova ética.
Gordon Taylor, partindo
da noção de que a terra é um vasto ecossistema em que tudo está ligado, acusa a
espécie humana de preparar o apocalipse através do crescimento demográfico
excessivo e dos efeitos perversos das tecnologias atuais.[23]
Enumera toda uma série de
relações de causa e efeito entre a degradação do ambiente e a perda de
qualidade de vida do homem moderno - a poluição provocada pelos metais e o DDT
gera perturbações mentais, os resíduos radioativos ameaçam a nossa herança
genética, a mobilidade social afronta a natureza humana que assenta em sólidos
instintos territoriais, provocando stress, etc. E daqui parte para a defesa de
um projeto de reorganização da sociedade com base no campo, tendo como modelo a
sociedade pré-industrial, preconizando em paralelo a rotura com a tradição
filosófica do iluminismo e a visão antropocêntrica do homem.
As ideias esboçadas por
estes autores aproximam-nos das principais teses cientifico-filosóficas, que
fundamentam a ética da terra e atingiram notoriedade particular através da
hipótese de Gaia, enunciada em 1979 pelo inglês James Lovelock, logo suportada
mediaticamente pelo americano Carl Sagan.[24]
A Terra seria afinal um
superorganismo vivo, criador da sua própria biodiversidade. Lovelock aponta a
história do clima como um dos principais argumentos em favor desta perspectiva,
considerando a superfície terrestre o principal agente produtor da vida,
geradora de uma atmosfera há pelo menos três milhões e meio de anos, favorável
à existência de seres vivos. Enfim,
sendo o homem a principal ameaça para a vida, mais do que a tecnologia, o
Planeta, qual mãe terrível e monstruoso demiurgo, saberia agir intencionalmente
e depois de reagir às mais brutais agressões ambientais, poderia exterminar o
próprio ser humano através de praga ou mutação genética universal. Em
contrapartida, recompensará a harmonia das raças e culturas e o uso das
tecnologias não poluentes. Daí, até à
crença regeneradora de uma nova tecnociência e ao futurismo visionário de
utilização dos outros planetas através da apropriação de tecnologias benévolas
pela raça humana, vai apenas um passo.
Eis sumariamente as duas
faces da mesma moeda filosófica que absolutiza o papel da tecnologia: ou o
regresso atávico ao campo, à maneira de Gordon Taylor ou a salvação pelas
técnicas ecologicamente puras, sobre um fundo comum de crítica ao
antropocentrismo.
A primeira observação que
estas teorias nos sugerem é para assinalar a sua localização na geografia geopolítica.
O seu nascimento é indissociável das preocupações de uma elite
técnico-industrial a braços, simultaneamente, com a crise ambiental dos seus países e do modelo
anglo-saxónico e ocidental de produção, que globalizou o mundo. Elas emergem
precisamente nos finais da década de 70, perante o crescimento da competição
internacional pela liderança, marcada pela ascensão económica do Japão e da
Alemanha, mas também dos países industrializados da Ásia/Pacífico e têm de
enfrentar ainda o crescente protagonismo mundial dos países dependentes do
hemisfério sul.
A segunda reflexão
preocupa-se com a história oculta do progresso tecnológico: basta avaliar o
último grande avanço energético, celebrado nos anos 50 com a energia nuclear,
glorificada então por não produzir gás carbónico e produtos ácidos, mas de
facto encobrindo os efeitos catastróficos das fugas, como os acidentes e resíduos nucleares, de
Three Miles Island a Chernobyl.
O que nos conduz à
terceira apreciação crítica: improvavelmente qualquer tecnologia algum dia
inventada se mostrará mais eficaz do que os processos naturais de seleção,
reutilização e reciclagem, que ocorrem nos principais ecossistemas favoráveis à
vida e deram origem aos grandes quadros da paisagem natural humanizada.
E, finalmente, mas não
menos importante, a ênfase colocada por alguns políticos na mundialização do
ambiente e no controle, gestão centralizada e concentração de bancos da
biodiversidade, traduzida, por exemplo, no atrativo slogan de Al Gore de um
Plano Marshall para o Ambiente,
leva-nos a recordar que o plano homólogo, apresentado como via para a
reconstrução da Europa devastada pela II Guerra Mundial, serviu igualmente para
consolidar a hegemonia americana no ocidente, no contexto da “guerra fria” com
os países de leste.
As posições atuais dos defensores
da ética da terra, como Rolston III e Callicot, conduzem ao reconhecimento “…do
valor intrínseco de todo o componente ecológico”, no dizer do primeiro, e ao
princípio de que “… o efeito sobre os sistemas ecológicos é o fator decisivo na
determinação da qualidade ética das acções.” [25]
Demarcando - se do
radicalismo de Rolston III, Callicot defende o direito à vida de plantas e
animais imprescindíveis ao equilíbrio ecológico de determinadas comunidades
bióticas, exemplificadas pelo caso dos felinos ameaçados de extinção nos seus habitats
da América do Norte, mas aceitando igualmente que outros animais e plantas
sejam destruídos quando constituem uma ameaça mortal para a comunidade natural
de determinado sítio e, consequentemente, o controle das espécies por parte do
homem.[26]
A absolutização dos
quadros naturais significa não ter em conta que todos esses meios são hoje obra
comum da espécie humana e podem levar ao extremismo de pretender reduzir o
género humano ao peso numérico da “comunidade
dos ursos!”
Tudo isto é suficiente
para não reduzir a reflexão dos defensores da ética da terra a uma obsessão de
lunáticos ou a um problema regional dos países ricos. Se os autores citados,
Rolston III e Callicot, não enfatizassem
o princípio do “valor intrínseco” das espécies, poderíamos inferir que a sua
crítica estaria dirigida contra os excessos da industrialização agropecuária da
terra, que conduz à monocultura e à liquidação das espécies de menor rendimento
económico, abrindo o caminho à extinção da biodiversidade, à destruição dos
solos agricultáveis e à colonização dos nichos vazios pelas espécies
infestantes e ao desenvolvimento das pragas.
Nas obras mais recentes
de Callicot, as suas propostas, que desde o início procuram conjugar a
intervenção dos defensores da ética animal e da ética da terra, surgem - nos
com uma tonalidade reformista e conciliadora, no plano social, aconselhando os
agricultores privados a reservar (sacrificar) uma parte da terra produtiva para
o livre desenvolvimento da vida selvagem, não apenas em nome da conservação da
natureza, mas também por razões estéticas de usufruto da beleza da paisagem
natural, através do espetáculo da sua diversidade, particularmente no que se
refere às novas gerações, na linha do pensamento de Aldo Leopold, de quem se
afirma discípulo e continuador. [27]
Um novo paradigma político-moral
Se
o objeto da ciência é de explicar como funciona o mundo, e neste sentido as
leis científicas são amorais, já a resposta ao imperativo categórico de “como
viver no mundo”, pertence ao domínio da filosofia e da ética e é neste sentido
que a ética ambiental interroga o valor da ciência e do desenvolvimento social
da humanidade, não apenas na dimensão antropocêntrica, mas para além dela e de
acordo com a ciência moderna, a Vida antes do Homem e a Terra antes da Vida.
No
contexto das Conferências Mundiais do Ambiente do século XX, podemos seguir o
emergir deste paradigma moral, quando, colocado em crise o nosso modelo
civilizacional pela crítica da Filosofia a cada nova descoberta fundamental das
ciências, fundamentou a elaboração dos novos princípios da Filosofia Ambiental
e postula a construção da nova Ética
Ambiental, com valor prático.
Da
primeira Conferência da ONU, realizada em Estocolmo, 1972, emergem o princípio
da Casa Comum "…o homem tem duas pátrias, a sua e o planeta Terra“; o
princípio da comunidade e solidariedade planetária fundadoras de uma nova ordem
(ética) internacional e o princípio de
defesa da Vida Planetária antes do Humanismo.[28]
Na
segunda parte do seu Relatório, dedicada à elaboração de uma nova visão
científica sobre a unidade, imprevisibilidade, continuidade e interdependência
do cosmos, introduz-se, no que respeita ao entendimento da realidade da matéria
o conceito de «plasma», que permitiu compreender a origem do Universo e as
condições que geraram na Terra as condições de transformação criadoras e
conservadoras da vida: a água, que arrefeceu a temperatura do planeta e moldou
a sua crusta, os compostos orgânicos de carbono, fontes da vida, a atmosfera de
oxigénio e ozono, protetores da vida, a fotossíntese, base dos ciclos do
carbono e do oxigénio, a criação da biosfera e a explosão da vida no Câmbrico,
o complexo, vulnerável e imprevisível processo de adaptação e seleção natural,
que gerou sempre, até ao nosso tempo, uma crescente biodiversidade e
diversidade natural, em instável equilíbrio.
A
filosofia ambiental reintegrou o homem na natureza, sem nenhum estatuto de
domínio ou privilégio.
Assim
sendo, o conceito de “razão ambientalista” moderna começa a formular-se a
partir da formulação de um novo imperativo categórico para a ação do homem,
mais além da máxima kantiana de conformação dos atos individuais com o
princípio de uma lei universal, um novo quadro ético, o qual resulta da
necessidade de configurar a conduta humana nos limites que salvaguardem a
continuidade da vida e a sua diversidade (Hans Jonas, 1984).
O imperativo ético da dignidade e o imperativo
ético da paz, de Jorge de Sena[29]
Antero
de Quental anunciava o advento de uma nova arte, mais universal, tendo a musica
como paradigma; natural é pois que a poética literária alimentasse também a
nova Filosofia.
“Acreditai
que nenhum mundo, que nada nem ninguém
vale
mais que uma vida ou a alegria de tê-la.
É
isto o que mais importa - essa alegria.
Acreditai
que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto
não
é senão essa alegria que vem
de
estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez alguém
está
menos vivo ou sofre ou morre
para
que um só de vós resista um pouco mais
à
morte que é de todos e virá. “[30]
E
ao “imperativo ético da dignidade”, que questiona a exploração do homem pelo
homem, Jorge de Sena, poeta e filósofo,
junta um novo imperativo categórico da “paz perpétua”:
“Na
insólita fortuna da desgraça,
[...]
nesta insólita fortuna, à luz que vem
oh
só em poeiras inofensivas, rezo
a
mim mesmo para não perder a memória,
por
vós, para que saibais sempre lembrar-vos
de
que tudo se perde onde se perde a paz,
e
primeiro que tudo se perde a liberdade.”
[31]
Depois
de escritos estes pensamentos, que questionam a legitimidade moral da
exploração do homem pelo homem e da guerra, cem obras de filosofia política,
tornaram-se como que desnecessárias e prolixas.
O
estado de guerra, que nas suas causas tem sempre a apropriação da riqueza dos
povos e das nações, fruto do trabalho social, à luz dos ensinamentos da
história das democracias liberais e das democracias socialistas, é incompatível
com a conservação e aprofundamento da democracia e contribui para criar as
condições para a sua limitação e degeneração. Se recusarmos o imperativo ético
da destruição de todo o arsenal atómico, de guerra química e biológica e de
construção da sustentabilidade do nosso modo de produção económica e
financeira, então, acharemos a paz maldita e eterna no holocausto dos filhos
dos nossos filhos.
O
respeito pela dignidade do homem cidadão e pela paz perpétua, assim reunidos
pelo mesmo juízo moral, constituem um primordial e unificado corolário político
das Éticas Ambientais.
Paradoxo e
superação ética do conceito de família, cultura e nação
A
“Eva mitocondrial” terá surgido na África Oriental há 200.000 anos e o “Adão
cromossómico” na África subsariana há 140.000 anos. Tal significa que todos os
seres humanos são descendentes, pela via mitocondrial, da mesma mãe ancestral,
sendo que das outras mulheres desse tempo remoto, em algum lugar da genealogia
se interrompeu a descendência feminina, substituída por uma nova geração
masculina: neste caso, se não se manteve o ADN mitocondrial, conservou-se o ADN
cromossomático. A mensagem moral, comum
a muitas religiões e filosofias, que todos os seres humanos são irmãos na mesma
família humana, fica fundamentada na ciência moderna.
Assim como as mitocôndrias são herdadas pela via
maternal, os cromossomos são herdadas por meio do pai. Portanto, é válido para
aplicar os mesmos princípios com estes. O ancestral comum mais próximo,
apelidado de Adam cromossômico, viveu num período estimado entre 60.000 e
142.000 anos. Então, todos os seres humanos contemporâneos, tiveram a sua
origem em África, num período entre 100.000 e 200.000 anos atrás. Durante a
última glaciação, os descendentes dos primitivos Homo Sapiens terão
atravessado o estreito de Bering, penetrando na Europa e na Ásia e, seguindo
caminho, por vales, rios e oceanos, atingiram todos os continentes.
Enfim,
em sentido ético, as fronteiras que configuraram as nações primitivas e
modernas, e permitiram lançar novos ramos da cultura humana, organizar o
progresso económico e os exércitos nacionais, devem ser progressivamente
abatidas por um imperativo moral, pois, tal como o racismo não tem fundamento
científico e a cor da pele resulta da adaptação do ser humano aos diferentes
ambientes da Terra, sabemos hoje que qualquer guerra, por mais legítima ou
defensiva, será sempre travada entre membros da mesma família, descendentes de
antiquíssimos progenitores. E com a queda daquelas fronteiras inumanas, deverá
progressivamente ser superado o estatuto de poder e exploração do homem pelo
homem, do homem sobre a mulher, da nova sobre a geração envelhecida, que o
estado e os seus corpos repressivos, leis e costumes, historicamente
garantiram, porque no plano moral será o mesmo que subjugar pelo capital ou por
outro poder os mais fracos do nosso
círculo familiar planetário.
Estamos
finalmente em condições de sistematizar o conceito de “razão ambiental” e concluir
depois a reflexão sobre o problema da construção de uma Bioética Global
A razão ambiental
A “razão ambiental”
moderna formula um novo imperativo categórico para a ação do homem, mais além
da máxima kantiana de conformação dos atos individuais com o princípio de uma
lei universal, um novo quadro ético, o qual resulta da necessidade de
configurar a conduta humana nos limites que salvaguardem a continuidade da vida
e a sua diversidade (Hans Jonas).
A razão ambiental
constrói a sua própria ética, como ética de princípios e ética aplicada, com
base na crítica ao antropocentrismo e ao etnocentrismo.
Com base nestes dois
axiomas ela incorpora novos conceitos morais, da Ética da Terra e da Ética
Animal, que alargam o conceito de comunidade a todos os entes da natureza e
ampliam o conceito de pessoa, ao menos aos animais que possuem capacidade de
sentir e sofrer, em particular dos que nos estão mais próximos na cadeia
evolutiva.
A razão ambiental
incorpora também uma Bioética Global, que reposiciona o Homem dentro da
Natureza, mas sem estatuto de privilégio e atribui à sua espécie um estatuto
superior de valia moral, pela sua paradoxal capacidade de criar e destruir a
biodiversidade, mas também um estatuto de igualdade moral entre os seus
múltiplos indivíduos, filhos primogénitos da mesma mãe mitocondrial e do mesmo
pai cromossomático. E coloca o homem antes da Vida e a Vida antes da Terra, sem
sombra de anti-humanismo.
A razão ambiental integra
ainda uma nova Ética Política, e uma nova visão crítica da alienação dos
cidadãos, uma nova Ética Política que elaborou o princípio da Casa Comum, o
homem tem duas casas, a sua e o planeta, base dos princípios da
sustentabilidade, da solidariedade e da equidade e se enriquece com dois novos
imperativos categóricos, o imperativo da dignidade e o imperativo da paz
perpétua, que vai muito para além da consigna kantiana.
Da Bioética Médica à Bioética Global
A Bioética Médica trata
dos princípios e padrões da conduta humana no campo da medicina e avalia
moralmente o uso das suas técnicas e a relação entre cuidadores e a pessoa
moral, aqui entendida não apenas na sua identidade biológica mas como cidadão e
sujeito de direitos e deveres cívicos e morais, pelo que a Bioética avalia
também o valor da relação moral do estado com os seus cidadãos, numa dimensão
político-moral.
O intenso debate
científico e sobre temas da moralidade e da ética aplicada, ainda no século XX,
pode estabelecer um consenso geral acerca dos princípios da bioética prática no
campo da saúde: Dignidade. Beneficência. Autonomia. Consentimento Informado. Vulnerabilidade.
Privacidade. Igualdade. Diversidade cultural. Solidariedade. Sustentabilidade.
E o conceito de cuidado (care) que preside à área da Saúde relativo
aos seres humanos retorna à restante natureza, ao ambiente de toda a Terra.
Mas a sua aplicação
suscita múltiplas questões dilemáticas e intensa controvérsia, pois nele se
defrontam diferentes ideologias, cosmovisões, convicções religiosas, conceitos
científicos e filosofias políticas. Tais como, a definição da identidade
física, psicológica e ética da pessoa, questão suscitada pela engenharia
genética, pela mudança de género, pelas patologias e disfunções psíquicas, pela
doação e receção de órgãos ou pela maternidade de substituição; ou a questão do
princípio e do fim da pessoa, problemas suscitados pelo enquadramento moral do
aborto e da eutanásia…
Aqui queremos evidenciar
a relevância da filosofia política e a necessidade de regressar ao debate
filosófico sobre o conceito de alienação.
Partindo do quadro que
atrás traçámos, de onde emerge um novo conceito de razão ambiental, podemos
estabelecer os princípios que lhe correspondem no domínio da filosofia e da
ética política:
“O princípio da cidadania
ou da dignidade, aplicado em conjunto com o princípio da paz perpétua (Jorge de
Sena), com a subordinação da economia, da finança e da
política à ética ambiental, determina o dever ao Estado de garantir aos seus
cidadãos o direito à paz, ao trabalho, à
educação, saúde e assistência na velhice, o acesso à justiça, à conservação da
biodiversidade e à liberdade, sim, a liberdade está colocada nesta ordem, pois
desaparece com a guerra e vale menos sem o trabalho e os outros direitos
sociais e com a destruição da diversidade da vida, as comunidades humanas não
terão futuro.
Tais princípios, que
estão vertidos nos 30 artigos da Declaração Universal dos Direitos do Homem,
atualmente truncados, mutilados e reduzidos às liberdades políticas formais,
cometem ao Estado democrático, liberal ou socialista, o dever adicional de
combater contra a sua própria corrupção e decomposição.
Em razão de um mundo onde
prevaleça o primado da ética sobre a moral política que, atualmente, adota como
único princípio válido o de que os meios justificam os fins; o primado da ética
sobre a justiça de classe que anuncia, como fim da história e ordem natural da
sociedade, o triunfo da exclusão social; e o primado da ética sobre a história,
sangrenta, de todas as civilizações.”[32]
Tal é o programa de combate cívico (e
ético) que emerge como imperativo político dos pressupostos filosóficos das
novas éticas ambientais.
[1] Investigador e professor, nas áreas da Filosofia Ambiental e da Ética. No Centro de Filosofia da U. Lisboa, visitando o U. Salamanca e a U. Sorbonne. Investigador na área do Turismo Cultural, Turismo de Natureza e Desenvolvimento Sustentável na U. de Aveiro. Em Educação, no Centro de investigação Way Ching da U. Hong Kong. Doutor em Filosofia das Ciências, Mestre em Filosofia da Natureza e do Ambiente. Mestre em Teoria da Arte. Publicou 12 livros, 28 capítulos de livros e 61 artigos em revistas científicas. Dirigiu 11 filmes científicos. Como editor, publicou mais de 60 títulos. Presidente da Associação de Museus e Centros de Ciência de Portugal. Secretário-geral da Câmara de Cooperação e Desenvolvimento Portugal-China.
[2] Rolston III, Holmes. Philosophy gone
Wild, 1989, pág. 19.
[3] Strauss, Lévi, citado da obra A Origem das
Maneiras de Comer à Mesa, na obra de Antoine Danchin Uma Aurora de Pedras. Coimbra, Edições
Almedina, 2009.
[4] Beckert, Cristina. Ética. Lisboa: Ed. CFUL, Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2012, pág.s 115, 212. A autora refere-se à obra de Van Ranssaeler Potter, o médico oncologista norte-americano que lançou o debate, Global Ethics, 1988.
5] Queirós, António. A Ética Ambiental e a Moral no Século XXI, in Confluências Bioéticas, edit. por Antóno Barbosa e Jorge Marques da Silva. Lisboa: Ed. CFCUL, Centro de Filosofia das Ciências da Universidade de Lisboa, 2014, pág. 238.
Esta posição de princípio, foi primeiro apresentada no Colóquio Internacional Philosophy, in the twentieth century, organizado pelo Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, em 2012 e com o título The dawning of the Environmental Ethics in the 21st century, problematizada no XXIII World Congress of Philosophy, Athens, em 2013.
[6] Ibidem, pág.s 227 e 228.
[7] Dias, Jorge. Estudos de Antropologia, Volume I, Uma introdução histórica etnografia portuguesa, publicado em 1961. Reed. em Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, pág. 219.
[8] Também chamados de neodarwinistas, como Julian Huxley e George Gaylord.
[9] Propostas por N. Elredge e S. Gould.
[10] Larrère, Catherine, Larrère, Raphaël. Du Bon Usage de La Nature. Aubier, Paris, 1997. Editado para Português pelo Instituto Piaget.
[11] O conceito de equilíbrio da natureza está há muito sob a crítica das ciências do ambiente, incluindo a fundamentação científica desenvolvida por Leopold. Equilíbrio e caos coexistem no mesmo processo de evolução.
[12] Leopold, Aldo. A Sand County Almanac. New York: Oxford University Press, 1949. Pág. 239.
[13] Quanto aos defensores da deep ecology não julgam necessário desenvolver qualquer ética ambiental.
[14] Ibidem. Pág. 243
[15] Ibidem. Pág. 251
[16] Ibidem. Págs. 251 e 252
[17] Peter, Singer. Ética Prática, do capítulo Tirar a Vida de Animais, Tradução de Álvaro Augusto Fernandes. Revisão científica de Cristina Beckert e Desidério Murcho. Lisboa: Gradiva, 1979/1992, pág. 141,
[18] Ibidem. Págs. 98 e 9.
[19] Na obra citada de Peter Singer pode ainda ler-se, a páginas 233, a seguinte denúncia, no que respeita à ajuda efectiva que os países ricos do Norte se comprometeram a conceder aos países pobres do Sul, á época: Só a Suécia, a Holanda, a Noruega e alguns dos países árabes que exportam petróleo atingiram o modesto objetivo estabelecido pela ONU, de 0,7% do Produto Nacional Bruto. A Grã-Bretanha dá, oficialmente, 0,31% do seu PNB para a ajuda ao desenvolvimento, e mais uma pequena quantia, em forma de ajuda não oficial…A Alemanha dá 0,41% e o Japão dá 0,32%. Os Estados Unidos contribuem com 0,15% do seu PIB.
[20] Vieira, Padre António. Sermão de Sto. António aos Peixes. Sermões. Lisboa: Editores Reunidos e R.B.A. Editores, Público, 1994. Pág. 41.
[21] Ribeiro, Aquilino. Romance da Raposa. Posfácio. Amadora: Livraria Bertrand, 1975.
[22] Rosnay, Joël de. Le Macroscope, vers une vision globale. Paris, Seuil, 1975.
[23] Taylor, Gordon. Le jugemen dernier, trad. fr. Paris : Calmann-Lévy , 1970.
[24] Os últimos ensaios críticos de Sagan manifestam um crescente pessimismo e sentido crítico face ao acentuar dos fatores de crise ambiental, sem abandonar a sua crença no papel regenerador da ciência e das novas tecnologias, afirmando mesmo a convicção de que a ameaça da tragédia universal contribuirá para o entendimento entre os povos e as nações e para uma nova aliança entre as ciências e as religiões. Ver a coletânea publicada sob o título Bilhões & Bilhões.
[25] Rolston III, Holmes. Philosophy Gone Wild. Rolston Digital Archives in Colorado State University Library, 1986. Callicot, J.B. In Defense Of the Land Ethic. State University of New York Press, 1989.
[26] Ibidem.
[27] Referimo-nos genericamente aos Essays in Environment Philosophy, com o título In Defense of the Land Ethic, atualizados e editados conjuntamente em 1994 e particularmente ao que tem o número 13 Leopold’s Land Aesthetic, copyright 1982. Enfim, nesta curta panorâmica merece igualmente referência Hans Jonas e a sua “ética da responsabilidade”. Ver a obra The Imperative of Responsibility. In Search of an Ethics for the Technological Age, Chicago. Chicago & London, The University of Chicago Press, 1984. Onde o autor, judeu alemão emigrado para o Canadá e os EUA, perante a tremenda influência da técnica moderna sobre a natureza, formula um novo imperativo categórico para a ação do homem, mais além da máxima kantiana de conformação dos atos individuais com o princípio de uma lei universal, um novo quadro ético, o qual resulta da necessidade de configurar a conduta humana nos limites que salvaguardem a continuidade da vida e a sua diversidade. A versão inicial do texto remonta a 1972 e a sua publicação na obra citada a 1984.
[28] UNCHE, 1972. Action Plan for the Human Environment. B.5. Development and Environment. United Nations Conference on the Human Environment A/CONF.48/14/Rev.1 -June 1972 Stockholm, Sweden.
[29] Jorge de Sena (1919.1978), livre-pensador e resistente contra o regime fascista que subjugava Portugal à época, começou no Brasil um longo exílio, que só terminaria com a sua morte, já nos EUA. Em Agosto de 1959, viajou até ao Brasil, convidado pela Universidade da Bahia e pelo Governo Brasileiro para participar no IV Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros, tendo sido contratado como catedrático de Teoria da Literatura, em Assis, no Estado de S. Paulo. Em 1961, Jorge de Sena foi ensinar Literatura Portuguesa na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Araraquara. Permaneceu neste país seis anos, de intensa produção literária com uma dimensão filosófica.
[30] Sena, Jorge de. Carta a meus filhos, sobre os fuzilamentos de Goya, In Trinta Anos de Poesia. Lisboa: Edições 70. (1984)1998, pág. 124.
[31] Ibidem,A Paz, pág. 40.
[32] Queirós, António. A Ética Ambiental e a Moral no Século XXI, in Confluências Bioéticas. Lisboa: Ed. CFCUL, 2014, pág. 249.
Sem comentários:
Enviar um comentário