Origem e projeto filosófico de uma Bioética Global



António dos Santos Queirós[1]

Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, Portugal.



In Bioética, Filosofia e Biotecnologia,  Jorge Luis Gutiérrez / Sofia Valenzuela (organizadores)
Editora LiberArs, S.Paulo, Brasil, 2018. ISBN 978-85-9459-117-3. Pág.s 173-193https://www.liberars.com.br/bioetica-filosofia-e-biotecnologia




“ O que é digno de ser notado …é a ideia que o bem da comunidade biótica é a medida suprema do valor moral, da correção ou incorreção da ação…”[2]

“… O verdadeiro humanismo não começa por si próprio, devendo colocar o mundo antes da vida, a vida antes do Homem e o respeito pelos outros antes do amor próprio…”[3]

Pode existir uma Ética Global?


Segundo Cristina Beckert o projeto de uma Bioética Global procura integrar a Bioética Médica nos pressupostos da Ética da Terra de Aldo Leopold.[4] Convirá pois analisar os fundamentos da Ética da Terra, para entender o atual debate filosófico nesta matéria, não sem antes questionar o sentido do conceito contemporâneo de Ética.

A distinção wittgensteiniana entre a ética e a moral que é comum à generalidade das reflexões filosóficas contemporâneas, situa a moral na ordem das normas e convenções sociais e remete a ética para o plano da vivência pessoal. Ora se a ética emerge da subjetividade e da diversidade dos sujeitos individuais, não tem valor universal, o que constitui uma aporia aparentemente inultrapassável, que compromete a hipótese de formulação de uma Bioética Global.

O autor desta reflexão situa-se numa posição crítica face ao conceito dominante de ética e moral wittgensteiniano. Considera que a existência de valores morais universais pode ser reconhecido pela subjetividade de cada um e de todos os seres humanos, como o tem vindo a ser o direito internacional, dando origem a um novo paradigma ético, a diversas éticas práticas e novas convenções morais subordinadas a uma bioética global.

“A moral, no nosso modo de filosofar, é sempre uma expressão e representação determinada pelo contexto histórico e pela dominação social, o que lhe confere um caracter sectário e transitório. Necessitamos de uma teoria moral ( a que chamarei ética) que possa ser universal, intemporal  (projetada no presente e no futuro) e capaz de orientar a conduta individual, a ciência e as ideologias políticas, mas que não considere o homem como o produto final da evolução da Vida. A crítica ao etnocentrismo e a crítica ao antropocentrismo são os seus princípios fundadores e, com aquela afirmação, nos colocamos em divergência com a tese dominante, que situa a moral na ordem das normas e convenções sociais e remete a ética para o plano da vivência pessoal. Onde outros vêm antagonismo, vislumbramos nós uma complexa dialética.”[5]

Tal como não nos conformamos com a oposição ética individual-moral social, igualmente nos opomos à dicotomia filosofia-ciência.

“Convirá aqui abordar o problema da “causa das coisas” e a sua relação com o “ser”. O pré-conceito que concede à filosofia o domínio de se questionar sobre “o que significa ser” e atribui à ciência o domínio do estudo das “causas” fenomenológicas, pode reconduzir-nos ao velho mecanicismo e a uma espécie de nova escolástica. Onde aquela conceção, assim pré-determinada, encontra sobretudo oposição, n´s vislumbramos uma relação dialética. [6]

Clarifiquemos os conceitos: a crítica ao etnocentrismo tem como postulado:

"Etnocentrismo é uma atitude emocionalmente condicionada que faz considerar e julgar outras sociedades pelos critérios originados pela própria cultura. É fácil ver que esta atitude leva ao desprezo e ao ódio de todas as espécies de vida que são diferentes daquela do observador.” [7]

A crítica ao etnocentrismo conduz não só ao respeito por todas as culturas nacionais, e por todas as formas de expressão cultural, eruditas ou populares, mas também rejeita qualquer noção de superioridade de um modelo social, de “raça” ou etnia.

Em convergência com esta visão filosófica, a crítica filosófica ao antropocentrismo põe em causa a visão religiosa ou política que concede ao Homem, criatura eleita por Deus para presidir à criação divina, o direito absoluto a apropriar-se da Natureza para os seus fins, sem qualquer limite ou restrição e lhe permite o primado do crescimento económico sobre o desenvolvimento sustentável.

Neste contexto, ao contrário da história anterior da filosofia ocidental, cuja problemática tem por centro o homem, a filosofia ambiental dirige o pensamento para a razão de ser do mundo e da sua fenomenologia, para a descoberta da unicidade da Substância em todas as suas manifestações ou “modos”, no vocabulário do nosso Bento de Espinosa, sem que se transforme numa filosofia anti-humanista, pois a Natureza do homem, como de todos os entes e seres do universo, tem a sua origem na mesma “poeira das estrelas”.

O ponto de partida da renovação filosófica do séc. XX foi o conceito de ambiente e como seu desidrato supremo, a justificação racional para que a ética ambiental prevaleça sobre as conquistas mais avançadas da ciência cega e a mais democrática das democracias liberais e socialistas do passado séc. XX, geradoras da crise ambiental. Retomando as perguntas capitais que a obra de Espinosa colocou no advento da nossa modernidade, como pensar a explicação racional da existência do homem e do universo, como adequar o pensamento filosófico à razão de ser de tudo o que existe e como transformar a vida espiritual em plena compreensão e serena fruição da vida até ao seu limite? A Filosofia do Ambiente permite construir uma nova ontologia em crítica ao antropocentrismo, uma nova epistemologia, fundada na crítica ao etnocentrismo e uma nova teoria ética, de valor universal e de conteúdos práticos aplicáveis a todos os domínios sociais.

Tal como na filosofia de Espinosa e depois na de Antero, o impulso fundamental de reflexão da filosofia ambiental foi a questão ética e são os problemas morais. E assim chegamos a um novo conceito de razão, o conceito de “razão ambiental”, cujos fundamentos assentam na crítica ao antropocentrismo e ao etnocentrismo, na elaboração do conceito moderno de ambiente e nas contribuições essenciais dos filosofemas da ética da terra e da ética animal, que adiante vamos concetualizar.

Do paradigma conservacionista da natureza ao conceito de ambiente

Conceptualizamos o ambiente como o conceito que exprime as relações entre a natureza e a cultura, na complexidade e diversidade das paisagens culturais_ urbanas e rurais, completamente humanizadas ou em estado semisselvagem ( com menor influência antrópica). Incluindo o seu património material e imaterial, as suas formas e expressões culturais, a sua incomensurável relação afetiva com os incontáveis seres humanos que nela nasceram e a transformaram, transformando-se também. 

É certo que hoje não há praticamente quadros naturais puros mas sim paisagens humanizadas em maior ou menor grau e o seu equilíbrio ecológico é sempre dinâmico e relativo. Os defensores da Teoria Sintética da Evolução, partidários de um gradualismo filético que entende a evolução das espécies como resultado da convergência de mutações biológicas e mudanças ambientais[8]. Ou os seus contraditores, mais inclinados para as doutrinas do Equilíbrio intermitente, que enfatizam o facto de a paleontologia, em regra, não evidenciar modificações graduais e para os quais as espécies podem surgir num estado avançado, permanecer longamente com existência estável e depois perecer para dar origem a outras, contribuíram igualmente para compreendermos hoje a complexidade dos problemas da evolução e da extinção das espécies.[9]

As descobertas científicas permitem-nos ter a certeza apenas de que o equilíbrio dos ecossistemas favoráveis à vida depende de uma infinidade de relações geológicas, biológicas e físicas e reconhecem que quanto mais alta é a posição ocupada pelos organismos na cadeia alimentar, maior é a sua vulnerabilidade, podendo a destruição de algumas espécies afetar drasticamente todo o sistema.

Houve sempre extinções ao longo das várias épocas da história da vida e o património biogenético recuperou a sua riqueza e diversidade_ foi assim nos finais do Pérmico (com o desaparecimento das Trilobites), do Cretácico Terminal (o fim dos dinossáurios não-avianos), do Plistocénico superior (quando sucumbem os mamíferos oriundos da América do Sul) e do Quaternário (extermínio e morte de espécies contemporâneas do homem, como o tigre  dente-de-sabre e o mamute). O que hoje é dramático, conhecida a lei de bronze da Paleontologia, que postula a Irreversibilidade da Evolução, é o ritmo a que se processa a perda da biodiversidade, a destruição dos recursos naturais energéticos e a multiplicação dos efeitos poluidores que atingem não só o conjunto do planeta_a litosfera, a hidrosfera, a criosfera, a atmosfera e a biosfera, mas também e, com consequências imprevisíveis, o material genético fundamental, o ADN que conserva e reproduz os códigos da vida.

Mas, no lado oposto da crítica á conservação da natureza e da sua biodiversidade,  a tese do fim da natureza é a tese da dominação e inteligibilidade completas da natureza, o “sociocentrismo” de que fala Catherine Larrère e que assim procura justificar um modelo de crescimento social sem restrições e despojada de qualquer moralidade.

A visão ambientalista é o que melhor distingue o pensamento moderno do antigo: Admitiu-se a ideia de uma natureza criada por Deus, natura naturans ( é o primeiro momento da modernidade clássica), uma natureza-processo e depois  uma natureza-objeto, natura naturata, natureza artefacto, exterior ao homem, de que ele se separou ao instrumentalizá-la. Mas, como sublinha Larrère, os processos naturais continuam e a artificialização da natureza não é controlável pelo homem nos seus efeitos.[10] Acresce, que a filosofia ambiental reintegrou o homem na natureza, sem nenhum estatuto de domínio ou privilégio. Mas reconheceu na Vida Humana o ente mais complexo da evolução cósmica, que não o seu cume ou final.

Contudo, a extinção do homo sapiens sapiens e das espécies associadas à nossa evolução, um mundo imaginário de vegetais, micróbios e insetos, improvavelmente daria de novo origem à espécie humana ou mesmo aos mamíferos. E assim, concluímos nós, o humanismo regressa ao centro da reflexão moral, mas noutra visão ética: Se enquadrarmos o surgimento dos antepassados da espécie humana há 4 ou 5 milhões de anos, no quadro do tempo biológico, que é imenso, nada nos assegura que, tal como aconteceu com os dinossáurios há sessenta e cinco milhões de anos, o reino dos mamíferos não termine e outras formas de existência mais avançadas e inteligentes continuem a perpetuar a música da vida pelos espaços siderais. E ninguém pode imaginar hoje qual é o elo da cadeia onde o salto evolutivo se poderá  produzir, como ninguém sonhou antes que o tetravô da nossa condição de quadrúmanos fosse um insignificante roedor, que sobreviveu à extinção generalizada das espécies dominantes no final da era mesozoica.

Então, em consequência científica e imperativo ético, devemos igualmente considerar que os múltiplos laços entre todas as formas de vida (e mesmo destas com o ambiente abiótico), obrigam, para além do dever de preservação da nossa espécie, a conservar a diversidade dos seres e os seus nichos ambientais, de cujo equilíbrio (?) dinâmico, como na pirâmide trófica de Aldo Lepold,  tudo depende.[11]

E daqui decorre o princípio da preservação da Vida, antes do Homem e da Terra com toda a sua biodiversidade.

A Ética da Terra. The Land Ethic

Todas as éticas assentam sobre uma premissa: que o indivíduo é membro de uma comunidade interdependente”. A Ética da Terra alarga o conceito de comunidade:

“…The land ethic simply enlarges the boundaries of the community to include soils, water, plants, and   animals, or, collectively: the land “ [12]

Mas o reconhecimento do valor económico da conservação e usufruto pleno da biodiversidade pode ainda ser uma forma de recusar os valores da Ética da Terra e da Ética da Vida. Conduz geralmente a confinar a conservação da natureza aos parques e reservas, às espécies potencialmente úteis ao ser humano e à ação do Estado, deixando inteira liberdade à iniciativa privada. Parte da premissa, cientificamente falsa, de que os elementos com valor económico do biótopo podem existir na natureza sem a presença dos outros elementos.

A argumentação científica como suporte do discurso ambiental e moral, atravessa a  obra de referência da Ética da Terra de Aldo Leopold, um técnico florestal e não um académico (depois de Walth Whitman, e do transcendentalismo de David Thoreau e Waldo Emerson, a John Muir e G. Pinchot, pioneiros da gestão racional da floresta e do ambiente ou George Perkins Marsh), que a retira dos estudos de Darwin e dos avanços científicos da Ecologia.

O sentimento da necessidade de ajuda e defesa comum, desenvolvido ao longo do processo de seleção natural, gerou o conceito de comunidade, fundamento da ética. E é uma nova conceção da natureza que emerge, agora entendida como uma sociedade de plantas, animais, minerais, fluidos e gases, estreitamente ligados e interdependentes. Uma comunidade alargada aos entes naturais.

Nesta linha de pensamento, duas correntes emergiram em paralelo: o biocentrismo (modelador das organizações, Earth first !,  Greenpeace, Wilderness Society), que atribui um valor intrínseco a toda a entidade viva; e o ecocentrismo focalizado nos deveres que temos face à comunidade biótica de que fazemos parte. Não se trata de aplicar a novos objetos, como a natureza, as teorias morais pré-existentes. A natureza passa a estar incluída no nosso campo de reflexão moral, os nossos deveres, antes limitados aos seres humanos, passam a ser extensivos aos outros entes naturais.[13]

A Consciência Ecológica (Os deveres para com a Natureza), será assim, Conservation is a state of harmony between men and land…[14]

“The image commonly employed in conservation education is «the balance of nature», .this figure of speech fails to describe  accurately what little we know about the land mechanism. A much true image is the one employed in ecology: the biotic pyramid.”[15]

A pirâmide biótica e abiótica, que Aldo Leopold descreve assim:

“Plants absorb energy from the sun. This energy flows through a circuit called the biota, which may be represented a pyramid consisting of layers…The species of a layer are alike not in what they came from, or what they look like, but rather in what they eat…The lines of dependency for food and other services are called food chains…The pyramid is a tangle of chains so complex as to seem disorderly, yet the stability of the system proves is to be a highly organized structure. Its functioning depends of the co-operation and competition of its diverse parts.”[16]

Na perspetiva da cadeia biótica a classificação do homo sapiens na ordem dos Primatas, transforma os seus membros em “irmãos e primos “, integra o homem na família dos hominídeos, com gorilas e chimpanzés, e aparenta-o com macacos e lémures. O solo é nesta visão científica, o suporte da Vida, nele vivem e permanecem biliões de decompositores: Termite, red velvet mite, pseudoscorpion, springtal, earthworm, root tipe, nematode, fungi, protozoa, bacteria.

A Ética Animal. Animal Ethics

Caberia ao australiano Peter Singer e ao americano Tom Regan enfatizar os sentimentos e os direitos dos animais face à brutalidade dos processos produtivos modernos: clonagem genética, jaulas prisão, rações baseadas na carne triturada de animais mortos e saturadas de hormonas, violação sistemática dos ritmos naturais e das necessidades da vida animal,  tudo isto em função do lucro máximo.

Partindo da tese de que

 “…alguns animais não humanos parecem ser racionais e conscientes de si, concebendo-se como seres distintos que possuem um passado e um futuro…”, propõe-nos uma ética gradualista contra o assassinato  de animais, que no seu patamar superior estende aos chimpanzés, gorilas e orangotangos a mesma proteção devida aos seres humanos.” [17]

Questiona-nos então se esta restrição não deve ser alargada a todos os mamíferos, para reconhecer depois que, face a outros animais que não são seres racionais e autoconscientes, a sua argumentação enfraquece, postulando embora que é sempre inaceitável provocar a morte prematura de biliões de animais. No entanto, admite que há situações especiais em que pode não ser errado permitir a substituição, por morte, de uns animais por outros (o abate indolor das galinhas para alimento e para dar lugar a novos exemplares, como exemplo).  Mas conclui que lhe parece ser melhor elevar a princípio elementar  o evitar matá-los,  porque não são essenciais à alimentação humana, a menos que isso seja justificado tendo em vista a própria sobrevivência.

Em nome do princípio da igualdade, os dois autores referidos recusam o conceito da superioridade da espécie humana, que comparam ao racismo, por violar aquele princípio, censurando à maioria dos humanos o não reconhecimento da capacidade de sentir e sofrer dos animais. Nas suas obras afirmam que os animais são sujeitos de interesse em não sofrer e também, acrescenta Regan, são sujeitos de direito, por que são sujeitos de uma experiência de vida que possui valor intrínseco, a “Senciência” que não é senão a capacidade de sofrer ou sentir prazer ou felicidade. Sobre estes fundamentos postulam o mais radical imperativo moral: a ampliação do conceito de pessoa.

 “Proponho o uso de «pessoa» , no sentido de um ser racional e autoconsciente, para incorporar os elementos do sentido popular de «ser humano» que não são abrangidos por  «membro da espécie Homo Sapiens ».[18]

Singer, perante o sofrimento dos animais e dos seres humanos,  postula a obrigação ética de ajudar e vai desmontando uma a uma as objeções que se lhe opõem: cuidar de nós mesmos; deixar a cargo do governo…e a derradeira, o padrão alto da ajuda…

Peter Singer merece-nos uma referência especial, para assinalar as perseguições e boicotes de que foi vítima, em diversos países do mundo mais desenvolvido, Alemanha à cabeça, não diretamente por causa das conceções acerca da ética animal, mas sobretudo pela sua defesa de algumas formas de eutanásia. Os seus detratores tomaram a preservação da vida humana como bandeira, acusando-o de ignorar o seu valor intrínseco e, naturalmente, de se preocupar mais com os animais do que com as pessoas.

Não é o lugar, aqui, para explorarmos este último conceito na ótica do filósofo, mas importa realçar que as suas preocupações quanto à defesa dos direitos dos animais estão carregadas de “humanismo“ e o seu discurso crítico se preocupa sobremaneira com a hipocrisia da moral oficial no tratamento do conflito entre ricos e pobres, sejam pessoas ou países. Vejamos, resumidamente, os seus princípios no que toca ao dever de ajuda: Na obra citada, Singer denuncia, com as próprias cifras  do Presidente do Banco Mundial e os seus relatórios, o drama da “ pobreza absoluta “ no planeta, destacando a morte, que classifica como assassinato, de 14 milhões de crianças por ano, devido a carências nutritivas, ao pôr em evidência que o mundo produz alimentos e bens suficientes para erradicar estes problemas, pelo que a sua génese está nas relações injustas de distribuição. [19]

Postulando a obrigação ética de ajudar, vai desmontando uma a uma as objeções que se lhe opõem _ cuidar de nós mesmos; direitos de propriedade; a ética da triagem populacional; deixar a cargo do governo…e a derradeira, o padrão alto da ajuda. Para concluir que podemos e devemos impedir uma parcela da pobreza absoluta, sem que isso implique de facto sacrificar nada de importância moral comparável, sendo a prioridade  “… as necessidades de vida ou morte dos outros” e deixando explícito que, se é mais importante lutar politicamente pelos direitos dos mais pobres, nada nos inibe de lhe somar a ajuda concreta possível. Torna assim claro que há, entre a fome no mundo e a matança brutal dos animais, um padrão civilizacional comum, o da sociedade de consumo atual  e do seu modo amoral e desigual de produção e circulação das mercadorias.

Em apoio desta linha de pensamento, o conhecimento aprofundado das comunidades animais permitiu revelar formas notáveis da sua organização comunitária e inusitadas capacidades: a inteligência dos golfinhos, o uso de instrumentos de trabalho por algumas espécies de chimpanzés, o sistema de vida igualitária das comunidades de aves de rapina, o formidável instinto maternal das baleias, complexos e ternos jogos nupciais...enfim,  potências animais até então ignoradas, que em comum parecem ter a capacidade afetiva, de sofrimento e de comunicação, elementos chave para fundar uma nova perspectiva ética.  

Esta visão filosófica  evoca o pensamento moral de António Vieira: “Comerem-se uns animais aos outros é voracidade e sevícia, não estatuto da natureza.”[20] “ Mas também o premonitório filosofema aquiliniano “… A natureza não tem simpatias especiais para nenhum dos seus seres .” [21]

Pluralismo e Controvérsia Filosófica

Um dos mais populares defensores de uma ética da terra, Joel de Rosnay, atingiu a notoriedade com o título sugestivo de O macroscópio. Para uma visão global, seguido de O Cérebro Planetário.[22] O macroscópio, ao invés do microscópio, amplia os laços existentes entre os grandes sistemas ecológicos e encara a terra e o conjunto das organizações e relações sociais _ desde as cidades às empresas, como autênticos organismos biológicos, onde a espécie humana é considerada apenas como uma das suas células constituintes, entre muitas outras espécies! Ou, melhor dizendo, como os “neurónios” da terra, células de um cérebro em formação, de uma consciência planetária nascendo à escala do planeta.

O equilíbrio ecológico dos sistemas sociais seria assegurado pelo funcionamento pleno do mercado, que no entanto carece de ser humanizado, através duma reforma social inspirada nos sistemas biológicos, pela descentralização de decisões e o incentivo à participação por intermédio de múltiplas redes interativas. Enfim, a exclusão pela competição, segundo Rosnay, típica dos ecossistemas e portanto aplicável às relações Norte/Sul, entre países ricos e pobres, seria o resultado daquela “seleção natural”, carecendo também de ser corrigida por intermédio de uma nova ética.

Gordon Taylor, partindo da noção de que a terra é um vasto ecossistema em que tudo está ligado, acusa a espécie humana de preparar o apocalipse através do crescimento demográfico excessivo e dos efeitos perversos das tecnologias atuais.[23]

Enumera toda uma série de relações de causa e efeito entre a degradação do ambiente e a perda de qualidade de vida do homem moderno - a poluição provocada pelos metais e o DDT gera perturbações mentais, os resíduos radioativos ameaçam a nossa herança genética, a mobilidade social afronta a natureza humana que assenta em sólidos instintos territoriais, provocando stress, etc. E daqui parte para a defesa de um projeto de reorganização da sociedade com base no campo, tendo como modelo a sociedade pré-industrial, preconizando em paralelo a rotura com a tradição filosófica do iluminismo e a visão antropocêntrica do homem.

As ideias esboçadas por estes autores aproximam-nos das principais teses cientifico-filosóficas, que fundamentam a ética da terra e atingiram notoriedade particular através da hipótese de Gaia, enunciada em 1979 pelo inglês James Lovelock, logo suportada mediaticamente pelo americano Carl Sagan.[24]

A Terra seria afinal um superorganismo vivo, criador da sua própria biodiversidade. Lovelock aponta a história do clima como um dos principais argumentos em favor desta perspectiva, considerando a superfície terrestre o principal agente produtor da vida, geradora de uma atmosfera há pelo menos três milhões e meio de anos, favorável à existência de seres vivos. Enfim, sendo o homem a principal ameaça para a vida, mais do que a tecnologia, o Planeta, qual mãe terrível e monstruoso demiurgo, saberia agir intencionalmente e depois de reagir às mais brutais agressões ambientais, poderia exterminar o próprio ser humano através de praga ou mutação genética universal. Em contrapartida, recompensará a harmonia das raças e culturas e o uso das tecnologias não poluentes. Daí, até à crença regeneradora de uma nova tecnociência e ao futurismo visionário de utilização dos outros planetas através da apropriação de tecnologias benévolas pela raça humana, vai apenas um passo.

Eis sumariamente as duas faces da mesma moeda filosófica que absolutiza o papel da tecnologia: ou o regresso atávico ao campo, à maneira de Gordon Taylor ou a salvação pelas técnicas ecologicamente puras, sobre um fundo comum de crítica ao antropocentrismo.

A primeira observação que estas teorias nos sugerem é para assinalar a sua localização na geografia geopolítica. O seu nascimento é indissociável das preocupações de uma elite técnico-industrial a braços, simultaneamente, com a  crise ambiental dos seus países e do modelo anglo-saxónico e ocidental de produção, que globalizou o mundo. Elas emergem precisamente nos finais da década de 70, perante o crescimento da competição internacional pela liderança, marcada pela ascensão económica do Japão e da Alemanha, mas também dos países industrializados da Ásia/Pacífico e têm de enfrentar ainda o crescente protagonismo mundial dos países dependentes do hemisfério sul.

A segunda reflexão preocupa-se com a história oculta do progresso tecnológico: basta avaliar o último grande avanço energético, celebrado nos anos 50 com a energia nuclear, glorificada então por não produzir gás carbónico e produtos ácidos, mas de facto encobrindo os efeitos catastróficos das fugas,  como os acidentes e resíduos nucleares, de Three Miles Island a Chernobyl.

O que nos conduz à terceira apreciação crítica: improvavelmente qualquer tecnologia algum dia inventada se mostrará mais eficaz do que os processos naturais de seleção, reutilização e reciclagem, que ocorrem nos principais ecossistemas favoráveis à vida e deram origem aos grandes quadros da paisagem natural humanizada.

E, finalmente, mas não menos importante, a ênfase colocada por alguns políticos na mundialização do ambiente e no controle, gestão centralizada e concentração de bancos da biodiversidade, traduzida, por exemplo, no atrativo slogan de Al Gore de um Plano Marshall para o Ambiente, leva-nos a recordar que o plano homólogo, apresentado como via para a reconstrução da Europa devastada pela II Guerra Mundial, serviu igualmente para consolidar a hegemonia americana no ocidente, no contexto da “guerra fria” com os países de leste.

As posições atuais dos defensores da ética da terra, como Rolston III e Callicot, conduzem ao reconhecimento “…do valor intrínseco de todo o componente ecológico”, no dizer do primeiro, e ao princípio de que “… o efeito sobre os sistemas ecológicos é o fator decisivo na determinação da qualidade ética das acções.” [25]

Demarcando - se do radicalismo de Rolston III, Callicot defende o direito à vida de plantas e animais imprescindíveis ao equilíbrio ecológico de determinadas comunidades bióticas, exemplificadas pelo caso dos felinos ameaçados de extinção nos seus habitats da América do Norte, mas aceitando igualmente que outros animais e plantas sejam destruídos quando constituem uma ameaça mortal para a comunidade natural de determinado sítio e, consequentemente, o controle das espécies por parte do homem.[26]

A absolutização dos quadros naturais significa não ter em conta que todos esses meios são hoje obra comum da espécie humana e podem levar ao extremismo de pretender reduzir o género humano ao peso numérico da  “comunidade dos ursos!”

Tudo isto é suficiente para não reduzir a reflexão dos defensores da ética da terra a uma obsessão de lunáticos ou a um problema regional dos países ricos. Se os autores citados, Rolston III e Callicot,  não enfatizassem o princípio do “valor intrínseco” das espécies, poderíamos inferir que a sua crítica estaria dirigida contra os excessos da industrialização agropecuária da terra, que conduz à monocultura e à liquidação das espécies de menor rendimento económico, abrindo o caminho à extinção da biodiversidade, à destruição dos solos agricultáveis e à colonização dos nichos vazios pelas espécies infestantes e ao desenvolvimento das pragas.

Nas obras mais recentes de Callicot, as suas propostas, que desde o início procuram conjugar a intervenção dos defensores da ética animal e da ética da terra, surgem - nos com uma tonalidade reformista e conciliadora, no plano social, aconselhando os agricultores privados a reservar (sacrificar) uma parte da terra produtiva para o livre desenvolvimento da vida selvagem, não apenas em nome da conservação da natureza, mas também por razões estéticas de usufruto da beleza da paisagem natural, através do espetáculo da sua diversidade, particularmente no que se refere às novas gerações, na linha do pensamento de Aldo Leopold, de quem se afirma discípulo e continuador. [27]

Um novo paradigma político-moral

Se o objeto da ciência é de explicar como funciona o mundo, e neste sentido as leis científicas são amorais, já a resposta ao imperativo categórico de “como viver no mundo”, pertence ao domínio da filosofia e da ética e é neste sentido que a ética ambiental interroga o valor da ciência e do desenvolvimento social da humanidade, não apenas na dimensão antropocêntrica, mas para além dela e de acordo com a ciência moderna, a Vida antes do Homem e a Terra antes da Vida.

No contexto das Conferências Mundiais do Ambiente do século XX, podemos seguir o emergir deste paradigma moral, quando, colocado em crise o nosso modelo civilizacional pela crítica da Filosofia a cada nova descoberta fundamental das ciências, fundamentou a elaboração dos novos princípios da Filosofia Ambiental e postula a construção da nova  Ética Ambiental, com valor prático.

Da primeira Conferência da ONU, realizada em Estocolmo, 1972, emergem o princípio da Casa Comum "…o homem tem duas pátrias, a sua e o planeta Terra“; o princípio da comunidade e solidariedade planetária fundadoras de uma nova ordem (ética) internacional e  o princípio de defesa da Vida Planetária antes do Humanismo.[28] 

Na segunda parte do seu Relatório, dedicada à elaboração de uma nova visão científica sobre a unidade, imprevisibilidade, continuidade e interdependência do cosmos, introduz-se, no que respeita ao entendimento da realidade da matéria o conceito de «plasma», que permitiu compreender a origem do Universo e as condições que geraram na Terra as condições de transformação criadoras e conservadoras da vida: a água, que arrefeceu a temperatura do planeta e moldou a sua crusta, os compostos orgânicos de carbono, fontes da vida, a atmosfera de oxigénio e ozono, protetores da vida, a fotossíntese, base dos ciclos do carbono e do oxigénio, a criação da biosfera e a explosão da vida no Câmbrico, o complexo, vulnerável e imprevisível processo de adaptação e seleção natural, que gerou sempre, até ao nosso tempo, uma crescente biodiversidade e diversidade natural, em instável equilíbrio.

A filosofia ambiental reintegrou o homem na natureza, sem nenhum estatuto de domínio ou privilégio.

Assim sendo, o conceito de “razão ambientalista” moderna começa a formular-se a partir da formulação de um novo imperativo categórico para a ação do homem, mais além da máxima kantiana de conformação dos atos individuais com o princípio de uma lei universal, um novo quadro ético, o qual resulta da necessidade de configurar a conduta humana nos limites que salvaguardem a continuidade da vida e a sua diversidade (Hans Jonas, 1984).

O imperativo ético da dignidade e o imperativo ético da paz, de Jorge de Sena[29]

Antero de Quental anunciava o advento de uma nova arte, mais universal, tendo a musica como paradigma; natural é pois que a poética literária alimentasse também a nova Filosofia.

“Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém

vale mais que uma vida ou a alegria de tê-la.

É isto o que mais importa - essa alegria.

Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto

não é senão essa alegria que vem

de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez alguém

está menos vivo ou sofre ou morre

para que um só de vós resista um pouco mais

à morte que é de todos e virá. “[30]

E ao “imperativo ético da dignidade”, que questiona a exploração do homem pelo homem,  Jorge de Sena, poeta e filósofo, junta um novo imperativo categórico da “paz perpétua”:

“Na insólita fortuna da desgraça,

[...]

 nesta insólita fortuna, à luz que vem

oh só em poeiras inofensivas, rezo

a mim mesmo para não perder a memória,

por vós, para que saibais sempre lembrar-vos

de que tudo se perde onde se perde a paz,

e primeiro que tudo se perde a liberdade.”  [31]

Depois de escritos estes pensamentos, que questionam a legitimidade moral da exploração do homem pelo homem e da guerra, cem obras de filosofia política, tornaram-se como que desnecessárias e prolixas.

O estado de guerra, que nas suas causas tem sempre a apropriação da riqueza dos povos e das nações, fruto do trabalho social, à luz dos ensinamentos da história das democracias liberais e das democracias socialistas, é incompatível com a conservação e aprofundamento da democracia e contribui para criar as condições para a sua limitação e degeneração. Se recusarmos o imperativo ético da destruição de todo o arsenal atómico, de guerra química e biológica e de construção da sustentabilidade do nosso modo de produção económica e financeira, então, acharemos a paz maldita e eterna no holocausto dos filhos dos nossos filhos.

O respeito pela dignidade do homem cidadão e pela paz perpétua, assim reunidos pelo mesmo juízo moral, constituem um primordial e unificado corolário político das Éticas Ambientais.

Paradoxo e superação ética do conceito de família, cultura e nação        

A “Eva mitocondrial” terá surgido na África Oriental há 200.000 anos e o “Adão cromossómico” na África subsariana há 140.000 anos. Tal significa que todos os seres humanos são descendentes, pela via mitocondrial, da mesma mãe ancestral, sendo que das outras mulheres desse tempo remoto, em algum lugar da genealogia se interrompeu a descendência feminina, substituída por uma nova geração masculina: neste caso, se não se manteve o ADN mitocondrial, conservou-se o ADN cromossomático.  A mensagem moral, comum a muitas religiões e filosofias, que todos os seres humanos são irmãos na mesma família humana, fica fundamentada na ciência moderna.

Assim como as mitocôndrias são herdadas pela via maternal, os cromossomos são herdadas por meio do pai. Portanto, é válido para aplicar os mesmos princípios com estes. O ancestral comum mais próximo, apelidado de Adam cromossômico, viveu num período estimado entre 60.000 e 142.000 anos. Então, todos os seres humanos contemporâneos, tiveram a sua origem em África, num período entre 100.000 e 200.000 anos atrás. Durante a última glaciação, os descendentes dos primitivos Homo Sapiens terão atravessado o estreito de Bering, penetrando na Europa e na Ásia e, seguindo caminho, por vales, rios e oceanos, atingiram todos os continentes.

Enfim, em sentido ético, as fronteiras que configuraram as nações primitivas e modernas, e permitiram lançar novos ramos da cultura humana, organizar o progresso económico e os exércitos nacionais, devem ser progressivamente abatidas por um imperativo moral, pois, tal como o racismo não tem fundamento científico e a cor da pele resulta da adaptação do ser humano aos diferentes ambientes da Terra, sabemos hoje que qualquer guerra, por mais legítima ou defensiva, será sempre travada entre membros da mesma família, descendentes de antiquíssimos progenitores. E com a queda daquelas fronteiras inumanas, deverá progressivamente ser superado o estatuto de poder e exploração do homem pelo homem, do homem sobre a mulher, da nova sobre a geração envelhecida, que o estado e os seus corpos repressivos, leis e costumes, historicamente garantiram, porque no plano moral será o mesmo que subjugar pelo capital ou por outro  poder os mais fracos do nosso círculo familiar planetário.

            Estamos finalmente em condições de sistematizar o conceito de “razão ambiental” e concluir depois a reflexão sobre o problema da construção de uma Bioética Global

A razão ambiental

A “razão ambiental” moderna formula um novo imperativo categórico para a ação do homem, mais além da máxima kantiana de conformação dos atos individuais com o princípio de uma lei universal, um novo quadro ético, o qual resulta da necessidade de configurar a conduta humana nos limites que salvaguardem a continuidade da vida e a sua diversidade (Hans Jonas).

A razão ambiental constrói a sua própria ética, como ética de princípios e ética aplicada, com base na crítica ao antropocentrismo e ao etnocentrismo.

Com base nestes dois axiomas ela incorpora novos conceitos morais, da Ética da Terra e da Ética Animal, que alargam o conceito de comunidade a todos os entes da natureza e ampliam o conceito de pessoa, ao menos aos animais que possuem capacidade de sentir e sofrer, em particular dos que nos estão mais próximos na cadeia evolutiva.

A razão ambiental incorpora também uma Bioética Global, que reposiciona o Homem dentro da Natureza, mas sem estatuto de privilégio e atribui à sua espécie um estatuto superior de valia moral, pela sua paradoxal capacidade de criar e destruir a biodiversidade, mas também um estatuto de igualdade moral entre os seus múltiplos indivíduos, filhos primogénitos da mesma mãe mitocondrial e do mesmo pai cromossomático. E coloca o homem antes da Vida e a Vida antes da Terra, sem sombra de anti-humanismo.

A razão ambiental integra ainda uma nova Ética Política, e uma nova visão crítica da alienação dos cidadãos, uma nova Ética Política que elaborou o princípio da Casa Comum, o homem tem duas casas, a sua e o planeta, base dos princípios da sustentabilidade, da solidariedade e da equidade e se enriquece com dois novos imperativos categóricos, o imperativo da dignidade e o imperativo da paz perpétua, que vai muito para além da consigna kantiana.

Da Bioética Médica à Bioética Global

A Bioética Médica trata dos princípios e padrões da conduta humana no campo da medicina e avalia moralmente o uso das suas técnicas e a relação entre cuidadores e a pessoa moral, aqui entendida não apenas na sua identidade biológica mas como cidadão e sujeito de direitos e deveres cívicos e morais, pelo que a Bioética avalia também o valor da relação moral do estado com os seus cidadãos, numa dimensão político-moral.

O intenso debate científico e sobre temas da moralidade e da ética aplicada, ainda no século XX, pode estabelecer um consenso geral acerca dos princípios da bioética prática no campo da saúde: Dignidade. Beneficência. Autonomia. Consentimento Informado. Vulnerabilidade. Privacidade. Igualdade. Diversidade cultural. Solidariedade. Sustentabilidade.

E o conceito de cuidado (care) que preside à área da Saúde relativo aos seres humanos retorna à restante natureza, ao ambiente de toda a Terra.

Mas a sua aplicação suscita múltiplas questões dilemáticas e intensa controvérsia, pois nele se defrontam diferentes ideologias, cosmovisões, convicções religiosas, conceitos científicos e filosofias políticas. Tais como, a definição da identidade física, psicológica e ética da pessoa, questão suscitada pela engenharia genética, pela mudança de género, pelas patologias e disfunções psíquicas, pela doação e receção de órgãos ou pela maternidade de substituição; ou a questão do princípio e do fim da pessoa, problemas suscitados pelo enquadramento moral do aborto e da eutanásia…

Aqui queremos evidenciar a relevância da filosofia política e a necessidade de regressar ao debate filosófico sobre o conceito de alienação.

Partindo do quadro que atrás traçámos, de onde emerge um novo conceito de razão ambiental, podemos estabelecer os princípios que lhe correspondem no domínio da filosofia e da ética política:

“O princípio da cidadania ou da dignidade, aplicado em conjunto com o princípio da paz perpétua (Jorge de Sena),  com a  subordinação da economia, da finança e da política à ética ambiental, determina o dever ao Estado de garantir aos seus cidadãos  o direito à paz, ao trabalho, à educação, saúde e assistência na velhice, o acesso à justiça, à conservação da biodiversidade e à liberdade, sim, a liberdade está colocada nesta ordem, pois desaparece com a guerra e vale menos sem o trabalho e os outros direitos sociais e com a destruição da diversidade da vida, as comunidades humanas não terão futuro.

Tais princípios, que estão vertidos nos 30 artigos da Declaração Universal dos Direitos do Homem, atualmente truncados, mutilados e reduzidos às liberdades políticas formais, cometem ao Estado democrático, liberal ou socialista, o dever adicional de combater contra a sua própria corrupção e decomposição.

Em razão de um mundo onde prevaleça o primado da ética sobre a moral política que, atualmente, adota como único princípio válido o de que os meios justificam os fins; o primado da ética sobre a justiça de classe que anuncia, como fim da história e ordem natural da sociedade, o triunfo da exclusão social; e o primado da ética sobre a história, sangrenta, de todas as civilizações.”[32]

Tal é o programa de combate cívico (e ético) que emerge como imperativo político dos pressupostos filosóficos das novas éticas ambientais.



[1] Investigador e professor, nas áreas da Filosofia Ambiental e da Ética. No Centro de Filosofia da U. Lisboa, visitando o U. Salamanca e a U. Sorbonne. Investigador na área do Turismo Cultural, Turismo de Natureza e Desenvolvimento Sustentável na U. de Aveiro. Em Educação, no Centro de investigação Way Ching da U. Hong Kong. Doutor em Filosofia das Ciências, Mestre em Filosofia da Natureza e do Ambiente. Mestre em Teoria da Arte. Publicou 12 livros, 28 capítulos de livros e 61 artigos em revistas científicas. Dirigiu 11 filmes científicos. Como editor, publicou mais de 60 títulos. Presidente da Associação de Museus e Centros de Ciência de Portugal. Secretário-geral da Câmara de Cooperação e Desenvolvimento Portugal-China.
[2]  Rolston III, Holmes. Philosophy gone Wild, 1989, pág. 19.
[3]  Strauss, Lévi, citado da obra  A Origem das Maneiras de Comer à Mesa, na obra de Antoine Danchin Uma Aurora de Pedras. Coimbra, Edições Almedina, 2009.
[4] Beckert, Cristina. Ética. Lisboa: Ed. CFUL, Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2012, pág.s 115, 212. A autora refere-se à obra de Van Ranssaeler Potter, o médico oncologista norte-americano que lançou o debate, Global Ethics, 1988.

5] Queirós, António. A Ética Ambiental e a Moral no Século XXI, in Confluências Bioéticas, edit. por Antóno Barbosa e Jorge Marques da Silva. Lisboa: Ed. CFCUL, Centro de Filosofia das Ciências da Universidade de Lisboa, 2014, pág. 238.
Esta posição de princípio, foi primeiro apresentada no Colóquio Internacional Philosophy, in the twentieth century, organizado pelo Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, em 2012 e com o título The dawning of the Environmental Ethics in the 21st century, problematizada no XXIII World Congress of Philosophy, Athens, em 2013.
[6] Ibidem, pág.s 227 e 228.
[7] Dias, Jorge. Estudos de Antropologia, Volume I, Uma introdução histórica etnografia portuguesa, publicado em 1961. Reed. em Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, pág. 219. 
[8] Também chamados de neodarwinistas, como Julian Huxley e George Gaylord.
[9] Propostas por N. Elredge e S. Gould.
[10] Larrère, Catherine, Larrère, Raphaël. Du Bon Usage de La Nature. Aubier, Paris, 1997. Editado para Português pelo Instituto Piaget.
[11] O conceito de equilíbrio da natureza está há muito sob a crítica das ciências do ambiente, incluindo a fundamentação científica desenvolvida por Leopold. Equilíbrio e caos coexistem no mesmo processo de evolução.
[12] Leopold, Aldo. A Sand County Almanac. New York: Oxford University Press, 1949. Pág. 239.
[13] Quanto aos defensores da deep ecology não julgam necessário desenvolver qualquer ética ambiental.
[14] Ibidem. Pág. 243
[15] Ibidem. Pág. 251
[16] Ibidem. Págs. 251 e 252
[17] Peter, Singer. Ética Prática, do capítulo Tirar a Vida de Animais, Tradução de Álvaro Augusto Fernandes. Revisão científica de Cristina Beckert e Desidério Murcho. Lisboa: Gradiva, 1979/1992, pág. 141,
[18] Ibidem. Págs. 98 e 9.
[19] Na obra citada de Peter Singer pode ainda ler-se, a páginas 233, a seguinte denúncia, no que respeita à ajuda efectiva que os países ricos do Norte se comprometeram a conceder aos países pobres do Sul, á época: Só a Suécia, a Holanda, a Noruega e alguns dos países árabes que exportam petróleo atingiram o modesto objetivo estabelecido pela ONU, de 0,7% do Produto Nacional Bruto. A Grã-Bretanha dá, oficialmente, 0,31% do seu PNB para a ajuda ao desenvolvimento, e mais uma pequena quantia, em forma de ajuda não oficial…A Alemanha dá 0,41% e o Japão dá 0,32%. Os Estados Unidos contribuem com 0,15% do seu PIB. 
[20] Vieira, Padre António. Sermão de Sto. António aos Peixes. Sermões. Lisboa: Editores Reunidos e R.B.A. Editores, Público, 1994. Pág. 41.
[21] Ribeiro, Aquilino. Romance da Raposa. Posfácio. Amadora: Livraria Bertrand, 1975. 
[22] Rosnay, Joël de. Le Macroscope, vers une vision globale. Paris, Seuil, 1975.
[23] Taylor, Gordon. Le jugemen dernier, trad. fr. Paris : Calmann-Lévy , 1970.
[24] Os últimos ensaios críticos de Sagan manifestam um crescente pessimismo e sentido crítico face ao acentuar dos fatores de crise ambiental, sem abandonar a sua crença no papel regenerador da ciência e das novas tecnologias, afirmando mesmo a convicção de que a ameaça da tragédia universal contribuirá para o entendimento entre os povos e as nações e para uma nova aliança entre as ciências e as religiões. Ver a coletânea publicada sob o título Bilhões & Bilhões.
[25] Rolston III, Holmes. Philosophy Gone Wild. Rolston Digital Archives in Colorado State University Library, 1986. Callicot, J.B. In Defense Of the Land Ethic. State University of New York Press, 1989.
[26] Ibidem.
[27] Referimo-nos genericamente aos Essays in Environment Philosophy, com o título In Defense of the Land Ethic, atualizados e editados conjuntamente em 1994 e particularmente ao que tem o número 13 Leopold’s Land Aesthetic, copyright 1982. Enfim, nesta curta panorâmica merece igualmente referência Hans Jonas e a sua “ética da responsabilidade”. Ver a obra The Imperative of Responsibility. In Search of an Ethics for the Technological Age, Chicago. Chicago & London, The University of Chicago Press, 1984. Onde o autor, judeu alemão emigrado para o Canadá e os EUA, perante a tremenda influência da técnica moderna sobre a natureza, formula um novo imperativo categórico para a ação do homem, mais além da máxima kantiana de conformação dos atos individuais com o princípio de uma lei universal, um novo quadro ético, o qual resulta da necessidade de configurar a conduta humana nos limites que salvaguardem a continuidade da vida e a sua diversidade. A versão inicial do texto remonta a 1972 e a sua publicação na obra citada a 1984.
[28] UNCHE, 1972. Action Plan for the Human Environment. B.5. Development and Environment. United Nations Conference on the Human Environment A/CONF.48/14/Rev.1 -June 1972 Stockholm, Sweden. 
[29] Jorge de Sena (1919.1978), livre-pensador e resistente contra o regime fascista que subjugava Portugal à época, começou no Brasil um longo exílio, que só terminaria com a sua morte, já nos EUA. Em Agosto de 1959, viajou até ao Brasil, convidado pela Universidade da Bahia e pelo Governo Brasileiro para participar no IV Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros, tendo sido contratado como catedrático de Teoria da Literatura, em Assis, no Estado de S. Paulo. Em 1961, Jorge de Sena foi ensinar Literatura Portuguesa na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Araraquara. Permaneceu neste país seis anos, de intensa produção literária com uma dimensão filosófica.
[30] Sena, Jorge de. Carta a meus filhos, sobre os fuzilamentos de Goya, In Trinta Anos de Poesia. Lisboa: Edições 70. (1984)1998, pág. 124.
[31] Ibidem,A Paz, pág. 40. 
[32] Queirós, António. A Ética Ambiental e a Moral no Século XXI, in Confluências Bioéticas. Lisboa: Ed. CFCUL, 2014, pág. 249.

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