Ucrânia: Quando os militares procuram a paz e os políticos, a guerra

“A guerra é um assunto de importância vital para o Estado, o reino da vida ou da morte, o caminho para a sobrevivência ou a ruína. É indispensável estudá-la profundamente." Sun Tzu (544-496 a.C./Século IV A.C.)

O general Mark Alexander Milley, presidente do Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas dos EUA, questionado sobre as perspetivas para a diplomacia na Ucrânia, observou que a recusa inicial em negociar na Primeira Guerra Mundial agravou o sofrimento humano e levou a milhões de baixas. "Então, quando houver uma oportunidade de negociar, quando a paz puder ser alcançada... aproveite o momento", disse Milley no Economic Club of New York. Essa oportunidade está aberta agora, com a iniciativa da paz da China, expressa no documento “A Posição da China sobre a solução política da crise na Ucrânia”. Mas precisamos de afastar do debate político desta iniciativa as falácias, para que todos as nações a possam analisar como uma proposta sincera e coerente com a vontade de paz desse país .

A neutralidade militar da China, como do Brasil, da África do Sul, da Índia e de outros países, que desde sempre afirmaram a sua posição de princípio de não fornecer armas a nenhum dos contentores, não pode ser confundida, com neutralidade política. Essa recusa, é igualmente assumida por países como Israel, a Turquia, e a Hungria, não obstante estes pertencerem a UE e à NATO. A própria Coreia da Sul enviou máscaras de gás, coletes à prova de balas e suprimentos médicos para a Ucrânia no passado, mas recusou-se a fornecer armas letais, tal como a Arábia Saudita, tradicional aliado dos EUA. Foi esta posição de neutralidade militar, que permitiu ao antigo 1º ministro israelita, Naftali Bennett, manter desde o início do avanço das tropas russas sobe a Ucrânia, conversações diretas entre os dois governos. E que a Turquia acolhesse as delegações dos dois países, em conversações que levaram a um acordo de cessar-fogo e de paz, logo no início da guerra e do mês de março, abandonado pela Ucrânia com o argumento de que o massacre de Bucha lhe punha fim! Agora, é nas Nações Unidas e nos países não beligerantes, que se encontra a única reserva de mediação negocial.

Não é a China que conspira para enviar armas à Rússia, no futuro. Quem tem de explicar o fornecimento de armamento e equipamento militar à Rússia, durante a guerra civil de 2014 a 2021, já depois do embargo aprovado pela União Europeia, são os seus países produtores da indústria de guerra. E, a própria Ucrânia, cujo complexo militar-industrial continuou a ter como cliente número três, a Federação Russa.

Por detrás das calúnias contra a China, escondem-se  os traficantes de armas 

De acordo com o Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz, sediado em Estocolmo, entre 2017 e 2021 a Ucrânia ocupava o 14º lugar na lista dos maiores exportadores de armamento. Os seus clientes principais foram a China e a Tailândia, e, por estranho que pareça e tem sido obliterado, a Rússia manteve-se em terceiro lugar como seu cliente, apesar da guerra civil que, depois do golpe de estado de 2014, continuou a opor o Donbass, apoiado pela Rússia, aos dois governos ucranianos dos presidentes Poroshenko e Zelensky nesse mesmo período, 2014 a 2021. 

Em paralelo, e refiro como fonte o consórcio jornalístico Investigate Europe,  dez países da União Europeia exportaram armas para a Rússia depois do embargo de 2014. A França vendeu 152 milhões €, através das empresas Safran e Thales, cujo principal acionista é o Estado francês. O número de licenças de produção de material militar emitidas por este país aumentou exponencialmente em 2015, logo após o embargo.  A Alemanha, exportou então 121,8 milhões de euros. O Governo de Matteo Renzi autorizou a empresa italiana Iveco a vender 25 milhões de euros de veículos terrestres à Rússia. República Checa, Áustria, Bulgária, Croácia, Finlândia, Eslováquia e Espanha repartiram os milhões sobrantes. A entidade do Conselho da UE que regista o comércio de armamento (Croam), confrontada com esta violação grosseira do embargo, invocou a legalidade do negócio, afirmando que o embargo de armas da UE continha a isenção de contratos celebrados antes de 1 de Agosto de 2014 ou contratos acessórios necessários para a execução de tais contratos! Um malabarismo legal, que não isenta os governos e os vendedores que o cozinharam.  Estes equipamentos podem agora ser encontrados em veículos terrestres, caças e helicópteros que operam na frente de batalha e num sem número de armas ofensivas.

Até ao início da guerra direta com a Rússia, em 24.02.2022, a Ucrânia continuava a ser um dos maiores fabricantes de aviões, de tanques e de artilharia do mundo, com a Ukroboronpom, a associação de empresas ucranianas da área de indústria de Defesa, agregando nomeadamente os produtores estatais. Mas, no ano anterior a esta guerra, em 1 de outubro de 2021, a empresa transformou-se numa sociedade anónima de responsabilidade limitada, quando o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelenskyy, assinou a Lei nº 1630-IX. O processo de privatização, iniciado em julho desse ano no parlamento ucraniano (Rada),  foi preparado pelo grupo de trabalho interdepartamental estabelecido com base no Comitê de Reforma da Ukroboronprom State Concern”, que “…incluiu as embaixadas do G7 e o Escritório de Ligação da NATO”, conforme a empresa anuncia, no seu próprio site, com o objetivo de “Fornecer às Forças Armadas da Ucrânia os mais recentes modelos de alta tecnologia de armamentos e equipamentos militares”. É um poderoso indício de que os países do G7 preparavam o agudizar do conflito no Donbass, conforme já reconhecera a confissão de Merkel e Hollande, sobre o verdadeiro objetivo dos acordos de Minsk: destinados, não a assegurar a paz na Ucrânia com base num estado unitário federal, com o Donbass dotado de autonomia, mas a ganhar tempo e capacidade militar para reconquistar pela guerra as Repúblicas de Donetsk e Lugansk, então parcialmente ocupadas pelas forças armadas ucranianas.

Regressemos ao relatório do Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz, de Estocolmo, para o período de 2017 e 2021 que contém a lista dos maiores exportadores de armamento: Os EUA lideravam com uma quota de 39%, seguidos da Rússia, com 19%, a França com 11% e então a China, com 4,9%., logo depois a Alemanha, com 4,5%. Os países de destino da China foram o Paquistão, Bangladesh e a Tailândia. Dos EUA, a Arábia Saudita, em guerra com o Iémen, segundo a ONU, a maior tragédia humanitária provocada pelas guerras modernas, praticamente ignorada a ocidente,  a Austrália e a Coreia do Sul, que os EUA integram no seu plano estratégico de cerco do território chinês e dos seus mares. A guerra da Ucrânia, abriu então às cinco grandes companhias deste país, um mercado inesgotável e não apenas na Ucrânia martirizada: os orçamentos dos países da NATO têm de chegar ao menos a 2% do PIB. Após a Itália, a decisão da Alemanha, de substituir os seus aviões de combate do consórcio europeu pelas aeronaves furtivas de última geração dos EUA, além dos custos, põe ainda mais em causa a viabilidade dos novos projetos intereuropeus e o desenvolvimento das suas tecnologias mais avançadas…

São americanas as cinco maiores empresas da indústria de guerra: Lockheed Martin, Raytheon, General Dynamics, Boeing, Northrop Grumman. Durante a guerra no Afeganistão receberam contratos do governo no valor de 2.02 biliões de dólares. Constituem lobbies tão poderosos que chegam a absorver 1/3 do orçamento do Pentágono, as suas vendas de armamento ao estrangeiro cresceram 14%, nos últimos cinco anos, enquanto baixavam 4,6% no contexto mundial.

A justa mediação da China na procura da paz na Ucrânia

A China apresentou o documento “A Posição da China sobre a solução política da crise na Ucrânia”, como base para Cessar as hostilidades e Retomar as Negociações de Paz, afirmando que estes são os pré-requisitos para garantir a Resolução da crise humanitária, a Proteção de civis e prisioneiros de guerra, Facilitar a exportação de grãos e fertilizantes, Manter estáveis as cadeias industriais e de abastecimento (face aos riscos de recessão e crise económica globais) e garantir a Segurança das Centrais Nucleares, no quadro da ação da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA). Tal como para preparar e Promover a reconstrução pós-conflito.

E colocou sob a mesa negocial três pilares, em que assenta a sua visão dos princípios invioláveis do Direito Internacional e da Carta das Nações Unidas:

Primeiro pilar _. Respeitara soberania de todos os países, A soberania, independência e integridade territorial de todos os países devem ser efetivamente preservadas_ confrontando assim a política de guerra da Federação Russa, o que sempre fez nas conversações com o presidente Putin, com o governo ucraniano e nas Nações Unidas.

Segundo pilar _ A Suspensão de sanções unilaterais, não autorizadas pelo Conselho de Segurança da ONU, confrontando a política de guerra económica da NATO e da UE. Assim sendo, e invocando o primeiro destes princípios, o presidente Zelensky, respondeu que a posição da China "é positiva “afirmando que a declaração "respeita a nossa integridade territorial". Anunciou também estar prevista uma reunião com o presidente chinês, Xi Jinping, e que o encontro "será importante para a segurança mundial". E do lado russo, depois sublinhada a desconformidade das sanções com a Carta das Nações Unidas, aporta-voz presidencial afirmou que a Rússia “está disposta a procurar a solução dos objetivos da operação militar especial pelas vias político-diplomáticas”

Sabemos pelo próprio ministro dos Negócios Estrangeiros da Ucrânia, que o homólogo chinês o informou e consultou previamente acerca do teor da proposta, como o fez com a Rússia, os países que lideram a UE, mas também outras chancelarias, sobretudo do Sul, tradicionalmente marginalizadas destes processos, com destaque para o Brasil. O seu presidente, Lula da Silva, anunciara já o propósito de criar o Clube da Paz, constituído pelos países que não se envolveram diretamente no conflito militar, e que viajará para a China com a missão de integrar o país nessa instância mediadora. O presidente Zelensky, afirmou igualmente querer a participação de América Latina, China, África e Índia no plano de paz na Ucrânia.

O presidente francês considera que o plano de paz apresentado pela China é um avanço positivo no caminho para a paz e irá reunir-se com o presidente XI, no princípio de abril.

A solução política proposta pela China incorpora ainda uma outra exigência mundial: A Redução de riscos estratégicos. Armas nucleares não devem ser usadas e guerras nucleares não devem ser travadas. _ O terceiro pilar.

Um derradeiro ponto, é o apelo para Abandonar a mentalidade da Guerra Fria. O que significa que Todas as partes devem opor-se à busca de sua própria segurança em detrimento da segurança de outros, evitar confrontos em bloco e trabalhar juntos pela paz e estabilidade no continente euro-asiático. A segurança de uma região não deve ser alcançada pelo fortalecimento ou expansão de blocos militares. E  a longo prazo do mundo, ajudar a forjar uma arquitetura de segurança europeia equilibrada, eficaz e sustentável.

Neste ponto, deverá residir a forma como reagiram o Secretário-Geral da NATO e a presidente da Comissão Europeia: sem ouvir primeiro a posição da Ucrânia e da Rússia, apressando-se a denegrir as suas propostas, como se fossem eles a decidir pelas duas nações. E, pela mesma razão, se multiplicaram as suspeições e ameaças de representantes do estado americano, insinuando a possibilidade de envio de armas chinesas para a Rússia!

Lisboa, 28.02.23

António dos Santos Queirós

Professor. Investigador da Universidade de Lisboa

 

 Este artigo, foi publicado, parcial ou totalmente, por múltiplas entidades, nomeadamente:

CRI. Rádio Internacional da China

Jornal Público


 

 

 

 

 

 

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