©António dos Santos Queirós
Universidade de Lisboa. Faculdade de Letras. Centro de Filosofia.
Alameda da Universidade 1600-214, Lisboa Portugal
Nº 8. 2019
Prémios de Investigação 2018
O sentido da vida e da morte, na Filosofia
Prof. Doutor António dos Santos Queirós ...................................... 343/373
Prémios de Investigação 2018
O sentido da vida e da morte, na Filosofia
Prof. Doutor António dos Santos Queirós ...................................... 343/373
O sentido da vida
e da morte, na Filosofia
Resumo
Este ensaio breve propõe-se evidenciar a influência
do pensamento epicurista original na evolução dos conceitos de natureza e de
natureza humana, assinalando o seu reemergir, no advento da Filosofia Moderna
e, no nosso tempo, com a Filosofia Ambiental. Partindo das cartas, fragmentos e
máximas epicuristas, incidiremos a nossa reflexão, acerca da natureza, nos
filosofemas sobre o sentido da vida e da morte.
Aqui discutiremos, no contexto das relações entre
ciência e filosofia, a intuição fundamental de Epicuro que pressupunha que a
natureza fosse explicada pelas suas próprias leis, mas onde era preciso incluir
também o acaso e a contingência; e a intuição filosófica de Bento de Espinosa,
segundo a qual Deus é Natureza desenvolvendo-se a si própria conforme leis que
lhe são intrinsecamente necessárias; à luz das descobertas científicas
contemporâneas que penetraram os segredos da origem do universo e da estrutura
quântica da matéria.
Palavras-Chave: Filosofia. Ciência. Ética. Epicuro. Bento de
Espinosa
Abstract
The main
propose of this short essay is to show
the influence of the original epicurean thought in the evolution of the
concepts of nature and human nature, noting the metamorphosis of the concept of
nature in the concept of environment, that
re-emerging in the advent of modern philosophy. From the letters, fragments and
Epicurean maxims, our reflection about the nature will be focused in the
philosopheme about the meaning of life and the significance of death.
This
research pathway will discuss, in the context of the relationship between
science and philosophy, the fundamental intuition of Epicurus that presumed
that nature can be explained by their own laws, but where it was necessary to
include also the chance and contingency; and the intuition of Bento de
Espinosa, according to which God is nature developing herself as laws that are
intrinsically necessary; in the light of contemporary scientific discoveries
that have penetrated the secrets of the origin of the universe and of the
quantum structure of matter.
Keywords: Science. Philosophy. Ethics. Epicure. Baruch d’Espinosa.
Introdução: Filosofia,
literacia científica e a questão de uma nova escolástica
Convirá então abordar o problema da “causa das
coisas” e a sua relação com o “ser”. O pré-conceito que concede à filosofia o
domínio de se questionar sobre “o que significa ser” e atribui à ciência o
domínio do estudo das “causas” fenomenológicas, pode reconduzir-nos ao velho
mecanicismo e a uma espécie de nova escolástica. Sobretudo no domínio das
éticas aplicadas. Questionamo-nos: Onde aquela conceção, assim pré-determinada,
encontra sobretudo oposição, não pode existir uma relação dialética?
Num primeiro postulado, procuramos demonstrar que o
vazio moral, que a filosofia cartesiana não preenche, não é consequência
inevitável do abandono da conceção divina da unidade ontológica, antropológica
e ética da natureza humana (aristotélica).
Num segundo postulado afirmamos que a filosofia de
Bento de Espinosa supera a dicotomia entre subjetividade e a natureza, sem
quebrar a sua unidade; nela, o conceito de extensão das categorias de Deus
Substância e Deus Natureza, unifica o ser e o dever, sem colocar o Homem acima
da natureza e sob a sua dominação.
Num terceiro postulado, discutiremos o processo de
elaboração do conceito de “razão ambiental” moderna, que começa a ser
construído com a formulação de um novo imperativo categórico para a ação do
homem, mais além da máxima kantiana de conformação dos atos individuais com o
princípio de uma lei universal, um novo quadro ético, o qual resulta da
necessidade de configurar a conduta humana nos limites que salvaguardem a
continuidade da vida e a sua diversidade.
E esperamos avançar, na terra ignota que a ciência e a religião configuram, no
reconhecimento do sentido da vida através da libertação (epicuriana) da
heurística do medo… da morte e na compreensão do sentido da morte: a morte
corporal, que não inclui o fim das moléculas e átomos, a morte como condição para a sobrevivência dos novos indivíduos sobre a
Terra, derradeiro ato de amor para com os descendentes (princípio do altruísmo),
indagação filosófica que responde ao
eco perene do pensamento: “para onde vai a nossa consciência”?[1]
1. Filosofia da (Boa) Morte. Resistir à morte. Aceitar a morte:
Princípio do altruísmo
“Oh, possamos nós todos ter sempre em vida a
religião do Sol, da beleza e da harmonia: movermo-nos na atmosfera serena do
bem e da liberdade; ter a alma limpa e transparente, sem sombra de deuses e de
reis, sentir o enlaçamento divino dos braços da bem-amada; e depois, ó santa
Natureza, toma os nossos corpos para fazer deles árvores cheias de sombra e
ramos resplandecentes.” [2]
Assim mesmo nos aconselhava a filosofia de Epicuro,
passeando entre amigos e poetas, nos jardins das cidades gregas em crise, mas
agora a voz que apela é a de Eça, para que, em vida e numa época conturbada,
voltemos a conviver com a natureza, penetremos nos bosques onde são sublimados
todos os males e angústias e ali celebremos o ritual da serenidade, onde a
dialética dos conflitos se apazigua...
O texto mais michletiano de Eça, e por onde
perpassa também a filosofia de Antero, é uma reflexão sobre a natureza humana e
a vida, sobre o corpo e a terra, denominada Os
mortos.
É uma escrita próxima da poesia, que Eça retoma,
num conto isolado denominado As misérias:
1. entre a neve.
Vejamos como o “não temor” da morte, que evoca a
filosofia de Epicuro ou o eterno retorno à natureza, atravessam o primeiro
texto e, nele, o homem perde o seu estatuto de dominância face à sacralização
de todos os elementos naturais.
“E no entanto, os mortos, que são os pais, as
irmãs, as bem-amadas, as mães, estão pela Natureza, pelos montes, pelas águas,
pelos astros _serenos e imaculados. E porque tememos a morte?”
“As árvores, as eflorescências, as ervas, as
folhas, são também formas de vida, santas e cheias de Deus. Por toda a parte,
pelas famílias das constelações, pelos planetas, pelas árvores, pelos lívidos
interiores da terra, pelas águas, pelos vapores, pelas plantações fecundas,
escorre a seiva, o átomo santo, a alma universal.” [3]
O panteísmo de Eça retira ao homem o seu estatuto
divinizado e antropocêntrico, concedendo-lhe o mesmo lugar e função em que o
movimento da vida envolve todos os seres, o eterno retorno à terra para gerar a
“transfiguração sagrada”.
Mas a Natureza toda não é apenas fecunda e santa,
ela possui o atributo moral do Bem, (assim o entendiam igualmente Michelet e
Antero) enquanto a condição humana carrega também o do Mal.
Por isso só os mortos são felizes, porque andam
longe da forma humana, alimentam a terra e renascem transformados...”na
floresta imensa”.
“... as raízes das rosas pastam a podridão dos
tiranos; e dos homens que na terra ensanguentaram, dilaceraram, profanaram, faz
carvalhos austeros e cedros religiosos”. [4]
A floresta, na sua diversidade animal e vegetal, na
sua íntima ligação à terra, é o símbolo poético e ao mesmo tempo a metáfora filosófica
deste universo imaterial onde tudo se liga com tudo numa sagrada transfiguração.
A árvore torna-se ícone do valor intrínseco das formas da natureza, onde até os
rochedos têm “faces pensadoras” e o homem mais simples, o lenhador, mesmo que
eticamente justificado pela fome que tomou conta da sua casa, sente que o abate
das velhas árvores é “uma profanação”:
Velhos carvalhos violentos e proféticos; olmos grotescos; castanheiros
ruidosos; choupos desfalecidos...
“Aquelas árvores que tanto tempo levaram a
formar-se e a enrijar, e a acostumar-se aos ventos tumultuosos, e a saber
agarrar as crinas da chuva, e a enlaçar as moles nudezas das névoas e dos
vapores, aquelas árvores cheias das mordeduras de Novembro, cheias de legenda e
do cheiro das tormentas...” [5]
Afinal, o jovem Eça, pela voz do seu personagem
Carlos da Maia, partilha já os princípios filosóficos da cosmovisão ambiental
do Jacinto dos últimos escritos, que regressa à paisagem humanizada de Tormes.
“...Era o fatalismo muçulmano. Nada desejar e nada
recear...Não se abandonar a uma esperança – nem a um desapontamento. Tudo
aceitar, o que vem e o que foge, com a tranquilidade com que se acolhem as
naturais mudanças do dia agrestes e suaves...E, nesta placidez, deixar este
pedaço de matéria organizada que se chama o Eu ir-se deteriorando e descompondo
até reentrar e se perder no infinito Universo...Sobretudo não ter apetites. E,
mais que tudo, não ter contrariedades.” [6]
Ega concordava e citando o Ecclesiastes, afirmava a inutilidade do esforço porque:
“...tudo se resolve...em desilusão e poeira.
Se me dissessem que ali em baixo estava uma fortuna
como a dos Rothschilds e a Coroa de Carlos V à espera, para serem minhas, se eu
lá corresse, eu não apressava o passo...Não saía desse passinho lento,
prudente, correto, que é o único que se deve ter na vida.” [7]
No entanto, há na filosofia de vida que Eça anuncia
algo mais, uma grande serenidade que a construção metonímica do discurso vela e
a reflexão existencial bruscamente quebrada com o picaresco das lamentações de
Carlos, por já não poder provar o genuíno paio português, confunde
deliberadamente.
Julgamos que o escritor “fala filosoficamente”
quando estabelece o seu conceito de existência e da condição humana, fá-lo,
obviamente, à maneira de Eça, numa dimensão irónica e num contexto romanesco.
E é impossível, como diria o seu Jacinto, não
sentir a solidariedade desta voz com a do filósofo da antiguidade quando nos
anunciava o seu caminho para a sabedoria e a felicidade.
Em primeiro lugar porque todo o último capítulo dos
Maias é um culto aos valores da
amizade:
“De todos os bens que a sabedoria procura para
atingir a felicidade de toda a vida, o mais valioso é a amizade.” [8]
Em seguida, porque o conceito de não ter apetites e
evitar as contrariedades, se aproxima aqui e muito da conceção epicuriana que
separa os desejos naturais e necessários de outros que não o são, sendo os
primeiros os que suprimem a dor e suprem as nossas necessidades biológicas,
mais os que permitem variar o prazer, estes não necessários mas igualmente
naturais, e, limitados na medida de cada homem, enquanto os outros desejos não
sendo naturais nem necessários se prendem com a riqueza e os atributos do poder
e conduzem diretamente ao conflito para a sua posse com os outros seres
humanos.
“O direito natural consiste no reconhecimento do
que é útil para não provocar conflito de uns para com os outros e não chegar
até esse ponto.” [9]
Aceitar o fluir da vida, sabendo que dores e
prazeres constituem o seu ciclo natural e finito, até à transformação da
natureza humana pela morte em matéria cósmica. Graças à “declinação” do átomo
que, no universo de Epicuro, faz da vida a própria fonte da transformação e
criação. Viver então e morrer, serenamente.
“O limite da intensidade do prazer é a eliminação
de toda a dor. Em todo o lado em que há prazer, enquanto ele lá está, não há
lugar para a dor, ou a tristeza, ou os dois ao mesmo tempo.” [10]
“Assim o mais terrível dos males, a morte, não é
nada em relação a nós, porque quando nós somos, a morte não está lá e, quando a
morte está lá, nós já não somos.” [11]
É certo que a segunda parte da citação que
anteriormente enunciámos refere claramente a sua fonte de inspiração no livro
do Antigo Testamento, atribuído inicialmente a Salomão e cuja máxima
fundamental proclama “Vaidade das vaidades. Tudo é vaidade!” Mas que neste
contexto particular não pode ser entendida como uma beática renúncia à
felicidade. Recorde-se que a afirmação pertence a Ega, o alegre e mordaz
crítico dos costumes mas amante dos prazeres da vida, personagem recortado pela
narrativa queirosiana como o próprio símbolo da atitude paradoxal dos mais
lúcidos intelectuais de Lisboa: clareza e coragem de pensamento, inconsequência
na ação.
É como se Eça passasse para o outro lado do espelho
para lançar um olhar condoído mas apaziguado à sua própria geração, que não lograra
conter a “decadência” do velho Portugal nem trazer para a sua dinâmica social a
modernidade, a justiça e a regeneração moral.
Assim nos parece legítimo invocar um limiar
filosófico, acerca da natureza humana, que a ambivalência do texto literário consente,
onde se passeiam as sombras de Epicuro e Michelet, e, claro, o espírito de
Antero, e se sobrepõem sem conflito a visão reformadora cristã tradicional e
micheletiana.
A condição humana aspira a triunfar da morte. Pela
criação artística, Ars Longa, Vida Brevis.
(Hippocrates)
Este
resistir à morte, de ressonância epicuriana, ecoa, um século depois, noutro
escritor, em Jorge de Sena a celebração
do engenho humano, numa metafísica que procura elevar a condição humana para
além da precariedade da obra e do destino individual, numa perspectiva heroica da existência da
Humanidade, onde prevalece a obra/ a arte de viver e construir os avanços
sociais e científicos.
A
morte de Deus sem Apocalipse nem desespero metafísico, tem como imperativo ético
a crença final na Vida, que transportamos na nossa humana condição, mas
que não se resume ao Homem e nos ultrapassa, por ser como uma espécie de ária
de fuga, quase impercetível, que emergiu do silêncio gelado do Universo em
expansão; a vida como capacidade de sentir, desejar, amar, há-de preencher por
si só o lugar dos Deuses e, brotando do nada universal, ocupar esse espaço e o
da Eternidade.[12]
“…desde
que anfíbios viemos a uma praia
e quadrúmanos nos erguemos. Não.
Não foi para morrermos
que falámos,
que descobrimos a
ternura e o fogo,
e a pintura, a escrita,
a doce música.
Não foi para morrer que
nós sonhámos
ser imortais, ter alma,
reviver,
ou que sonhámos deuses
que por nós
fossem mais imortais
que sonharíamos…”
Ser humano: Inteligência, consciência e senciência
A inteligência, que pressupõe um pensamento
elaborado, não é atributo exclusivo do ser humano, ela acompanha outros animais
situados no topo da pirâmide e da cadeia trófica alimentar, como são os
mamíferos superiores, e, porventura, surgiu primeiro, no processo evolutivo da
vida, em animais que não eram humanos nem originariam o ser humano.
Também a consciência, no sentido mais geral, não é
atributo único do ser humano. Os animais mais próximos na pirâmide da vida,
nossos primos ou companheiros, como a família dos Hominidae (hominídeos), ou os animais domesticados, têm consciência
da dor e do prazer, guardam essas memórias afetivas e estabelecem com o ser
humano uma relação social, de comunidade ou até de família.
Os animais possuem códigos de comunicação e
resposta afetiva que interagem com o convívio humano. E esse capital afetivo
entrelaçou-se nas memórias e atitudes da consciência coletiva das comunidades
rurais, transmitidas de geração em geração e plasmada numa ética imanente,
ética da terra e ética animal.
Mas apenas a consciência humana questiona a sua
origem e pergunta a si mesmo para onde vai após a morte. E procura “triunfar”
da morte pela criação artística.
2. Ars Longa, Vita Brevis.[13]
O princípio do Altruísmo
A arte é Coisa e mais Outro, alegoria e símbolo. A
interpretação das coisas pela matéria-forma vem da Idade Média (fundada na Fé)
à Idade Moderna (o transcendental Kantiano). A obra de arte às coisas dá um rosto e aos homens a visão deles mesmos. A
obra abre um mundo e mantém-no aberto. A essência da verdade é desocultação. E,
nesse momento de dupla desocultação, é que a matéria se torna produtiva, se
metamorfoseia em Arte, a cor ganha luz, o metal resplandece, a linguagem obtém
o dizer. (Heidegger) A Arte como sublimação de todas as angústias
e da sua angústia existencial: para onde vai, a nossa consciência? (Unamuno)
A Arte abandonou a mimesis aristotélica no século XX, tal como a teologia moderna
perante o velho conceito da dualidade corpo e espírito, face e sob a influência
da sua física relativista e quântica, e da mundialização da cultura e do
consumo, que nos revela a natureza no seu estado para além do átomo, de
movimento contínuo entre o infinitamente grande e pequeno, de indeterminação e
relatividade de todos os elementos, em permanente transformação de energia e
forma, de substância e estado, ordem aparente e caos absoluto e universal,
acaso, transportando para a arte contemporânea o seu próprio caos,
plurissignificação, indeterminação e relativismo.
Einstein:
“Deus não joga dados com o universo”.
Niels Bohr:
“Pare de dizer a Deus o que fazer!” [14]
Regressemos à Natureza Humana: coloquemos uma questão
ontológica. Quem somos? Criados à imagem e semelhança do próprio Deus? Homem és
pó e ao pó hás-de voltar! Somos o resultado improvável da combinação de um
número infinito de circunstâncias, determinadas pela ciência e pelo acaso? Uma
nuvem de átomos. Somos poeira das estrelas. Somos a própria consciência da
matéria primordial do universo e, nessa dimensão, o elemento mais elaborado da
sua evolução desde o Big Bang?
Essa consciência, da
morte inevitável, que se interroga até ao fim acerca do destino inexorável, é a
face terrível da nossa própria liberdade.
O destino humano, pavor
configurado no limite da existência de cada ser, mas também epopeia nesse
singular contributo para que a Vida prossiga e alcance novos Mundos.
“…Para emergir nascemos.
O pavor nos traça,
esse destino claramente
visto :
podem os mundos acabar,
que a Vida
voando nos espaços,
outros mundos
há-de encontrar em que
se continue…””[15]
Pensar e sentir a própria morte, dos seres que
amámos, que nos fizeram nascer e aqueles a quem demos vida, reflexão primordial
acerca da natureza humana, do carácter peculiar da espécie humana, gerada pela
mesma matriz cósmica que fez nascer as estrelas e delas emergir a Terra, mas a
única que sonhou ultrapassar, a nível da consciência individual, a lei de
bronze da sobrevivência de todas os outras espécies: A morte como condição para a sobrevivência dos novos indivíduos sobre a
Terra, derradeiro ato de amor para com os descendentes; os indivíduos
têm de morrer para que a sua descendência específica prossiga e evolua,
princípio do Altruísmo.
3.
Teleologia e deontologia. A razão ambiental
Na teleologia aristotélica, a simbiose entre os
planos ontológico, antropológico e ético resulta da própria natureza humana,
que possui em si mesmo a razão virtuosa para agir prudentemente pelo bem e
atingir a felicidade (eudaimonia). A
virtude suprema é a sabedoria (sóphos)
que conduz à contemplação. A prudência eleva o homem à condição de governante
da cidade e confere-lhe superioridade moral, porque reúne em si a dimensão
ética e política; mas a contemplação já é da esfera do divino. O Homem
aristotélico não é apenas uma abstração filosófica, mas também um cidadão; o
seu pensamento constrói uma ponte entre estas duas dimensões, a filosofia da
existência e a filosofia política.
Quando a filosofia de Descartes anuncia a sua visão
da modernidade do pensamento Humano, o emergir de um sujeito autónomo que pensa
e age usando a razão, a cisão entre o ser humano e a natureza não se torna
inevitável, antes resulta da escolha dilemática do (s) filósofo (s).
Se o caminho fica aberto para estudar a natureza
como objeto da ciência, para descobrir as leis mecânicas inscritas por Deus no
cosmos, o elevar do homem acima da natureza, para que reine sobre os seres e as
coisas por atribuição do Criador, é do domínio da religião e da política
mercantil, e da subordinação da filosofia aos seus dogmas e interesses. Surge
nos alvores do mercantilismo, como uma necessidade social.
O vazio moral, que a filosofia cartesiana não
preenche, não é consequência inevitável do abandono da conceção divina da
unidade ontológica, antropológica e ética da natureza humana; mesmo na
filosofia clássica ocidental, ao lado do pensamento aristotélico, outras
conceções da moral emergiram despojadas de fundamento religioso, mas sem nunca
se tornarem dominantes.
Tal foi o caso de Epicuro, de cuja obra conhecemos
apenas alguns fragmentos, que é singularmente moderna no seu apelo ao altruísmo
na relação com o outro e face à propriedade dos bens materiais, no assumir da
igualdade de género nos jardins da filosofia e do reconhecimento do sentido da
vida através da libertação da heurística do medo… da morte.”[16]
Desde a publicação das páginas da Ética
de Espinosa, que na filosofia se justapõem duas conceções do mundo: o Universo
da Imaginação, dominado pela conceção antropomórfica de Deus, na continuidade
da representação aristotélica-escolástica do mundo e o universo da razão, que,
naquele filósofo, é a manifestação de um outro conceito de Deus, substância
única ou Natureza naturante e também
a razão inteligível, da natureza
naturada.
Com Bento de Espinosa, Deus é Substância ou
Natureza não é o Ser omnisciente, omnipotente, criador e transcendente ao
mundo, todo misericordioso, Senhor dos Céus e dos Infernos e Supremo Justiceiro
do Juízo Final.
A sua conceção do mundo, não se fundamenta nas
crenças ou nos dogmas das igrejas e do seu ideário de Revelação. O sentido da
vida é imanente à própria natureza humana e o destino do homem consiste em
adequar o seu pensamento e ação à ordem universal que é imanente ao mundo. A
existência ontológica dos seres e a fenomenalidade do universo são os modos de
manifestação de um ser único ontologicamente infinito, mas com uma infinidade
de atributos, dos quais nós, seres humanos, apreendemos essencialmente dois: o
Pensamento, ou razão da inteligibilidade das coisas e a Extensão ou realidade
material, isto é, a natureza naturada. [17]
Esta ontologia e esta epistemologia, este panteísmo
de razão que não de representação da Natureza, que configuram a sua conceção do
universo, tornam-se inseparáveis da eticidade da Vida e custaram a Espinosa a
excomunhão e o epíteto inquisitorial de
“vómito do inferno”. “O inferno são os outros”, escreveu no século XX Sartre. O
“Inferno somos nós próprios”, respondeu Lévi-Srauss”. :”…o elo entre o animal e
o homem verdadeiramente humano somos nós, ”deixou escrito Konrad Lorenz. E uma
comum interrogação filosófica: Como proceder para viver serenamente até ao fim,
e, provavelmente, ser feliz? Espinosa respondeu desde há mais de três séculos:
“deve ser tido por inútil o que não concorra para a suprema perfeição humana!”[18]
A vida de cada ser humano, única mas indissociável
do devir universal, constitui um fim em si própria, uma alternativa entre o
silêncio gelado do universo e a eternidade dos entes que povoam o Mundo. A
redenção da vida, em Bento de Espinosa, que não a salvação pela recompensa
divina ou a imortalidade, está na união perfeita da alma com Deus, Deus
Substância universal, Deus Natureza. Deste filosofema resulta a negação do
antropomorfismo e de qualquer finalismo criador como contrário à própria
essência de Deus e à explicação racional do universo.
A intuição fundamental de Espinosa, segundo a qual
Deus é Natureza desenvolvendo-se a si própria conforme leis que lhe são
intrinsecamente necessárias, corresponde às últimas grandes descobertas da
astrofísica e da sua cosmologia: o universo, que não é eterno e terá a idade de
13,5 mil milhões de anos, também não é estático e está em evolução desde o caos
primordial, informe e sem organização. A história do universo é a história do
crescimento da complexidade à escala cósmica, duma estruturação progressiva do
cosmos, com as suas forças físicas regidas por leis rigorosas e universais.
Essas leis, que organizam o universo, possuem o notável atributo de estarem
rigorosamente ajustadas à promoção da complexidade. As mais ínfimas variações
dos seus valores específicos seriam suficientes para as tornar estéreis.
Nenhuma forma de vida, nenhuma estrutura complexa, se teria constituído. Nem
uma simples molécula de açúcar ou um átomo de carbono. Essas leis já possuíam,
desde o seu início, a capacidade de fazer nascer a complexidade, a vida e a
consciência. O universo regido pela regra do acaso jamais geraria o observador,
o ser e a consciência humana. (Hubert Reeves).[19]
Este conceito de nascimento do universo segundo a
teoria do Big Bang é hoje consensual entre os astrofísicos Mas este tempo zero
e convencional do nascimento do universo, onde hipoteticamente a densidade e a
temperatura eram incomensuráveis, que a radiação fóssil fotografada pelo
satélite Cobe registou nos confins do universo, já nos “primeiros segundos” do
seu arrefecimento e expansão, tem que ser relativizado na sua temporalidade de
treze mil e quinhentos milhões de anos. Porque de acordo com a física quântica
para além de um certo valor os conceitos de temperatura e densidade da matéria
perdem o seu sentido convencional. Pelo que, regressamos à “terra incógnita” e
à relatividade do conhecimento, que não necessariamente a uma explicação
teológica sobre a origem do universo e da vida.
Sobre o nascimento da vida, temos maiores certezas
científicas, que ela surgiu na terra há três mil e quinhentos milhões de anos.
E se o objeto da ciência é de explicar como funciona o mundo, e neste sentido
as leis científicas são amorais, já a resposta ao imperativo categórico de
“como viver no mundo”, pertence ao domínio da filosofia e da ética e é neste
sentido que a ética ambiental interroga o valor da ciência e do desenvolvimento
social da humanidade, não apenas na dimensão antropocêntrica, mas para além
dela e de acordo com a ciência moderna, a Vida antes do Homem e a Terra antes
da Vida.
Por isso, ao contrário da história anterior da
filosofia, cuja problemática tem por centro o homem, a filosofia ambiental
dirige o pensamento para a razão de ser do mundo e da sua fenomenologia, para a
descoberta da unicidade da Substância em todas as suas manifestações ou
“modos”, no vocabulário de Espinosa, sem que se transforme numa filosofia
anti-humanista, pois a Natureza do homem, como de todos os entes e seres do
universo, é a mesma “poeira das estrelas”.
O pensamento de
Epicuro e a ciência moderna
O “não evidente”. E o “tudo”.
“Primeiro, nada provém do não ser, de fato, tudo
emerge a partir do tudo, sem necessidade de uma semente. E se aquilo que
desaparece fosse destruído e se tornasse no não ser, todas as coisas haveriam
de perecer, pois aquilo em que se iriam dissolver não existiria.”[20]
A identidade e unidade do ser e do tudo, corpos que
são e se movem no vazio, corpos
compostos e átomos em perpétuo movimento na sua génese de unidade com o vazio, no
pensamento de Epicuro e, no devir cosmológico, seres humanos feitos da mesma
matéria estelar, nuvem de átomos, criadora da complexidade.
Mas como compreender sem a perceção da distância do
botânico à flor, do físico ao microscópio, quando somos parte viva desse
Universo em expansão? Como entender o Universo sem o método da comparação, num
universo que era único e agora admitimos duplo (ou múltiplo) na sua
coexistência com a antimatéria?[21]
O “tudo” e o “mundo”
“Mas também, os mundos são em número ilimitado,
tanto os que são semelhantes a este, como outros diferentes. Com efeito, como
os átomos são ilimitados…os átomos que podem criar um mundo…não se esgotam num
só mundo ou num número limitado de mundos…”[22]
Libertos (ou dominados?) do medo da morte ficámos
nas mãos de Deus, na sua mão direita, um Deus criado por nós e não criador, que
emergiu da Humanidade como um recém-nascido. Nós somos, assim, a infância de
Deus, Deus Substância, Deus Natureza e Cosmos e dele nos afastámos com a
invenção da Modernidade. A Idade do Homem no Universo foi a primeira Idade de
Deus, moribundo em Hiroxima e Nagasáqui e renascido na Filosofia Ambiental. Nós
somos a última esperança de Deus, da sua grandeza cosmológica, gerador e
criador da complexidade.
Nós somos também o anticristo, ao pormos em causa a
Vida, toda a vida humana e não humana, nascida antes do homem e ao colocarmos o
homem antes de todas as magníficas criaturas. Vida, berço de moléculas da vida,
das pequenas criaturas que melhor que o homem se adaptaram à vida extreme,
penumbra da nossa Humana morte, miríade de insetos, entes decompositores e
cianobactérias alimentando-se de cianeto e mercúrio…
Mas onde está o sentido da vida? Nesse devir da
matéria para a consciência de si e do outro, criadora da nossa alteralidade na
relação com todos os seres e entes. Porque nasceu então a angústia da morte?
Como a sentiriam os primeiros seres humanos? Porque emergiu na nossa
consciência o desejo de imortalidade, de viver para sempre? E não nasceria logo
ali a mesma angústia da eternidade? Talvez comece aqui o sentimento do sem
sentido da vida. E a sua superação.
A vida, vivida em plenitude, dos caçadores felizes
com a abundância da fauna primitiva, dos recolectores, saciados com bagas e
frutos, a vida com sexo, ser amado. (Quando começámos a amar? E a sonhar?) A
vida humana primitiva, difícil e heroica, dolorosa e curta, poderá ter feito
nascer nos seres humanos o mesmo apelo oposto, à continuidade da vida e ao
alívio da morte sem o sono povoado pelo pesadelo da dor.
A vida vivida, entre a angústia da imortalidade e
da eternidade. Angústia resolvida na morte (?). Na morte física, que não é a
morte das nossas moléculas e átomos.
O “não ser”
“Por outro lado, não podemos admitir que nos corpos
finitos se encontrem um número ilimitado de corpúsculos de qualquer tamanho.
Por conseguinte, não só devemos excluir a divisão até ao infinito em partes
cada vez mais ínfimas, para não exaurir todas as coisas e, quando tratamos dos
corpos densos, vermo-nos constrangidos a comprimir os seres até os consumir no
não-ser, mas também, não se pode crer que o percurso, nos corpos finitos, nos
conduza ao infinito, nem para o infinitamente pequeno.”[23]
De acordo com o pensamento premonitório de Epicuro
e com a abertura à ciência experimental do mundo dos quanta, descobriríamos a
composição do átomo em eletrões e núcleo atómico, e este em protões e neutrões,
compostos por partículas ainda mais finas e diversas, os quarks, unificando o
simples e o complexo, interagindo com outras partículas elementares da matéria,
primeiro o bosão W e o bosão Z, e, já em pleno século XXI, o “bosão de Higgs”, a denominada “partícula
de Deus”.
A origem da vida:
darwinistas e geneticistas
Segundo Antero e ao contrário da opinião
generalizada, a teoria geral da evolução não surge como uma descoberta das
ciências naturais do seu século, mas, pelo contrário como resultado da
especulação filosófica:
"Esta ideia não saiu das ciências naturais,
mas penetrou nelas pela influência (obscura, é certo, e indireta, mas muito
real) das noções de metafísica lentamente elaboradas, a partir da Renascença,
dentro da ideia fundamental de natureza.
A maneira dinâmica, autonómica, realista, de conceber a natureza é o que mais
radicalmente distingue o pensamento moderno do antigo…”[24]
Perante a crescente angústia ética e os conflitos
morais desencadeados por este “Admirável Mundo Novo,“ cientistas eminentes, da
escola anglo-saxónica, como Carl Sagan e James Lovelock, preocupados com os
direitos da Gaia, traçam-nos um quadro problemático, mas de fundo otimista,
acerca da evolução da vida. Partindo do imaginário Darwinista, do pequeno mar
tépido que teria servido de caldo de cultura para as primeiras moléculas
orgânicas, especulam sobre a existência
no universo de vida e sobre a possibilidade de a recriar graças ao progresso
científico-tecnológico, em novos planetas, destino provável da nossa
espécie depois de esgotada a Terra-Mater. Enquanto, em paralelo, professam uma
fé absoluta no renascimento da vida, para além
do holocausto da nossa própria espécie.
Em crítica a esta perspetiva de nascimento da vida,
os geneticistas da escola francesa, invocando Pasteur, afirmam que o caldo
pré-biótico sonhado por Darwin seria indefinidamente estéril e orientam o nascimento da vida para a
superfície das rochas, numa química das superfícies favorável à seleção de um
pequeno número de espécies moleculares, à sua interconversão (metabolismo) e à
sua reprodução, donde se terão gerado os quatro processos fundamentais à
vida: metabolismo e compartimentação, nas pequenas moléculas, a memória.
Os defensores da Teoria Sintética da Evolução,
partidários de um gradualismo filético que entende a evolução das espécies como
resultado da convergência de mutações biológicas e mudanças ambientais, também
chamados de neodarwinistas. Ou os seus contraditores, mais inclinados para as
doutrinas do Equilíbrio intermitente, que enfatizam o facto de a paleontologia,
em regra, não evidenciar modificações graduais e para os quais as espécies
podem surgir num estado avançado, permanecer longamente com existência estável
e depois perecer para dar origem a outras, contribuíram igualmente para
compreendermos hoje a complexidade dos problemas da evolução e da extinção das
espécies. Propostas por N. Elredge e S. Gould. [25]
A razão ambiental
A “razão ambiental” moderna formula um novo imperativo
categórico para a ação do homem, mais além da máxima kantiana de conformação
dos atos individuais com o princípio de uma lei universal, um novo quadro
ético, o qual resulta da necessidade de configurar a conduta humana nos limites
que salvaguardem a continuidade da vida e a sua diversidade (Hans Jonas).
A razão ambiental constrói a sua própria ética,
como ética de princípios e ética aplicada, com base na crítica ao
antropocentrismo e ao etnocentrismo.
Com base nestes dois axiomas ela incorpora novos
conceitos morais, da Ética da Terra e da Ética Animal, que alargam o conceito
de comunidade a todos os entes da natureza e ampliam o conceito de pessoa, ao
menos aos animais que possuem capacidade de sentir e sofrer, em particular dos
que nos estão mais próximos na cadeia evolutiva.
A razão ambiental incorpora também uma Bioética
Global, que reposiciona o Homem dentro da Natureza, mas sem estatuto de
privilégio e atribui à sua espécie um estatuto superior de valia moral, pela
sua paradoxal capacidade de criar e destruir a biodiversidade, mas também um
estatuto de igualdade moral entre os seus múltiplos indivíduos, filhos
primogénitos da mesma mãe mitocondrial e do mesmo pai cromossomático. E coloca
o homem antes da Vida e a Vida antes da Terra, sem sombra de anti-humanismo.
A razão ambiental integra ainda uma nova Ética Política,
e uma nova visão crítica da alienação dos cidadãos, que aqui não discutiremos,
por razões metodológicas, uma nova Ética Política que elaborou o princípio da
Casa Comum, o homem tem duas casas, a sua e o planeta, base dos princípios da
sustentabilidade, da solidariedade e da equidade e se enriquece com dois novos
imperativos categóricos, o imperativo da dignidade e o imperativo da paz
perpétua, que vai muito para além da consigna kantiana.
Desenvolvamos então o conceito de razão ambiental.
Do paradigma
conservacionista da natureza à Ética da Terra e Ética Animal
A obra de referência da Ética da Terra pertence a
Aldo Leopold (depois de Walth Whitman, e do transcendentalismo de David Thoreau
e Waldo Emerson, a John Muir e G. Pinchot, pioneiros da gestão racional da
floresta e do ambiente ou George Perkins Marsh), que a retira dos estudos de
Darwin e dos avanços científicos da Ecologia:
”The land ethic simply enlarges the boundaries of co the community to include soils, water, plants, and animals, or, collectively: the land .”[26]
O sentimento da necessidade de ajuda e defesa
comum, desenvolvido ao longo do processo de selecção natural,
gerou o conceito de comunidade,
fundamento da ética.
Mas é uma nova conceção
da natureza que emerge, agora entendida como uma sociedade de plantas, animais,
minerais, fluidos e gases, estreitamente ligados e interdependentes.
Todas as éticas assentam sobre uma premissa: que o
indivíduo é membro de uma comunidade interdependente… O biocentrismo (d’Earth first !, Greenpeace, Wilderness Society (...)
atribui um valor intrínseco a toda a entidade viva e o ecocentrismo (Aldo Leopoll) focaliza-se nos deveres que temos face
à comunidade biótica de que fazemos parte. Não se trata, em qualquer dos casos,
de aplicar a novos objectos, como a natureza, as teorias
morais pré-existentes. A natureza passa a estar incluída no nosso campo de
reflexão moral, os nossos deveres,
antes limitados aos seres humanos, passam a ser extensivos aos outros entes naturais.
E citemos diretamente Aldo Leopold:
“The image
commonly employed in conservation education is «the balance of nature»..…this
figure of speech fails to describe accurately describe accurately what little we
know about the land mechanism. A much true image is the one employed in
ecology: the biotic pyramid. “[27].
Mas o reconhecimento do valor económico do uso da
biodiversidade pode ser ainda uma forma de recusar os
valores autónomos da Ética da Terra.“…no
ethical
obligation toward land. “[28]
Conduz geralmente a confinar a conservação da
natureza aos parques e reservas, às espécies potencialmente úteis ao ser humano
e à acção
do estado, deixando inteira liberdade à iniciativa privada.
Parte da premissa, cientificamente falsa, de que os
elementos com valor económico do biótopo podem existir na natureza sem a presença dos outros elementos.
Caberia ao australiano Peter Singer e ao americano
T. Regan enfatizar os sentimentos e os direitos dos animais face à brutalidade
dos processos produtivos modernos: clonagem genética, jaulas prisão, rações
baseadas na carne triturada de animais mortos e saturadas de hormonas, violação
sistemática dos ritmos naturais e das necessidades da vida animal, tudo isto em função do lucro
máximo.
Em nome do princípio da igualdade, os dois autores
referidos recusam o conceito da superioridade da espécie humana, que comparam
ao racismo, por violar aquele princípio, censurando à maioria dos humanos o não
reconhecimento da capacidade de sentir e sofrer dos animais. Nas suas obras
afirmam que os animais são sujeitos de interesse em não sofrer e também,
acrescenta Regan, são sujeitos de direito, por que são sujeitos de uma
experiência de vida que possui valor intrínseco
Partindo da tese de que…
“…alguns
animais não humanos parecem ser racionais e conscientes de si, concebendo-se
como seres distintos que possuem um passado e um futuro…”, propõe-nos uma ética
gradualista contra o assassinato de animais, que no seu patamar superior
estende aos chimpanzés, gorilas e orangotangos a mesma proteção devida aos
seres humanos. Propõe-se alargar o conceito o uso de “pessoa”, no sentido de um
ser racional e auto consciente, para incorporar os elementos do sentido popular
de “ser humano” que não são abrangidos por “membro da espécie Homo Sapiens”.[29]
A diversidade da Vida, como valor ético superior e
um novo lugar do humanismo na ética ambiental
A defesa da Vida: princípio filosófico de valor,
superior ao da comunidade humana, elo singular da Cadeia da Vida. As descobertas
científicas permitem-nos ter a certeza apenas de que o equilíbrio dos
ecossistemas favoráveis à vida depende de uma infinidade de relações
geológicas, biológicas e físicas e reconhecem que quanto mais alta é a posição
ocupada pelos organismos na cadeia alimentar, maior é a sua vulnerabilidade,
podendo a destruição de algumas espécies afetar drasticamente todo o sistema.
Houve
sempre extinções ao longo das várias épocas da história da vida e o património
biogenético recuperou a sua riqueza e diversidade_ foi assim nos finais do
Pérmico (com o desaparecimento das Trilobites), do Cretácico Terminal (o fim
dos dinossáurios não-avianos), do Plistocénico superior (quando sucumbem os
mamíferos oriundos da América do Sul) e do Quaternário (extermínio e morte de
espécies contemporâneas do homem, como o tigre dente-de-sabre e o mamute). O
que hoje é dramático, conhecida a lei de bronze da Paleontologia, que postula a
Irreversibilidade da Evolução, é o ritmo a que se processa a perda da
biodiversidade, a destruição dos recursos naturais energéticos e a
multiplicação dos efeitos poluidores que atingem não só o conjunto do planeta _a
litosfera, a hidrosfera, a criosfera, a atmosfera e a biosfera, mas também e,
com consequências imprevisíveis, o material genético fundamental, o ADN que
conserva e reproduz os códigos da vida. E, assim, como não podemos afirmar que o seu humano é o
zénite final de evolução da vida, ninguém pode imaginar hoje qual é o elo da
cadeia onde o salto evolutivo se poderá produzir de novo, como ninguém sonhou
antes que o tetravô da nossa condição de quadrúmanos fosse um insignificante
roedor, que sobreviveu à extinção generalizada das espécies dominantes no final
da Era Mesozóica. 251 milhões e 65 milhões e 500 mil. Neste axioma científico se
fundamenta o imperativo ético da
preservação da Vida, antes do Homem e da Terra antes da Vida.
Conhecida a lei de bronze da Paleontologia, que
postula a “irreversibilidade da evolução”, a
extinção do homo sapiens sapiens e
das espécies associadas à nossa evolução, um mundo imaginário de vegetais,
micróbios e insetos, improvavelmente daria de novo origem à espécie humana ou
mesmo aos mamíferos. Assim, o humanismo regressa ao centro das preocupações da
ética ambiental, mas com a espécie humana sem nenhum estatuto, natural ou
divino, de domínio ou privilégio sobre a
restante natureza e os seus entes.
O imperativo ético da dignidade e o imperativo ético da
paz, de Jorge de Sena
Antero de Quental anunciava o advento de uma nova
arte, mais universal, tendo a musica como paradigma; natural é pois que a
poética literária alimentasse também a nova Filosofia.
“Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém
vale mais que uma vida ou a alegria de tê-la.
É isto o que mais importa - essa alegria.
Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto
não é senão essa alegria que vem
de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez alguém
está menos vivo ou sofre ou morre
para que um só de vós resista um pouco mais
à morte que é de todos e virá. “[30]
vale mais que uma vida ou a alegria de tê-la.
É isto o que mais importa - essa alegria.
Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto
não é senão essa alegria que vem
de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez alguém
está menos vivo ou sofre ou morre
para que um só de vós resista um pouco mais
à morte que é de todos e virá. “[30]
E ao “imperativo ético da dignidade”, que questiona
a exploração do homem pelo homem, Jorge
de Sena, poeta e filósofo, junta um novo imperativo categórico da “paz
perpétua”:
“Na insólita fortuna da desgraça,
[...]
nesta
insólita fortuna, à luz que vem
oh só em poeiras inofensivas, rezo
a mim mesmo para não perder a memória,
por vós, para que saibais sempre lembrar-vos
de que tudo se perde onde se perde a
paz,
e primeiro que tudo se perde a liberdade.” [31]
Depois de escritos estes pensamentos, que
questionam a legitimidade moral da exploração do homem pelo homem e da guerra,
cem obras de filosofia política, tornaram-se como que desnecessárias e
prolixas.
O estado de guerra, que nas suas causas tem sempre
a apropriação da riqueza dos povos e das nações, fruto do trabalho social, à
luz dos ensinamentos da história das democracias liberais e das democracias
socialistas, é incompatível com a conservação e aprofundamento da democracia e
contribui para criar as condições para a sua limitação e degeneração. Se
recusarmos o imperativo ético da destruição de todo o arsenal atómico, de
guerra química e biológica e de construção da sustentabilidade do nosso modo de
produção económica e financeira, então, acharemos a paz maldita e eterna no
holocausto dos filhos dos nossos filhos. O respeito pela dignidade do homem
cidadão e pela paz perpétua, assim reunidos pelo mesmo juízo moral, constituem
um primordial e unificado corolário político das Éticas Ambientais.
Paradoxo e superação ética do conceito de família, cultura e nação
A “Eva mitocondrial”
terá surgido na África Oriental há 200.000 anos e o “Adão cromossómico” na
África subsariana há 140.000 anos. Tal significa que todos os seres humanos são
descendentes, pela via mitocondrial, da mesma mãe ancestral, sendo que das
outras mulheres desse tempo remoto, em algum lugar da genealogia se interrompeu
a descendência feminina, substituída por uma nova geração masculina: neste
caso, se não se manteve o ADN mitocondrial, conservou-se o ADN cromossomático. A
mensagem moral, comum a muitas religiões e filosofias, que todos os seres
humanos são irmãos na mesma família humana, fica fundamentada na ciência
moderna.
Assim como as
mitocôndrias são herdadas pela via maternal, os cromossomos são herdadas por
meio do pai. Portanto, é válido para aplicar os mesmos princípios com estes. O
ancestral comum mais próximo, apelidado de Adam cromossômico, viveu num período
estimado entre 60.000 e 142.000 anos. Então, todos os seres humanos
contemporâneos, tiveram a sua origem em África, num período entre 100.000 e 200.000
anos atrás. Durante a última glaciação, os descendentes dos primitivos Homo
Sapiens terão atravessado o estreito de Bering, penetrando na Europa e na Ásia
e, seguindo caminho, por vales, rios e oceanos, atingiram todos os continentes.
Enfim, em sentido ético, as fronteiras que
configuraram as nações primitivas e modernas, e permitiram lançar novos ramos
da cultura humana, organizar o progresso económico e os exércitos nacionais,
devem ser progressivamente abatidas por um imperativo moral, pois, tal como o
racismo não tem fundamento científico e a cor da pele resulta da adaptação do
ser humano aos diferentes ambientes da Terra, sabemos hoje que qualquer guerra,
por mais legítima ou defensiva, será sempre travada entre membros da mesma
família, descendentes de antiquíssimos progenitores. E com a queda daquelas
fronteiras inhumanas, deverá progressivamente ser superado o estatuto de poder
e exploração do homem pelo homem, do homem sobre a mulher, da nova sobre a
geração envelhecida, que o estado e os seus corpos repressivos, leis e
costumes, historicamente garantiram, porque no plano moral será o mesmo que
subjugar pelo capital ou por outro poder os mais fracos do nosso círculo
familiar planetário.
Se, como Antero, considerarmos que “A ideia da
Morte é a base da vida moral”, a consciência da finitude do eu pessoal faz
nascer o imperativo metafísico de viver “para algo eterno”[32];
então, um novo destino se coloca à Humanidade, por imperativo da ética e da
ciência, perpetuar a Vida no espaço sideral, pois a vida complexa na Terra está
condenada a perecer com a morte do nosso sol, destino traçado pela ciência para
uma existência estelar de 10.000 milhões de anos, que já consumiu em hidrogénio
metade da sua vida.
Não somos pois uma aberração da natureza ou condenados
a uma existência sem sentido, como pensaram os filósofos existencialistas,
somos antes o despertar da consciência do Universo e nessa medida, entranhados
no Universo, dele somos um dos seus entes mais complexos, da sua física
relativista e quântica, que se interroga: “para onde vai a nossa consciência” (Unamuno)? E deixa nos versos, o
derradeiro apelo:
“…deve haver um caminho
para regressar da morte.”[33]
para regressar da morte.”[33]
4.
Bibliografia
Épicure (1994). Sentences
Vaticanes, In Lettres et Maximes, Tradução, Introdução e Notas de Jean-François
Balaudé. Paris. Librairie Générale Française.
Espinosa, B. (1960). Ética (Ethica Ordine Geometrico Demonstrata I. DE DEO. Part I. Acerca de
Deus. Trad. Introd. e Notas de Joaquim
Carvalho. Coimbra. Atlântida Editora.
Isaacson, Walter (2008). Einstein, a sua vida e universo. Portugal, Alfragide: Casa das
Letras.
Leopold, A. (1947). A Sand
County Almanac. New York. Oxford University Press.
Queirós, A. (2014). «A
Ética Ambiental e a Moral no século
XXI», in A. Barbosa e J.M. Silva (ed.), Confluências Bioéticas. Lisboa. edição
conjunta de CFCUL_Centro de Filosofia das Ciências da Universidade de Lisboa,
Centro de Bioética da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa e
BioFIG_ Centro de Biodiversidade,
Genómica Integrativa e Funcional da Faculdade de Ciências da Universidade de
Lisboa.
Queirós, E. (1988)
Prosas Bárbaras, Os Mortos, Obras completas de Eça de Queiroz,
vol. X. Mem Martins Resomnia Editores.
Queirós, E.
(1999), Os Maias: episódios da vida
romântica, anot. de Helena Cidade Moura. Lisboa. Ed. Livros do Brasil.
Quental, A.
(1991). A Filosofia da Natureza dos Naturalistas.
In Obras Completas de Antero de Quental,
Filosofia, organização, introdução e notas de Joel
Serrão. Universidade dos Açores. Lisboa. Edit. Comunicação.
Sena, J. (1988). A Morte, o Espaço e a Eternidade. In Metamorfoses.
Lisboa. Poesia II. Edições 70.
Sena, J. (1988). Carta a meus filhos, sobre os fuzilamentos de Goya. Lisboa. Poesia
II. Edições 70.
Sena, J. (1988). A Paz. Lisboa. Poesia II. Edições 70.
Singer, P. (1999). Ética Prática. Tirar a Vida de Animais. São Paulo. Editora Martins
Fontes.
Reeves, H. (2002). Dernières nouvelles du cosmos. Paris.
Éditions du Seuil.
[13] Hippocrates
[19]
Ver, sobre o tema da Cosmologia Científica, de Reeves, H. 2002: Dernières nouvelles du cosmos, p.27.
[21]
A cada tipo de partícula que constitui a matéria de que somos feitos e que
predomina no Universo, corresponde uma partícula de antimatéria, ao eletrão o
positrão, nascendo juntos e aniquilando-se no caos primordial; porém, com
exceção dos aceleradores de partículas e dos feixes de raios cósmicos
provenientes da nossa galáxia, as partículas de antimatéria não existem na
Terra, e estão presentes no nosso Universo como relíquias fósseis do Big Bang e
posterior arrefecimento do Cosmos; mas para além do horizonte cosmológico
conhecido nenhuma lei científica nos impede de admitir a existência de um
Universo de antimatéria.
[23] Épicure 1994: 156. Lettre à Hérodote, cf. 56.
[25] Consultar, Eldredge,
N. y Gould, S,J. 1972: Punctuated equilibria: an alternative to phyletic
gradualism. En: Schopf, Th.J.M. (Ed.) Models in paleobiology. Freeman
Cooper and Co.: 82-115
*Circular:
Prémio CIJVS
Prémio Fundação Millennium bcp
Santarém, 16 de Maio de 2018
Tenho a honra de comunicar a Vossa Excelência, que o Júri do Prémio CIJVS, em reunião realizada no dia 14 de Maio de 2018, decidiu, por unanimidade distinguir os seguintes trabalhos:
“O sentido da vida e da morte, na Filosofia”, da autoria do Senhor Professor Doutor António Manuel de Almeida dos Santos Queirós.
Congratula-se o Centro de Investigação com o feliz resultado dos trabalhos de investigação a patentear um carácter paradigmático, evidente contributo como modelo de excelência.
A equipa Directiva e o Júri do Prémio CIJVS, instituído com o apoio da Fundação Millennium bcp, agradecem de forma penhorada o interesse expresso com douta participação. Mais salientamos a dificuldade sentida na selecção dos trabalhos premiados, em virtude do inequívoco valor e interesse para o conhecimento científico, patentes em todos eles.
Sublinho as palavras da equipa Directiva e do Júri do Prémio CIJVS, que endereçam as mais sinceras felicitações pelo êxito alcançado, aos concorrentes galardoados.
A entrega dos prémios será feita pelo Senhor Presidente da Fundação Millennium bcp, Doutor Joaquim Fernando Nogueira, na CXII Assembleia de Investigadores, comemorativa do VI Aniversário do Centro de Investigação, a realizar no Convento de São Francisco, de Santarém, no dia 26 de Maio de 2018, pelas 16 horas.
Um Abraço Afectuoso do Amigo dedicado e grato,
O Director
Professor Doutor Martinho Vicente Rodrigues
Sem comentários:
Enviar um comentário