El Paisaje y su Literatura,
en el cambio de paradigma filosófico
https://doi.org/10.47456/simbitica.v9i3.39803
António dos Santos Queirós
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-1241-5831
Doutor em Filosofia das Ciências. Professor e investigador
em Filosofia e Ética Ambientais no Centro de Filosofia da Universidade Lisboa.
Foi professor e investigador visitante nas Universidades de Salamanca, Espanha,
Bordéus e Sorbonne, França, e no Centro de Investigação em Educação, Wa Ching
da Universidade de Hong Kong, China. E-mail: adsqueiros@gmail.com
Resumo
Este artigo parte
da definição do conceito de paisagem, com fundamento na filosofia da natureza e
do ambiente, e da sua particular relação com a representação da paisagem na literatura.
No seu percurso investigativo, desvela a vivência estética e ética da natureza,
que evolui das conceções conservacionistas para a categoria de ambiente, com as
suas correlações económicas, sociais, culturais e históricas, configurada no
que chamamos de “paisagens culturais”, marcadas pelo dilema “crescimento ou
desenvolvimento sustentável”. E analisa o novo paradigma da natureza, onde se
integra o ser humano, que emana do conceito de ambiente e se traduz na
construção de uma nova estética e de uma nova ética, de uma nova filosofia ambiental,
premonitoriamente representada na literatura.
Palavras-Chave: natureza; ambiente; paisagem cultural; filosofia ambiental
Abstract
This article is based on
the definition of the concept of landscape, on the perspective of philosophy of
nature and the environmental philosophy, and its relationship with the
representation of the landscape in literature. In its investigative pathway, it
unveils the aesthetic and ethical experience of nature, which evolves from the
concept of conservation to the category
of environment, with its economic, social, cultural, and historical
correlations, configured in what we call "cultural landscapes",
marked by the dilemma "sustainable growth or development". And then, analysis
the new paradigm of nature, where the human being is integrated, which emanated
from the concept of environment and drive into the construction of a new aesthetic and a new ethics, a new
environmental philosophy, premonitorily represented in literature.
Keywords: nature; environment; cultural landscape; environmental philosophy
Resumen
Este artículo se fundamenta
en la definición del concepto de paisaje, basado en la filosofía de la
naturaleza y el medio ambiente, y su particular relación con la representación
del paisaje en la literatura. En su recorrido investigativo, desvela la
experiencia estética y ética de la naturaleza, que evoluciona desde las
concepciones conservacionistas hasta la categoría de medio ambiente, con sus
correlaciones económicas, sociales, culturales e históricas, configuradas en lo
que llamamos "paisajes culturales", marcados por el dilema "crecimiento
o desarrollo sostenible". Y analiza el nuevo paradigma de la naturaleza,
donde se integra el ser humano, que emana del concepto de medio ambiente y se
traduce en la construcción de una nueva
estética y una nueva ética, una nueva filosofía ambiental, premonitoriamente
representada en la literatura.
Palabras clave: naturaleza; medio ambiente; paisaje cultural; filosofía ambiental
Nascimento e metamorfose do conceito de paisagem na literatura
O conceito de paisagem, segundo Augustin Berque, emerge na China no
século IV e na Europa com o advento do renascimento (Séc. XIV), como atitude
contemplativa e estética das classes dominantes.[1] Arnold Berleant,
ao elaborar o conceito de “paisagem sempre em transição” enfatiza a trajetória
da visão pinturesca do século XIX para a experiência multissensorial
contemporânea e a expansão do conceito de paisagem (rural) às paisagens
urbanas, estabelecendo, com o seu outro conceito de Negative Aesthetics, que
algumas práticas humanas na paisagem, ao ofender a nossa sensibilidade
estética, assumem diretamente consequências morais[2]. Mas se o
distanciamento estético é atributo aristocrático, tal significa que na relação
entre os camponeses e a terra não exista algo mais que a luta pela
sobrevivência e até uma ética camponesa plasmada na paisagem?[3]
E haverá um saber científico que sustente as éticas ambientais? Deixemos, por
agora, estas questões sem resposta.
The “aesthetic engagement
Arnold Berleant substituiu o modelo kantiano, a que chama, obsoleto (2020:4), pelo conceito de “aesthetic engagement” (2020:5), que podemos traduzir aproximadamente como “envolvimento estético”, a fim de refletir a incorporação do usufrutuário (da arte) em todos os contextos ambientais The central idea in appreciation now becomes aesthetic engagement, which recognizes the unqualified participation that active appreciation requires and that the contemporary arts increasingly demand”. (Berleant, 1970:155-168). Arnold Berleant estabelece a ligação entre a estética e a ética, através da consciência da estética negativa e do sublime negativo: “(…) At the same time, through an awareness of negative aesthetics and the negative sublime, aesthetic sensibility provides a powerful tool for criticism by recognizing the human consequences of exploitative commercial and political practices.” (Berleant, 2020:7). A estética é redescoberta em cenários envolvendo diferentes formas de relacionamento humano, tais como amizade, família e amor, e alarga-se sempre mais, até ao conceito de “estética do quotidiano”.
Da criação da natureza ao fim da natureza?
Por outro lado, a tese do fim da natureza é a tese da dominação e inteligibilidade completas da natureza, o “sociocentrismo” de que fala Catherine Larrère. Admitiu-se a ideia de uma natureza criada por Deus, natura naturans (é o primeiro momento da modernidade clássica), uma natureza-processo e depois uma natureza-objeto, natura naturata, natureza artefacto, exterior ao homem, de que ele se separou ao instrumentalizá-la. Mas, como se sublinha na sua obra de referência, os processos naturais continuam e a artificialização da natureza não é controlável pelo homem nos seus efeitos.[4]. Acresce, que a filosofia ambiental reintegrou o ser humano na natureza, sem nenhum estatuto de domínio ou privilégio. Mas a maioria dos seus pensadores reconhecem na vida humana o ente mais complexo da evolução cósmica, que não o seu cume ou final. Com a extinção do homo sapiens sapiens e das espécies associadas à nossa evolução, um mundo imaginário de vegetais, micróbios e insetos, improvavelmente daria de novo origem à espécie humana ou mesmo aos mamíferos.
A origem da teorização da paisagem na literatura de língua portuguesa
Cabe aqui uma referência acerca da teorização literária do conceito de
paisagem em língua portuguesa, que vem acompanhada pelo
premonitório reconhecimento da
importância
concedida à literatura como recurso e instância da consciência ambiental, dos
seus valores estéticos e éticos. à portuguesa Geração de 70, já no século XIX, legou-nos
essa herança. Moniz Barreto apreendeu, na sua
função de crítico, o conceito sistémico da paisagem e a necessidade de a
interpretar à luz de uma nova cosmovisão assente numa pluralidade científica,
da estética e ética. No prefácio ao Portugal Contemporâneo, de Oliveira
Martins, elabora esse conceito de uma forma sintética e clara: “Uma paisagem é
um conjunto de elementos materiais coordenados de um certo modo no espaço e
refletidos de um certo modo no espírito”[5] (1987:28). Distingue depois
dois tipos de paisagens, a que chama descritiva e expressiva, que documenta em
seguida na obra de Oliveira Martins, apresentando extratos diferentes onde elas
se manifestam ou combinam, de tal modo que se umas são a “transcrição de
emoções” outras traduzem “a explicação de um mecanismo”. Porque, como afirma
Moniz Barreto…
(…) a palavra, pela sua origem
provável e pela sua ligação com a paisagem, é uma expressão natural dos
movimentos da alma, que a obra literária tem antes um alcance moral do que um
valor plástico e ver-se-á… que o Sr. Oliveira Martins procedia na composição
das suas paisagens, não como um pintor, mas como um poeta.
Como um poeta e como um geógrafo. Não só as suas paisagens são sentidas, mas ainda pensadas. Elas são para ele, não só fontes de emoção, mas resultados de forças, constituídas em sistemas naturais pela comunidade das causas que a determinam, e pela identidade de efeitos que provocam nos espíritos sobre que atuam (1987:31).
Então…
Leia-se na História de Portugal esta descrição do litoral alentejano. As águas
estagnam ou escasseiam nos baixos, as populações definham. Ou torradas pelo
árido suão que os areais ardentes não podem suavizar, e sem montanhas que
obriguem os vapores do mar a condensarem-se, ou envenenadas pelos miasmas dos
pauis que o sol de fogo põe numa fermentação permanente, as populações
amareladas e magras definham, curvadas pelo mortífero trabalho das marinhas de
sal, ou da cultura do arroz (1987:31).
E compare-se com as expressivas
páginas sobre o terramoto de 1755:
E as
casas erguiam-se com as paredes desabadas, os tetos abertos sobre o esqueleto
dos tabiques, mostrando a nu todos os interiores funestos, nestes dias em que
para muitos, Deus julgara e condenara Lisboa, como outrora fizera a Sodoma. Por
isso o rouco trovão dos desabamentos se ouvia cortado pelos ais dos moribundos,
e pelos gritos dos homens e mulheres, abraçados às cruzes, aos santos, às
relíquias, soluçando ladainhas, ungindo moribundos (1987:29).
E o “justo equilíbrio”
entre os dois caracteres documenta-o com esta sequência sobre a paisagem
minhota:
A
vegetação, de si mesquinha, é amesquinhada ainda pela mão dos homens; as
necessidades implacáveis da população abundante produzem uma cultura que é mais
hortícola que agrícola: pequeninos campos circundados por pequenos vales,
orlados de carvalhos pigmeus decotados, onde se penduram os cachos das uvas
verdes. No meio disto, formiga a família: o pai, a mãe, os filhos, imundos
atrás duns boizinhos anões que lavram uma amostra de campo, ou puxam a
miniatura de um carro (1987:32).
Mais diante, o autor apresentará duas ferramentas hermenêuticas, a
ecologia da paisagem e a metafísica da paisagem, que considera estarem aqui já
esboçadas na analítica de Moniz Barreto, e que na sua perspetiva permitem ler e
entender a paisagem como uma categoria em que não é possível separar a ciência,
a estética e a ética. Por agora e para melhor explicar a validade hermenêutica
e a competência operativa destes conceitos, que constituem uma única e global
perspetiva filosófica, recorramos à Etnografia, à Antropologia e à Geografia
Orlando Ribeiro enquadra
Portugal entre o Mundo Mediterrâneo e o Atlântico, olhando a Natureza pela perspetiva
das Ciências da Terra e da Vida, analisa modos de vida e a história do
povoamento, caracteriza influências naturais e civilizacionais, a economia e
particularmente a vida agrária, o pastoreio e as formas de povoamento, a
relação entre Natureza e Tradição, o Oceano como regulador do clima e da
vegetação, o espaço arcaizante da montanha, a revolução do milho e o papel da
vasta orla marítima e costeira, encontra os factores de unificação do país e os
seus contrastes, fundamenta divisões regionais e caracteriza três grandes
quadros paisagísticos: O Norte atlântico, o Norte transmontano e o Sul. Define, deste modo, aqueles fundamentos:
Uma
região geográfica caracteriza-se por uma certa identidade de aspetos comuns a
toda ela. Não apenas as condições gerais de clima e posição, mas ainda as
particularidades da natureza e do relevo do solo, o manto vegetal e as marcas
da presença humana, nos darão o sentimento de não sairmos da mesma terra[6] (1988:140).
Na Orientação Bibliográfica
da obra Portugal, o Mediterrâneo e o
Atlântico, Orlando Ribeiro reenvia-nos para os contributos de outros geógrafos, mas
também de historiadores, etnólogos, naturalistas, agrónomos e economistas (1988:148).
Ainda Orlando Ribeiro, na sua
comunicação Geografia e Reflexão Filosófica, apoiando-se na Geographia
de Estrabão, sublinha a sua polimatia (pluri e interdisciplinaridade).
Pensamos
que é uma preocupação do filósofo, se de alguma outra ciência o foi, a
Geografia, que agora nos propomos estudar…A polimatia
(pluridisciplinaridade) que, só por si, pode conduzir ao termo este trabalho,
não existe em nenhum homem que não considere simultaneamente o divino e o
humano, a cujo conhecimento chamam a Filosofia (1980:188)[7].
Neste contexto, entende o divino
como instrumento e o humano enquanto objeto da sua Filosofia (1980:188).
Seguindo sempre a obra de Estrabão, o nosso geógrafo sublinha a preocupação com
o conhecimento dos céus, da terra e do mar e dos seus seres, «a vida política»
e a «prática do governo», «a arte de viver e a felicidade», para concluir que a
Geografia como…”…ciência de observação, cuja essência consiste em «descrever e
interpretar» a Terra e os homens que vivem no seu seio…conduz a uma Filosofia
nascida da observação («a alma da Geografia»), da análise e da síntese da Terra
e do Homem que a habita, a transforma e a ameaça degradar ou destruir (1980:189)”.
Neste mesmo texto, cita Ratzel e o seu “mestre” Silva Telles, que no fim do
século XIX comungavam da mesma visão profética que.. “quanto mais o homem se
civiliza mais depende da natureza (1980:191)”. Ilustra então este princípio com
o exemplo das dependências energéticas face aos combustíveis fósseis e ao
ambiente crítico das grandes cidades, que rasoira e uniformiza à custa da perda
da diversidade que é a essência da Vida e da própria evolução da Terra.
Temos assim que a perceção
da moderna crise ambiental tem como uma das suas fontes de reflexão filosófica
a cidade moderna e a sua relação com o mundo rural, perspetiva que também foi adotada
pelos escritores da Geração de 70. Prossegue Orlando Ribeiro, a Geografia é
como uma ponte lançada entre a natureza e o passado (Ritter) e, enquanto corpo
científico, uma ciência de observação seletiva e descrição significativa
da paisagem, que, pela sua complexidade, não se pode reduzir a modelos
matemáticos computorizados e cuja metodologia, indutiva e dedutiva, apenas nos
permite «tocar a verdade» (Henri Baulig). Foi assim com Humboldt, físico e
naturalista, Ritter, historiador e filósofo, Troll e Lautensach, geógrafos e
exploradores, Baulig e, mesmo, Birot. Assim, e com a nova visão da Terra a
partir do espaço, se foi construindo a «espessura» da Geografia e se retomou a
tradição da polimatia, dando origem a novos ramos da ciência, mas conservando a
visão de conjunto que integra e relaciona os saberes, mas também… "…as
marcas humanas da paisagem e da organização do espaço" (1980:199). E é neste ponto que Orlando Ribeiro estabelece o nível de
encontro e de fecunda partilha entre Ciência e Filosofia.
Epistemologia, isto é
saber que deriva da experiência, Gnoseologia, que parte das ideias e não
dos factos, Teoria do conhecimento, em que a própria realidade pode ser
posta em causa. No fundo a famosa «questão dos universais» ou relação entre o
particular e o geral, que perpassa na filosofia cristã medieval e nunca será
provavelmente resolvida.
Como
Humboldt, Goethe ou Einstein creio firmemente na «harmonia interna do nosso
mundo», lógico como condição da inteligibilidade; com Jacques Monod «no
postulado de base do método científico: a saber que a natureza é objetiva e não
projetiva». Sem ignorar que, por trás das claridades que a razão faz
resplandecer, permanece o mistério
que o pensamento filosófico pretende penetrar de maneiras por vezes
contraditórias. Contemporâneos de Newton, que coroa um século de investigação
sobre a estrutura do Universo inteligível, são o realismo de Locke: «Nihil est
in intelectu quod prius non fuerit in sensu» em perfeita concordância com o
desenvolvimento científico da época; e o idealismo de Berkeley; «não sendo
sujeito cognoscente nem objeto cognoscível não pode atribuir-se à matéria
nenhuma espécie de existência»; ele move-se, como em Schopenhauer, em O
Mundo Como Vontade e Representação título expressivo de uma ideia que
nenhum cientista (recorde-se a frase de Monod citada acima) pode aceitar."
(1980:200-201, destaque nosso).
É este apenas tocar a
verdade, estas marcas humanas na paisagem, esta parte do mistério eternamente
procurado, de que fala Goethe (Conversações com Eckerman), evocado por
Orlando Ribeiro[8]:
“(…) de muitas coisas nunca conseguiremos aproximar-nos mais que um certo
limite que a Natureza reserva sempre por detrás daquilo que nos é acessível,
qualquer coisa de problemático (…)” (1980:201-202).
É sobre o significado
de “paisagem”, que não é redutível à
sua ecologia científica, que construímos o duplo conceito de "ecologia da
paisagem" e de "metafísica da paisagem", adiante
conceptualizados.
Recorramos agora à obra de
Jorge Dias, já no século XX: “Portugal, apesar dos seus 89.000 km2... oferece
rara variedade de paisagens naturais e humanas paisagem não só exterior ou
material, mas também paisagem espiritual que se revela em inúmeras facetas da
alma das suas populações” (1961:159)[9]. É a partir deste conceito de "paisagem espiritual" que
aquele antropólogo analisa o fenómeno da heterogeneidade de culturas regionais,
no quadro da homogeneidade da cultura nacional, explicando-o pela história (no
sentido etnológico e político), pela
geografia e pela afinidade. O princípio da
afinidade está ligado à tendência para conservar as formas de cultura e
acompanha o homem na sua marcha pelo mundo, sendo que a sua capacidade de
assimilação e sucesso é tanto maior quanto a afinidade com a antiga pátria,
sendo o oposto a causa da aculturação. E conclui: "A realidade humana e
geográfica que nos é dado observar é o resultado desse diálogo secular ou
milenário travado entre o homem e a terra: a terra humanizada pelo esforço do
homem, o homem modelado pelas exigências e limitações do telúrico” (1961:162).
O alcance desta perspetiva, para avaliar a
contribuição dos intelectuais da Geração de 70 para o emergir do conceito
global de Ambiente, a partir das ciências que lhe estão associadas, compreendemo-la
melhor a partir da definição complementar de Jorge Dias:
A etnografia portuguesa procura, por
um lado, analisar minuciosamente as diferentes subáreas culturais portuguesas, ou
seja, as culturas regionais, e explicar a origem, formação e função dos
diferentes elementos e complexos culturais, relacionando-os com o seu ambiente
natural e com a sua história particular, isto é, estudando-os sob o aspeto
ecológico, funcional e difusionista. Por outro lado, a etnografia portuguesa
tentará a interpretação da cultura portuguesa como cultura nacional (…o
resultado não é a soma de todos eles, mas um corpo novo) (1961)[10].
E da sua crítica ao etnocentrismo:
Etnocentrismo é uma atitude emocionalmente condicionada que faz considerar e julgar outras sociedades pelos critérios originados pela própria cultura. É fácil ver que esta atitude leva ao desprezo e ao ódio de todas as espécies de vida que são diferentes daquela do observador. (1961: 219)[11]
A literatura portuguesa como instância e recurso da questão ambiental
O
estudo sistemático da literatura portuguesa como instância e recurso da questão
ambiental, foi objeto dos trabalhos de mestrado e doutoramento, do autor deste
ensaio, no contexto de uma mais vasta reflexão filosófica, social e política,
enquadrada pela categoria do ambiente.[12]
Aqui e agora, porque esse trabalho heurístico é globalmente pioneiro e de longa
extensão, optámos por anotar e citar apenas alguns dos testemunhos menos
conhecidos (ou mesmo ignorados) da obra literária dos nossos criadores
contemporâneos, em relação com a moderna questão ambiental e partilhar a sua
experiência estética da natureza. Como afirma o coordenador do Guia de
Portugal, obra premonitória, à escala universal, de defesa do Património
Cultural e Natural, no seu prefácio: “A literatura apresenta aqui a disciplina,
a convergência de esforços e a harmonia das grandes massas corais. É um
uníssono coro que se ergue ao esplendor e à beleza da velha terra de Portugal” (1924).
Fica então traçado um dos limites deste artigo: Tornar visíveis algumas pistas
que possam conduzir à revelação dos contributos dos escritores portugueses para
a génese da moderna consciência ambientalista e à redescoberta das suas obras
nesta perspetiva, os quais, celebrados embora na sua dimensão artística,
permanecem na sombra enquanto mentores dessa outra consciência ambiental.
Para melhor elucidar esta questão, já no terreno da filosofia,
recorramos à reflexão do professor Carlos João Correia, acerca da dialética da
função simbólica, que implica “… dois movimentos aparentemente contraditórios
sobre a experiência do sentido, ou seja, … uma estrutura transcendental do sentido
e o poder operativo e transfigurador da experiência.” E noutro ponto da sua
dissertação:
(...) o mundo da ficção distancia-se do
mundo da experiência (situação), só que essa distanciação vai permitir uma nova
descrição e transfiguração da experiência. Ora, só podemos ampliar o horizonte
da nossa perceção elevando-nos a um ponto mais elevado que nos permita
circunscrever o espaço em que estávamos imersos. É esse, a nosso ver, o
sentido eminente das grandes criações literárias da humanidade. Oferecem-nos perspetivas
novas nas quais podemos observar e transformar a experiência (1994:149, sublinhado
nosso).
Neste contexto, perguntamo-nos mesmo se a literatura portuguesa não
representa, à sua escala e face ao panorama da cultura mundial, um contributo
de valor global para ultrapassar os paradigmas Modernista e Pós-Modernista, ao
incorporar as suas audácias técnico-compositivas e conquistas formais, mas
retomando os temas clássicos da arte e da literatura, a condição e a aventura
humanas sobre a terra, iluminadas atualmente pelo espectro da crise ambiental e
pela estagnação dogmática de todas as ideologias (estagnação que parece morte,
mas é afinal morte aparente).
Este percurso temático, ao longo do qual se revelam os contributos e as
obras dos nossos escritores, pareceu-nos mais adequado para demonstrar a sua
amplitude e valor premonitório, a fim de provar que tal desiderato não é a exceção,
mas a regra. Vale também, num sentido inverso ao da demonstração inicial, como
constatação da influência que a crise ambiental, quer disso tenham ou não
consciência os escritores, exerce hoje sobre a arte literária e a cultura.
A filosofia como tal, considera possuir o seu discurso próprio, que
autoidentifica como identitário da
filosofia e, portanto, distinto, sem mescla de confusão, do discorrer literário
ou da análise conceptual ou psicológica. Mas, tal não significa que o discurso
filosófico não possa coexistir ou atravessar o discurso literário e de outras
representações artísticas, não apenas do presente, mas também do passado e
certamente do futuro. A título de exemplo, situemo-lo nos versos de Francisco
Sanches, no sermonário de António Vieira ou nos sonetos de Antero e, no
presente, nos romances de Albert Camus ou de José Saramago, como nos belíssimos
poemas filosóficos de Jorge de Sena e nos escritos de Aquilino Ribeiro, obra
clássica, que não é regionalista, mas recriadora do falar, da gramática, da
ética da terra e animal, que a vivência milenar dos camponeses semeou, nas
paisagens culturais. Mas para que o valor da filosofia
seja reconhecido, na nossa sociedade global mercantilizada, acrescentaremos áà
reflexão sobre literatura e paisagem uma nota breve sobre a magnifica influência
da filosofia da paisagem para o desenvolvimento e progresso da economia do
património e o turismo ambiental e a sua sustentabilidade
A contribuição da Filosofia Ambiental e das suas éticas, para a conservação da paisagem[13]
Na obra The Imperative of Responsibility. In Search of an Ethics for
the Technological Age, o autor, Jans Jonas, judeu alemão emigrado para o
Canadá e os EUA, perante a tremenda influência da técnica moderna sobre a
natureza, formulou um novo imperativo categórico para a ação do homem, mais
além da máxima kantiana de conformação dos atos individuais com o princípio de
uma lei universal e desenha um novo quadro ético, o qual resulta da necessidade
de configurar a conduta humana nos limites que salvaguardem a continuidade da
vida e a sua diversidade. Act
so that the effects of your action are compatible with the permanence of
genuine human life (Jonas, 1979). De acordo com este
princípio ético estamos no limite do humanismo, mas não atravessámos ainda a
fronteira do antropocentrismo.
Retomando
as perguntas capitais que a obra de Espinosa colocou no advento da nossa
modernidade: como pensar a explicação racional da existência do homem e do
universo? Como adequar o pensamento filosófico à razão de ser de tudo o que
existe? E como transformar a vida espiritual em plena compreensão e serena
fruição da vida até ao seu limite? A Filosofia da Natureza e depois a Filosofia
do Ambiente permitem construir uma nova ontologia em crítica ao
antropocentrismo, uma nova epistemologia, fundada na crítica ao etnocentrismo e,
na perspetiva do autor, que se afasta da visão dominante que confina a ética no
plano individual, uma nova teoria ética, de valor universal e de conteúdos
práticos aplicáveis a todos os domínios sociais, num percurso que vai de Espinosa
a Hans Jonas..
Tal como
na filosofia de Espinosa e depois nos filósofos ambientalistas, o impulso
fundamental de reflexão da filosofia ambiental foi a questão ética e são os
problemas morais.
O esforço
para distinguir os conceitos de ética e moral, ética normativa (o que devo
fazer) do conceito filosófico ou meta-ethic
(qual é a natureza do bem), pode não ser simples. Se ética normativa é o que o
comum das pessoas entende por “ética” e meta-ethic
pode ser o que o senso comum designa por moralidade… tal sucede no quadro da
visão antropocêntrica destes problemas. E, a verdade
é que, no século anterior a reflexão moral se orientou para um novo centro, o
ambiente.
As éticas
ambientais evoluíram em dois principais ramos: o Biocentrismo, uma teoria
universal sobre o valor moral intrínseco de todos os seres, que por isso exigem
o nosso respeito. E o Ecocentrismo, uma ética da comunidade biótica: How Nature can be a community of which we
are members, and in within which it is possible for us to conduct ourselves
well. (Leopold, 1947)… mas
também a deep ecology e outras
variantes...A obra de
referência da Ética da Terra pertence a Aldo Leopold (depois de Walt Whitman e
David Thoreau), que a retira dos estudos de Darwin e dos avanços científicos da
Ecologia.[14] O sentimento da necessidade de ajuda e defesa
comum, desenvolvido ao longo do processo de seleção natural, gerou o conceito
de comunidade, fundamento da ética. E é uma nova conceção da natureza que
emerge, agora entendida como uma sociedade de plantas, animais, minerais,
fluídos e gases, estreitamente ligados e interdependentes.
Caberia ao
australiano Singer e ao americano Regan enfatizar os sentimentos e os direitos
dos animais face à brutalidade dos processos produtivos modernos: clonagem
genética, jaulas prisão, rações baseadas na carne triturada de animais mortos e
saturadas de hormonas, violação sistemática dos ritmos naturais e das
necessidades da vida animal, tudo isto em função do lucro máximo. Nas suas obras afirmam que os animais são
sujeitos de interesse em não sofrer e também, acrescenta Regan, são sujeitos de
direito, por que são sujeitos de uma experiência de vida que possui valor
intrínseco. Partindo da tese de que “...alguns
animais não humanos parecem ser racionais e conscientes de si, concebendo-se
como seres distintos que possuem um passado e um futuro…”, propõe-nos uma ética
gradualista contra o assassinato de animais, que no seu patamar superior
estende aos chimpanzés, gorilas e orangotangos a mesma proteção devida aos
seres humanos (1993:141)[15]. Questiona se esta
restrição não deve ser alargada a todos os mamíferos, para reconhecer depois
que, em face de outros animais que não são seres racionais e autoconscientes, a
sua argumentação enfraquece, postulando embora que é sempre inaceitável
provocar a morte prematura de biliões de animais. Sobre esta base, propõe o
alargamento do conceito de “pessoa”.
A ética
ambiental, na nossa visão filosófica, assenta em dois princípios_ a crítica do
antropocentrismo e a crítica do etnocentrismo, procurando dar uma resposta
universal aos problemas fundamentais da nossa era: a crise ambiental, social,
económica e política, a ameaça representada pela guerra nuclear e pelas armas
de destruição massiva…e contribuir para reformular as atividades humanas em
todos os domínios; tal é o caso da paisagem, a bioética, no campo da saúde e,
mais tarde, da ciência, e da política e do turismo, que, é, afinal, um
percurso entre paisagens, urbanas e rurais.
A moral,
ainda no nosso modo de filosofar, é sempre uma expressão e representação
determinada pelo contexto histórico e pela dominação social, o que lhe confere
um caracter sectário. Necessitamos, pois, de uma teoria moral que possa ser
universal, intemporal (projetada no presente e no futuro) e capaz de orientar a
conduta individual, a ciência e as ideologias políticas, mas que não considere
o homem como o produto final da evolução da Vida. A biodiversidade da Vida, com
a Vida Humana, representa apenas o cume atual da complexa evolução do Cosmos,
mas nós não sabemos se a nossa espécie, nascida na Terra, representa o elo
final da evolução cosmológica. Por isso o imperativo ético de conservar a Vida
e não apenas o Homem e de conservar a Vida antes do Homem, e a Terra, berço da
Vida cósmica e por ora o seu único berço, devem ganhar força moral nas
sociedades humanas. Sendo certo que o Homem é simultaneamente predador e
criador de novos biótopos e paisagens, sendo hoje a forma mais complexa da
Vida, e a sua extinção poderia bloquear a expansão da própria diversidade, pelo
que, e nesta perspetiva, o Humanismo moral regressa ao centro da reflexão
filosófica ambiental e da Ética Ambiental: um paradoxo que representa afinal a
complexidade do devir histórico.
Para
procurar uma resposta a estas questões, nasceu uma nova cosmovisão, uma nova perspetiva
ética, uma teoria construída com os princípios (meta-ethic que definem a natureza do “bem”) aplicados a todas as
atividades humanas (as éticas práticas, que configuram a moral social e as suas
deontologias), incluindo a reflexão sobre a paisagem.
Paisagem cultural: Ecologia e Metafísica da Paisagem
O conceito
de ambiente constitui-se e adquire uma conotação “moderna” quando deixa de
significar apenas conservação da natureza e oposição da cidade ao mundo rural,
enriquecendo-se com novas significações que comportam os valores conotativos do
despertar social perante os perigos da industrialização e urbanização e a
resposta cívica aos problemas da saúde pública e da sobrevivência da humanidade
gerados pela poluição generalizada e a destruição dos recursos naturais, ainda
numa perspetiva antropocêntrica.
Ele
incorpora, progressivamente, uma dimensão científica plural, não só aquela que
lhe empresta a Ecologia tradicional, enquanto ciência da relação dos seres com
o meio, mas também um vasto leque de outros domínios científicos, a Geografia e
a História quando estudam a humanização dos grandes quadros naturais, a
Biologia que revela a importância da diversidade dos seres vivos, a Geologia
que nos conduz ao reconhecimento das condições paleoambientais geradoras dos
ciclos de extinção e expansão da biodiversidade, a Matemática quando cria
modelos de avaliação e gestão dos sistemas ecológicos, a Física e a Química que
intervêm na análise dos fenómenos de poluição e mudança climática…ao mesmo
tempo que remete para a necessidade de avaliar o nosso modo de crescimento nos
planos da ética e da moral.
Falamos de
nova visão da paisagem, pluri e interdisciplinar, que é, simultaneamente, um
instrumento operativo da sua hermenêutica e uma categoria do domínio da
Filosofia da Natureza, designamo-la duplamente por:
– Ecologia da paisagem (humanizada). Que compreende, na nossa
definição, uma visão estrutural e sistémica englobando os grandes quadros
naturais, caracterizados e diferenciados, seja pelos diversos
domínios da ciência – que vão das ciências do ambiente às ciências exatas; quer
a presença transformadora do homem no seu esforço de agricultor, pastor e
arquiteto da paisagem. E daí, também, o concurso das ciências históricas e
humanidades. De facto, e como anteriormente sublinhámos, a expansão da espécie
humana por todas as regiões do globo e a sua adaptação à diversidade dos
habitats mais agrestes, em paralelo com a crescente universalização e
globalização da ação antrópica, originou, a partir da Idade Moderna, uma nova
relação da Humanidade com a Natureza: doravante, deixarão de existir os grandes
quadros naturais puros, toda a paisagem se transformará, direta ou
indiretamente, pela atividade humana. Então, o conhecimento físico e científico da paisagem humanizada,
engloba a ecologia da paisagem. E de ora em diante utilizaremos
apenas o conceito de “paisagem”, entendido como quadro natural humanizado pelo
esforço (o trabalho) humano. Recordemos,
a propósito a reflexão de Francisco Caldeira Cabral sobre a paisagem
humanizada, no âmbito da definição do objetivo e da missão da arquitetura
paisagista:
(...) o seu objeto próprio é a paisagem humanizada, isto é, aquela que
o homem modelou para satisfação das suas necessidades primárias. Quer isto
dizer que a sua ação tem por fim o homem em toda a sua complexidade material e
espiritual, para o qual procura encontrar a satisfação dos fins materiais, mas
sem esquecer nunca os aspetos de ordem, de beleza e equilíbrio. Procura
realizar uma síntese das aspirações humanas neste mundo, e por isso é uma arte,
uma das belas-artes (Cabral, 1956: 46).
Mais adiante,
prossegue Caldeira Cabral: “Nos países da Velha Europa nada resta da natureza intacta… Aqui a intervenção do
arquiteto paisagista, que defendendo a natureza defende o homem, é não só necessária,
mas imperativa” (Cabral, 1956:47). Após o que desenvolve as suas metodologias
de cooperação e trabalho, pluridisciplinares e interdisciplinares, associando
arte, ciência e técnica, operários e lavradores, a ecologia e a biologia com as
ciências físico-matemáticas, a história e a estética, enfim, citando Tomás,
«uma arte que coopera com a natureza».
Mas a interpretação da paisagem, na ótica da Filosofia da Natureza e do
Ambiente, ficaria incompleta sem o recurso a um outro elemento categorial, que
definimos como: metafísica
da paisagem, que é do domínio da “espiritualidade”, da “alma” das coisas, das
categorias, emoções e sentimentos estéticos da “beleza” e do “belo” ou do
“sublime”, do “maravilhoso” e do “misterioso”, do “monumental”, do “épico” e do
“trágico”.
Parece-nos
adequado recorrer ao conceito de metafísica associado à paisagem, quer pela
génese da sua origem quer pela sua plurissignificação na história da filosofia.
Os escritos de Aristóteles foram ordenados e coligidos primeiro pela Física e
depois pelos “tratados depois dos tratados físicos”, critério igualmente
utilizado pelos escolásticos que usaram a expressão transphysica. Assim procedeu, em Roma, cerca de 70 a. C. Andrónico
de Rodes.
O conceito de metafísica surge no contexto do estudo da ontologia e da
epistemologia, questionando os problemas últimos do Ser e da Realidade e a sua
relação com o conhecimento humano. Através da metafísica da paisagem procuramos
detetar os princípios permanentes dos entes, na sua relação com o conhecimento
humano. Mesmo que de uma forma fragmentada é essa preocupação que se encontra
latente em muitos dos autores da Geração de 70, apenas parcialmente evocados. À
sua maneira, na representação da paisagem deram-nos testemunho de uma mais
ampla visão do mundo. Uma visão que não se restringe às questões do
conhecimento, da verdade do discurso, e do discurso como veículo da verdade. A
metafísica da paisagem permite-nos efetuar também a passagem do ensaio e do
texto poético para as artes plásticas, em particular a pintura. O usufruto da
paisagem pode assim ser
mediatizado pela arte literária e pelas belas-artes, mas também pela nova
galáxia de comunicação multimédia.
Para o
leitor menos familiarizado com estes conceitos, vamos procurar defini-los de
forma sintética e ilustrá-los, sem deixar de referir que o seu debate prossegue
desde sobretudo o século XVIII, conduzindo, por exemplo, no que ao belo naturalizado
respeita, aos jardins franceses geometricamente projetados ou aos jardins
românticos ingleses, onde predomina o arranjo da natureza em recantos,
arboretos e tufos dispersos. Do conceito do ‘belo’ na paisagem, queremos entender
a visão da harmonia de cores e de formas, do seu equilíbrio na diversidade, da
ausência de agressões visíveis ao seu património natural e cultural, dos
cheiros e perfumes, do movimento das copas e das searas e, portanto, valores
que despertam todos os sentidos e apelam para outros valores morais.
Do
‘sublime’ na paisagem, entendemos a associação do belo com um sentimento de
respeito e até de um certo receio, imposto pelo quadro paisagístico natural,
ou, predominantemente natural, como seja a imponência de uma montanha coberta de
neve ou a largueza da paisagem que dela se avista.
Do
maravilhoso na paisagem, entendemos o belo elevado à potência, com todos ou
alguns dos sentidos estimulados para uma emoção superior.
Do
misterioso na paisagem, queremos representar a surpresa e o fascínio, por
formas, cores e sobretudo ambientes, que não compreendemos espontaneamente.
Do
monumental na paisagem, o reconhecimento da transformação da paisagem pela sua
humanização através do trabalho humano, à escala do belo e com as dimensões do
que chamamos monumento.
Do épico
na paisagem, quando reconhecemos nesse esforço de humanização da paisagem, da
sua transformação em paisagem cultural, um esforço excecional, muitas vezes
secular ou milenário do homem, muitas vezes associado ao uso de animais e à
criação de novos biótopos pela sua ação.
Do trágico (e do dramático), quando observamos, percorremos, sentimos, as paisagens culturais em processo de abandono ou já de total ermamento, conservando ainda os sinais da presença das comunidades humanas.
Categorias para-estéticas da paisagem
Tomando
como exemplo a paisagem da Serra da Estrela, a montanha mais alta de Portugal
continental, podemos nela referenciar um conjunto de categorias a que
denominamos para-estéticas, com um valor moral intrínseco: “O único”, a sua
Torre, cume panorâmico da Serra, coroa da neve, e configurar esse conceito como
suscetível de expressar os atributos paisagísticos exclusivos de um sítio. “O
singular”, a Cabeça da Velha, formas antropomórficas do granito produto da sua
erosão, definindo agora o conceito como atributos bastante comuns, mas com
forma identitária de um objeto paisagístico. “O autêntico”, como o dólmen de
Cortiçô, símbolo do esforço heroico dos
primeiros agricultores e pastores, com os atributos conceptuais da conservação
dos objetos e contextos paisagísticos originais, tais são os seus esteios de
granito de vários tipos, de grão fino, mas também porfiroide, que, por não se
encontrar nas redondezas, testemunha por si só o esforço épico dos seus
construtores; local mágico, que parece orientado para o ciclo diurno do sol e
representar simbolicamente a morte e a vida nos solstícios de Inverno e de
Verão. “O genuíno e o raro”, objetos e detalhes da paisagem humanizada, que no
seu processo de evolução tendem para o desaparecimento ou corrupção, aqui
expresso pela figura e obra de Mateus Miragaia, o último ferreiro do Jarmelo,
fabricante das tesouras de tosquia da lã da Estrela, a sua oficina e as marcas
do seu trabalho em toda a paisagem rural da aldeia do Jarmelo. E diferenciá-las
das Categorias para-estéticas paisagistas (sistémicas).
Enunciemos
algumas dessas Categorias para-estéticas sistémicas: “O Mosaico
agro-silvo-pastoril”, que constitui uma visão da paisagem, sistémica, pluri e
interdisciplinar, material e espiritual, da paisagem humanizada (cultural) ou
terroir, a floresta protegendo os cumes, os prados a meia encosta e no vale a
horta e as terras de cultivo. “A Paisagem de Bocage”, do francês bois, uma sebe
contínua. Com o bosque no alto da encosta, sebes vivas e linhas de arvoredo
ligando as mantas de terra e pastagem armadas sabiamente sob as linhas de declive,
sem muros de suporte. “Prados de Lima”, a água repartida finamente e como que
limada em finos regatos nas veigas da ribeira, para que o pasto não seque no
verão nem se queime pela geada no inverno; rega de lima mantendo o crescimento
das pastagens e realizando a recarga alargada dos aquíferos. “Socalcos”
monumentais, suportando o solo e recolhendo as escorrências pluviais. “O
Carvalhal e a mata ripária”, conservando a agricultura tradicional, local
privilegiado de observação da avifauna. “Jardins aquáticos”, cobrindo o leito
dos rios e ribeiras. “Jardim de musgos”: microflora e microfauna …fungos de
múltiplas cores e formas. A mais-valia paisagística e turística destas
paisagens, as suas cores, musicalidade, salubridade, aromas, sabores…
Podemos
identificar categorias estéticas e para-estéticas negativas, de par com as
categorias estéticas positivas, num ciclo
interminável de abandono e renascimento da paisagem cultural. O “feio”, o feio
dos fios elétricos cruzando o horizonte visual dos monumentos, das feridas
abertas nos montes pelas pedreiras e o repugnante de um eucaliptal sem outras
vidas. O “desinteressante” da monotonia verde monotonal: de um pinhal. O
“ofensivo”, dos inertes e restos das construções marcando as valetas e as
veredas, acentuando a dimensão moral do problema. “O repugnante”, das lixeiras
marcando a paisagem, do cheiro acre das celuloses em quilómetro de paisagens,
das águas podres das ribeiras-esgoto, outra vez integrando o sentimento moral e
estético.
O conceito de transcendência da paisagem
Podemos
agora avançar para o conceito de transcendência da paisagem. Se a física da
paisagem engloba tudo o que respeita à ecologia e à relação desta com outras
ciências, a asserção de metafísica, traduz a cultura humana plasmada nessa
paisagem, que é um lugar físico, mas também espiritual onde se sobrepõe o devir
do pensamento e a multiculturalidade das nossas civilizações. Esta conceção
metafísica não se opõe à realidade física da natureza, mas transcende-a, por
exemplo, ao recriá-la e dar-lhe expressão e dimensão estéticas,
reconhecendo-lhe o poder de gerar uma relação múltipla com o autor da obra de
arte ou literatura, com o seu leitor-espectador, com o seu povoador ou simples
viajante. Ou, quando funciona como referencial religioso, a paisagem como
espelho da criação divina ou psicológica (afetivo), a “minha terra” no livro de
Garrett (Viagens na Minha Terra).
Enfim, não nos basta falar simplesmente de ecologia e metafísica da paisagem, porque se torna necessária a vivência e a intervenção do sujeito (individual ou coletivo, comunidade etnográfica ou artista singular, ou o nosso turista) para ler, interpretar e recriar o que neste conceito se expressa nos domínios das diversas ciências e das denominadas Humanidades, e porque a própria paisagem, na sua dinâmica evolutiva e relação com o homem, representa mais do que a soma da natureza e das marcas da sua humanização cultural, possui uma terceira dimensão onde se interligam a ecologia e a metafísica, elemento categorial que denominámos como transcendência da paisagem uma terra ignota, irredutível à análise objetiva, porque intrínseca a cada autor ou viajante, aquela que resulta da criação artística e das outras obras do espírito e da afetividade do indivíduo, da comunidade e mesmo da nação, e se expressa através da criação de objetos culturais, eruditos e populares e da própria evolução do espírito humano na sua subjetividade individual e imaginário coletivo. E é daqui que emerge a Literatura como mediadora entre a vivência pessoal da paisagem, onde peregrinamos e a comunidade humana de leitores da paisagem
A falta de
rigor e confusão no uso dos conceitos de natureza e ambiente, tal como de ética
e moral, mas também o carater plural das éticas contemporâneas, conduz à
necessidade de conhecer e debater estas matérias no âmbito do discurso sobre a
paisagem. A perspetiva da Filosofia e das Éticas Ambientais é holística, o
Homem já não está no centro do conceito de valor moral, como senhor absoluto e
discricionário de toda a natureza. Segundo a cosmovisão das éticas ambientais,
cada atividade humana, na sua interação com a natureza de que é parte, deve
subordinar-se ao respeito e conservação pela “comunidade biótica e abiótica”. Da
paisagem cultural, emergem assim, novos filosofemas e valores, de crítica ao
antropocentrismo e ao etnocentrismo, que configuram a passagem da Filosofia da
Natureza à Filosofia do Ambiente, e as suas Ética da Terra e Ética Animal, com
o alargamento do conceito de comunidade e de pessoa, e o dever moral abrangendo
toda a natureza.
A paisagem
não é um livro aberto. Para a sua leitura, interpretação e usufruto
sustentável, propomos três novos conceitos: ecologia da paisagem, metafísica da
paisagem e transcendência da paisagem, que foram apresentados e discutidos no
artigo.
A
hermenêutica da representação da paisagem pela literatura, de forma
premonitória na literatura portuguesa, impulsionou a visão ambientalista e
revelou, nas suas categorias ético-estéticas, na descoberta da sua
biodiversidade e geodiversidade, e na história da sua humanização, a
complexidade das paisagens, conduzindo à revalorização das Paisagens Culturais
e conclamando a necessidade de mudança de
paradigma civilizacional, a que podemos chamar Ecocivilização.
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[1]
Filosofia da Paisagem, Uma Antologia.
Coordenação de Adriana Veríssimo Serrão. CFUL. 2012
[2]
Berleant, Arnold (2012) “Changing Landscapes”, keynote lecture at Transition
Landscapes/ Paysages en Transition, International Conference, Lisboa,
Portugal.
[3]
O leitor interessado no tema pode reencontrar esta reflexão filosófica mais
desenvolvida no artigo “Campos de Deméter: Da impossibilidade de separar a
ciência, a ética e a estética na hermenêutica da paisagem”, Revista Philosophica
nº 40. Departamento de Filosofia da FLUL. Págs. 69-94. 2012.
[4]
Larrère, Catherine, Larrère, Raphaël. Du Bon Usage de La Nature. Aubier, Paris, 1997. Editado para
português pelo Instituto Piaget.
[5]
Portugal Contemporâneo, de Oliveira Martins, Prefácio de Moniz Barreto,
pág. 28. Escrito no século XIX, reedição de 1987.
[6]
Orlando Ribeiro, Portugal, o Mediterrâneo
e o Atlântico, 1988.pág. 140,
[7]
Orlando Ribeiro, “Geographia de Estrabão, Geografia e Reflexão Filosófica”, in Memória da Academia das Ciências de Lisboa,
Classe das Ciências, Tomo XXI, Lisboa, 1980, pág. 188.
[8]
A este propósito, recordemos Goethe noutra obra, a Metamorfose das Plantas: "A afinidade secreta entre as
diferentes partes exteriores da planta, tais como as folhas o cálice, a corola,
os estames, que se desenvolvem sucessivamente e como que a partir umas das
outras…chamou-se Metamorfose das Plantas (...)” (p. 35, Tradução, Introdução,
Notas e Apêndice de Maria Filomena Molder. Desta introdução, recordemos Goethe
de novo: “É precisamente no cruzamento dos caminhos da arte, do saber e da
ciência que a morfologia tem a sua origem (...)” (cf.«Die Absicht eigeleitet», HÁ 13, p. 55) (...) A forma é uma noção do
poder alquímico e de valor liminar entre o ser e o aparecer. A natureza, a
totalidade das formas, é tematizada a partir do eclodir de epifanias locais
(...) «A doutrina da forma é a doutrina da transformação. A doutrina da
metamorfose é a chave de todos os sinais da natureza» («Aufsäte,
Fragmente, Studien. Zur Morphologia», LAI , 10. p. 128) (p. 27).
[9]Jorge
Dias, Estudos de Antropologia, Volume I,
Tentâmen de fixação das grandes áreas culturais portuguesas, 1961, p. 159.
[10]
Ver, Jorge Dias, Estudos de Antropologia,
Volume I, A Etnografia como Ciência, págs. 44 e seguintes, onde se
equacionam também os riscos de rotura cultural e do desaparecimento do
património do mundo rural face à predominância na cultura contemporânea do
elemento dinâmico, como produto da revolução técnico-científica e da
comunicação, em paralelo com uma atitude de menosprezo "pelas formas de
visa rústica" das elites dos países essencialmente agrícolas.
Acerca do tema afim, Campo e Cidade: O camponês e o Urbano,
ver a comunicação de Manuel Viegas Guerreiro à Academia das Ciências de Lisboa,
em 1980, publicada na coletânea Povo,
Povos e Culturas, Portugal-Angola-Moçambique.
[11]
Jorge Dias, Estudos de Antropologia,
Volume I, Uma introdução histórica etnografia portuguesa, pág. 219,
publicada em 1961.
[12]
Consultar bibliografia.
[13]
Como o tema é vasto, situemo-lo na
dialética entre Cultura e Natura.
[14]
Aldo Leopold, A Sand County Almanac, 1949.
[15]
Peter Singer, Ética Prática, do capítulo Tirar a Vida de Animais, 1993, pág.
141.
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