Epicuro and the meaning of Life and Death
António dos Santos Queirós_ CFUL, Universidade de Lisboa
António dos Santos Queirós_ CFUL, Universidade de Lisboa
III CONGRESSO INTERNACIONAL DE FILOSOFIA GREGA
Organizado pela Sociedade Ibérica de Filosofia Grega
(Lisboa, 20, 21 e 22 de Abril de 2016)
Resumo
Este ensaio breve propõe-se evidenciar a
influência do pensamento epicurista original na evolução dos conceitos de
natureza e de natureza humana, assinalando o seu reemergir, no advento da
Filosofia Moderna e, no nosso tempo, com a Filosofia Ambiental. Partindo das
cartas, fragmentos e máximas epicuristas, incidiremos a nossa reflexão, acerca
da natureza, nos filosofemas sobre o sentido da vida e da morte.
Aqui discutiremos, no contexto das relações
entre ciência e filosofia, a intuição fundamental de Epicuro que pressupunha
que a natureza fosse explicada pelas suas próprias leis, mas onde era preciso
incluir também o acaso e a contingência; e a intuição de Bento de Espinosa, segundo a qual Deus é
Natureza desenvolvendo-se a si própria conforme leis que lhe são
intrinsecamente necessárias; à luz das descobertas científicas contemporâneas
que penetraram os segredos da origem do universo e da estrutura quântica da
matéria.
Convirá então abordar o problema da “causa
das coisas” e a sua relação com o “ser”.
O pré-conceito que concede à filosofia o domínio de se questionar sobre
“o que significa ser” e atribui à ciência o domínio do estudo das “causas”
fenomenológicas, pode reconduzir-nos ao velho mecanicismo e a uma espécie de
nova escolástica. Sobretudo no domínio das éticas aplicadas. Questionamo-nos:
Onde aquela conceção, assim pré-determinada, encontra sobretudo oposição, não
pode existir uma relação dialética?
Num primeiro postulado, procuramos demonstrar
que o vazio moral, que a filosofia cartesiana não preenche, não é consequência
inevitável do abandono da conceção divina da unidade ontológica, antropológica
e ética da natureza humana (aristotélica).
Num segundo postulado, afirmamos que a
filosofia de Bento de Espinosa supera a dicotomia entre subjetividade e a
natureza, sem quebrar a sua unidade; nela, o conceito de extensão das
categorias de Deus Substância e Deus Natureza, unifica o ser e o dever, sem
colocar o Homem acima da natureza e sob a sua dominação.
Num terceiro postulado, discutiremos o
processo de elaboração do conceito de “razão ambiental” moderna, que começa a
ser construído com a formulação de um novo imperativo categórico para a ação do
homem, mais além da máxima kantiana de conformação dos atos individuais com o
princípio de uma lei universal, um novo quadro ético, o qual resulta da
necessidade de configurar a conduta humana nos limites que salvaguardem a
continuidade da vida e a sua diversidade.
E esperamos avançar, na terra ignota que a ciência e a religião configuram, no
reconhecimento do sentido da vida através da libertação (epicuriana) da
heurística do medo… da morte e na compreensão do sentido da morte: a morte
corporal, que não inclui o fim das moléculas e átomos, a morte como condição para a sobrevivência dos novos indivíduos sobre a
Terra, derradeiro ato de amor para com os descendentes (princípio do altruísmo),
indagação filosófica que responde ao
eco perene do pensamento: “para onde vai a nossa consciência”?
1.
Filosofia da
(Boa) Morte. Resistir à morte. Aceitar a morte: Princípio do altruísmo
“Oh, possamos nós
todos ter sempre em vida a religião do Sol, da beleza e da harmonia:
movermo-nos na atmosfera serena do bem e da liberdade; ter a alma limpa e
transparente, sem sombra de deuses e de reis, sentir o enlaçamento divino dos
braços da bem amada; e depois, ó santa Natureza, toma os nossos corpos para
fazer deles árvores cheias de sombra e ramos resplandecentes.” [1]
Assim mesmo nos aconselhava a filosofia de
Epicuro, passeando entre amigos e poetas, nos jardins das cidades gregas em
crise, mas agora a voz que apela é a de Eça,
para que, em vida e numa época conturbada, voltemos a conviver com a
natureza, penetremos nos bosques onde são sublimados todos os males e angústias
e ali celebremos o ritual da serenidade, onde a dialética dos conflitos se
apazigua...
O texto mais michletiano de Eça, e por onde
perpassa também a filosofia de Antero, é uma reflexão sobre a natureza humana e
a vida, sobre o corpo e a terra, denominada Os
mortos.
É uma escrita próxima da poesia, que Eça
retoma, num conto isolado denominado As
misérias: 1. entre a neve.
Vejamos como o “não temor” da morte, que
evoca a filosofia de Epicuro ou o eterno retorno à natureza, atravessam o
primeiro texto e, nele, o homem perde o seu estatuto de dominância face à sacralização de todos os elementos
naturais.
“E no entanto, os
mortos, que são os pais, as irmãs, as bem-amadas, as mães, estão pela Natureza,
pelos montes, pelas águas, pelos astros _serenos e imaculados. E porque tememos
a morte?”
“As árvores, as
eflorescências, as ervas, as folhas, são também formas de vida, santas e cheias
de Deus. Por toda a parte, pelas famílias das constelações, pelos planetas,
pelas árvores, pelos lívidos interiores da terra, pelas águas, pelos vapores,
pelas plantações fecundas, escorre a seiva, o átomo santo, a alma universal.” [2]
O panteísmo de Eça retira ao homem o seu
estatuto divinizado e antropocêntrico, concedendo-lhe o mesmo lugar e função em
que o movimento da vida envolve todos os seres, o eterno retorno à terra para
gerar a “transfiguração sagrada”.
Mas a Natureza toda não é apenas fecunda e
santa, ela possui o atributo moral do Bem, (assim o entendiam igualmente
Michelet e Antero) enquanto a condição humana carrega também o do Mal.
Por isso só os mortos são felizes, porque
andam longe da forma humana, alimentam a terra e renascem transformados...”na
floresta imensa”.
“... as raízes das
rosas pastam a podridão dos tiranos; e dos homens que na terra ensanguentaram,
dilaceraram, profanaram, faz carvalhos austeros e cedros religiosos”. [3]
A floresta, na sua diversidade animal e
vegetal, na sua íntima ligação à terra, é o símbolo poético e ao mesmo tempo a
metáfora filosófica deste universo imaterial onde tudo se liga com tudo numa
sagrada transfiguração. A árvore torna-se ícone do valor intrínseco das formas
da natureza, onde até os rochedos têm “faces pensadoras” e o homem mais
simples, o lenhador, mesmo que eticamente justificado pela fome que tomou conta
da sua casa, sente que o abate das velhas árvores é “uma profanação”: Velhos carvalhos violentos e proféticos;
olmos grotescos; castanheiros ruidosos; choupos desfalecidos...
“Aquelas árvores que
tanto tempo levaram a formar-se e a enrijar, e a acostumar-se aos ventos tumultuosos,
e a saber agarrar as crinas da chuva, e a enlaçar as moles nudezas das névoas e
dos vapores, aquelas árvores cheias das mordeduras de Novembro, cheias de
legenda e do cheiro das tormentas...” [4]
Afinal, o jovem Eça, pela voz do seu
personagem Carlos da Maia, partilha já os princípios filosóficos da cosmovisão
ambiental do Jacinto dos últimos escritos, que regressa à paisagem humanizada
de Tormes.
“...Era o fatalismo
muçulmano. Nada desejar e nada recear...Não se abandonar a uma esperança – nem a
um desapontamento. Tudo aceitar, o que vem e o que foge, com a tranquilidade
com que se acolhem as naturais mudanças do dia agrestes e suaves...E, nesta
placidez, deixar este pedaço de matéria organizada que se chama o Eu ir-se
deteriorando e descompondo até reentrar e se perder no infinito
Universo...Sobretudo não ter apetites. E, mais que tudo, não ter
contrariedades.” [5]
Ega concordava e citando o Ecclesiastes, afirmava a inutilidade do
esforço porque:
“...tudo se
resolve...em desilusão e poeira.
Se me dissessem que
ali em baixo estava uma fortuna como a dos Rothschilds e a Coroa de Carlos V à
espera, para serem minhas, se eu lá corresse, eu não apressava o passo...Não
saía desse passinho lento, prudente, correto, que é o único que se deve ter na vida.”
[6]
No entanto, há na filosofia de vida que Eça
anuncia algo mais, uma grande serenidade que a construção metonímica do
discurso vela e a reflexão existencial bruscamente quebrada com o picaresco das
lamentações de Carlos, por já não poder provar o genuíno paio português,
confunde deliberadamente.
Julgamos que o escritor “fala
filosoficamente” quando estabelece o seu conceito de existência e da condição
humana, fá-lo, obviamente, à maneira de Eça, numa dimensão irónica e num
contexto romanesco.
E é impossível, como diria o seu Jacinto, não
sentir a solidariedade desta voz com a do filósofo da antiguidade quando nos
anunciava o seu caminho para a sabedoria e a felicidade.
Em primeiro lugar porque todo o último
capítulo dos Maias é um culto aos
valores da amizade:
“De todos os bens que
a sabedoria procura para atingir a felicidade de toda a vida, o mais valioso é
a amizade.” [7]
Em seguida, porque o conceito de não ter
apetites e evitar as contrariedades, se aproxima aqui e muito da conceção
epicuriana que separa os desejos naturais e necessários de outros que não o
são, sendo os primeiros os que suprimem a dor e suprem as nossas necessidades
biológicas, mais os que permitem variar o prazer, estes não necessários mas
igualmente naturais, e, limitados na medida de cada homem, enquanto os outros desejos não sendo naturais nem
necessários se prendem com a riqueza e os atributos do poder e conduzem
diretamente ao conflito para a sua posse com os outros seres humanos.
“O direito natural
consiste no reconhecimento do que é útil para não provocar conflito de uns para
com os outros e não chegar até esse ponto.”
[8]
Aceitar o fluir da vida, sabendo que dores e
prazeres constituem o seu ciclo natural e finito, até à transformação da
natureza humana pela morte em matéria cósmica. Graças à “declinação” do átomo
que, no universo de Epicuro, faz da vida a própria fonte da transformação e
criação. Viver então e morrer, serenamente.
“O limite da
intensidade do prazer é a eliminação de toda a dor. Em todo o lado em que há
prazer, enquanto ele lá está, não há lugar para a dor, ou a tristeza, ou os
dois ao mesmo tempo.” [9]
“Assim o mais
terrível dos males, a morte, não é nada em relação a nós, porque quando nós
somos, a morte não está lá e, quando a morte está lá, nós já não somos.” [10]
É certo que a segunda parte da citação que
anteriormente enunciámos refere claramente a sua fonte de inspiração no livro
do Antigo Testamento, atribuído inicialmente a Salomão e cuja máxima
fundamental proclama “Vaidade das vaidades. Tudo é vaidade!” Mas que neste
contexto particular não pode ser entendida como uma beática renúncia à
felicidade. Recorde-se que a afirmação pertence a Ega, o alegre e mordaz
crítico dos costumes mas amante dos prazeres da vida, personagem recortado pela
narrativa queirosiana como o próprio símbolo da atitude paradoxal dos mais
lúcidos intelectuais de Lisboa: clareza e coragem de pensamento, inconsequência
na ação.
É como se Eça passasse para o outro lado do
espelho para lançar um olhar condoído mas apaziguado à sua própria geração, que
não lograra conter a “decadência” do velho Portugal nem trazer para a sua
dinâmica social a modernidade, a justiça e a regeneração moral.
Assim nos parece legítimo invocar um limiar
filosófico, acerca da natureza humana, que a ambivalência do texto literário
consente, onde se passeiam as sombras de Epicuro e Michelet, e, claro, o
espírito de Antero, e se sobrepõem sem conflito a visão reformadora cristã
tradicional e micheletiana.
A condição humana aspira a triunfar da morte. Pela criação artística, Ars Longa, Vida Brevis. (Hippocrates)
Este resistir à morte,
de ressonância epicuriana, ecoa, um século depois, noutro escritor, em Jorge de Sena a celebração do engenho
humano, numa metafísica que procura elevar a condição humana para além da
precariedade da obra e do destino individual, numa perspectiva heroica da existência da Humanidade, onde prevalece a obra/ a
arte de viver e construir os avanços sociais e científicos.
A morte de Deus sem
Apocalipse nem desespero metafísico,
tem como imperativo ético a crença
final na Vida, que transportamos na nossa humana condição, mas que não se
resume ao Homem e nos ultrapassa, por ser como uma espécie de ária de fuga,
quase impercetível, que emergiu do silêncio gelado do Universo em expansão; a
vida como capacidade de sentir, desejar, amar, há-de preencher por si só o
lugar dos Deuses e, brotando do nada universal, ocupar esse espaço e o da
Eternidade.[11]
“…desde que anfíbios
viemos a uma praia
e quadrúmanos nos
erguemos. Não.
Não foi para morrermos
que falámos,
que descobrimos a
ternura e o fogo,
e a pintura, a
escrita, a doce música.
Não foi para morrer
que nós sonhámos
ser imortais, ter
alma, reviver,
ou que sonhámos
deuses que por nós
fossem mais imortais
que sonharíamos…”
Ser
humano: Inteligência, consciência e senciência
A inteligência, que pressupõe um pensamento
elaborado, não é atributo exclusivo do ser humano, ela companha outros animais
situados no topo da pirâmide e da cadeia trófica alimentar, como são os
mamíferos superiores, e, porventura, surgiu primeiro, no processo evolutivo da
vida, em animais que não eram humanos nem originariam o ser humano.
Também a consciência, no sentido mais geral,
não é atributo único do ser humano. Os animais mais próximos na pirâmide da
vida, nossos primos ou companheiros, como a família dos Hominidae (hominídeos), ou os animais domesticados, têm consciência
da dor e do prazer, guardam essas memórias afetivas e estabelecem com o ser
humano uma relação social, de comunidade ou até de família.
Os animais possuem códigos de comunicação e
resposta afetiva que interagem com o convívio humano. E esse capital afetivo
entrelaçou-se nas memórias e atitudes da consciência coletiva das comunidades
rurais, transmitidas de geração em geração e plasmada numa ética imanente,
ética da terra e ética animal.
Mas apenas a consciência humana questiona a
sua origem e pergunta a si mesmo para onde vai após a morte. E procura “triunfar”
da morte pela criação artística.
Ars
Longa, Vita Brevis.[12] O princípio do Altruísmo
A arte é Coisa e mais Outro, alegoria e
símbolo. A interpretação das coisas pela matéria-forma vem da Idade Média
(fundada na Fé) à Idade Moderna (o transcendental Kantiano). A obra de arte às coisas dá um rosto e aos
homens a visão deles mesmos. A obra abre um mundo e mantém-no aberto. A
essência da verdade é desocultação. E, nesse momento de dupla desocultação, é
que a matéria se torna produtiva, se metamorfoseia em Arte, a cor ganha luz, o
metal resplandece, a linguagem obtém o dizer. (Heidegger) A Arte
como sublimação de todas as angústias e da sua angústia existencial: para onde
vai, a nossa consciência? (Unamuno)
A Arte abandonou a mimesis aristotélica no século XX, tal como a teologia moderna
perante o velho conceito da dualidade corpo e espírito, face e sob a influência
da sua física relativista e quântica, e da mundialização da cultura e do
consumo, que nos revela a natureza no seu estado para além do átomo, de
movimento contínuo entre o infinitamente grande e pequeno, de indeterminação e
relatividade de todos os elementos, em permanente transformação de energia e
forma, de substância e estado, ordem aparente e caos absoluto e universal,
acaso, transportando para a arte contemporânea o seu próprio caos,
plurissignificação, indeterminação e relativismo.
Einstein:
“Deus não joga dados
com o universo”.
Niels Bohr:
“Pare de dizer a Deus
o que fazer!”
[13]
Regressemos à Natureza Humana: coloquemos uma
questão ontológica. Quem somos? Criados
à imagem e semelhança do próprio Deus? Homem és pó e ao pó hás-de voltar! Somos
o resultado improvável da combinação de um número infinito de circunstâncias,
determinadas pela ciência e pelo acaso? Uma nuvem de átomos. Somos poeira das
estrelas. Somos a própria consciência da matéria primordial do universo e,
nessa dimensão, o elemento mais elaborado da sua evolução desde o Big Bang?
Essa consciência,
da morte inevitável, que se interroga até ao fim acerca do destino inexorável,
é a face terrível da nossa própria liberdade.
O destino humano,
pavor configurado no limite da existência de cada ser, mas também epopeia nesse
singular contributo para que a Vida prossiga e alcance novos Mundos.
“…Para emergir nascemos. O pavor nos traça,
esse destino claramente visto :
podem os mundos acabar, que a Vida
voando nos espaços, outros mundos
há-de encontrar em que se continue…””[14]
Pensar e sentir a própria morte, dos seres
que amámos, que nos fizeram nascer e aqueles a quem demos vida, reflexão
primordial acerca da natureza humana, do carácter peculiar da espécie humana,
gerada pela mesma matriz cósmica que fez nascer as estrelas e delas emergir a
Terra, mas a única que sonhou ultrapassar, a nível da consciência individual, a
lei de bronze da sobrevivência de todas os outras espécies: A morte como condição para a sobrevivência
dos novos indivíduos sobre a Terra, derradeiro ato de amor para com os
descendentes; os indivíduos têm de morrer para que a sua descendência
específica prossiga e evolua, princípio do Altruísmo.
2.
Teleologia
e deontologia. A razão ambiental
“Na teleologia
aristotélica, a simbiose entre os planos ontológico, antropológico e ético
resulta da própria natureza humana, que possui em si mesmo a razão virtuosa
para agir prudentemente pelo bem e atingir a felicidade (eudaimonia). A virtude suprema é a sabedoria (sóphos) que conduz à contemplação. A prudência eleva o homem à
condição de governante da cidade e confere-lhe superioridade moral, porque
reúne em si a dimensão ética e política; mas a contemplação já é da esfera do
divino. O Homem aristotélico não é apenas uma abstração filosófica, mas também
um cidadão; o seu pensamento constrói uma ponte entre estas duas dimensões, a
filosofia da existência e a filosofia política.
Quando a filosofia de
Descartes anuncia a sua visão da modernidade do pensamento Humano, o emergir de
um sujeito autónomo que pensa e age usando a razão, a cisão entre o ser humano
e a natureza não se torna inevitável, antes resulta da escolha dilemática do
(s) filósofo (s).
Se o caminho fica
aberto para estudar a natureza como objeto da ciência, para descobrir as leis
mecânicas inscritas por Deus no cosmos, o elevar do homem acima da natureza,
para que reine sobre os seres e as coisas por atribuição do Criador, é do
domínio da religião e da política mercantil, e da subordinação da filosofia aos
seus dogmas e interesses. Surge nos alvores do mercantilismo, como uma
necessidade social.
O vazio moral, que a
filosofia cartesiana não preenche, não é consequência inevitável do abandono da
conceção divina da unidade ontológica, antropológica e ética da natureza humana;
mesmo na filosofia clássica ocidental, ao lado do pensamento aristotélico,
outras conceções da moral emergiram despojadas de fundamento religioso, mas sem
nunca se tornarem dominantes. Tal foi o caso da Epicuro, de cuja obra
conhecemos apenas alguns fragmentos, que é singularmente moderna no seu apelo
ao altruísmo na relação com o outro e face à propriedade dos bens materiais, no
assumir da igualdade de género nos jardins da filosofia e do reconhecimento do
sentido da vida através da libertação da heurística do medo… da morte.”[15]
Desde a publicação das páginas da
Ética de Espinosa, que na filosofia se justapõem duas conceções do mundo: o
Universo da Imaginação, dominado pela conceção antropomórfica de Deus, na
continuidade da representação aristotélica-escolástica do mundo e o universo da
razão, que, naquele filósofo, é a manifestação de um outro conceito de Deus,
substância única ou Natureza naturante
e também a razão inteligível, da natureza
naturada.
Com Bento de Espinosa, Deus é Substância ou
Natureza não é o Ser omnisciente, omnipotente, criador e transcendente ao
mundo, todo misericordioso, Senhor dos Céus e dos Infernos e Supremo Justiceiro
do Juízo Final.
A sua conceção do mundo, não se fundamenta
nas crenças ou nos dogmas das igrejas e do seu ideário de Revelação. O sentido
da vida é imanente à própria natureza humana e o destino do homem consiste em
adequar o seu pensamento e ação à ordem universal que é imanente ao mundo. A
existência ontológica dos seres e a fenomenalidade do universo são os modos de
manifestação de um ser único ontologicamente infinito, mas com uma infinidade
de atributos, dos quais nós, seres humanos, apreendemos essencialmente dois: o
Pensamento, ou razão da inteligibilidade das coisas e a Extensão ou realidade
material, isto é, a natureza naturada. [16]
Esta ontologia e esta epistemologia, este
panteísmo de razão que não de representação da Natureza, que configuram a sua
conceção do universo, tornam-se inseparáveis da eticidade da Vida e custaram a
Espinosa a excomunhão e o epíteto
inquisitorial de “vómito do inferno”. “O inferno são os outros”,
escreveu no século XX Sartre. O “Inferno somos nós próprios”, respondeu
Lévi-Srauss”. :”…o elo entre o animal e o homem verdadeiramente humano somos
nós, ”deixou escrito Konrad Lorenz. E uma comum interrogação filosófica: Como
proceder para viver serenamente até ao fim, e, provavelmente, ser feliz?
Espinosa respondeu desde há mais de três séculos: “deve ser tido por inútil o
que não concorra para a suprema perfeição humana!”[17]
A vida de cada ser humano, única mas
indissociável do devir universal, constitui um fim em si própria, uma
alternativa entre o silêncio gelado do universo e a eternidade dos entes que
povoam o Mundo. A redenção da vida, em Bento de Espinosa, que não a salvação
pela recompensa divina ou a imortalidade, está na união perfeita da alma com
Deus, Deus Substância universal, Deus Natureza. Deste filosofema resulta a
negação do antropomorfismo e de qualquer finalismo criador como contrário à
própria essência de Deus e à explicação racional do universo.
A intuição fundamental de Espinosa, segundo a
qual Deus é Natureza desenvolvendo-se a si própria conforme leis que lhe são
intrinsecamente necessárias, corresponde às últimas grandes descobertas da
astrofísica e da sua cosmologia: o universo, que não é eterno e terá a idade de
13,5 mil milhões de anos, também não é estático e está em evolução desde o caos
primordial, informe e sem organização. A história do universo é a história do
crescimento da complexidade à escala cósmica, duma estruturação progressiva do
cosmos, com as suas forças físicas regidas por leis rigorosas e universais.
Essas leis, que organizam o universo, possuem o notável atributo de estarem
rigorosamente ajustadas à promoção da complexidade. As mais ínfimas variações
dos seus valores específicos seriam suficientes para as tornar estéreis.
Nenhuma forma de vida, nenhuma estrutura complexa, se teria constituído. Nem
uma simples molécula de açúcar ou um átomo de carbono. Essas leis já possuíam,
desde o seu início, a capacidade de fazer nascer a complexidade, a vida e a
consciência. O universo regido pela regra do acaso jamais geraria o observador,
o ser e a consciência humana. (Hubert Reeves).[18]
Este conceito de nascimento do universo
segundo a teoria do Big Bang é hoje consensual entre os astrofísicos Mas este
tempo zero e convencional do nascimento do universo, onde hipoteticamente a
densidade e a temperatura eram incomensuráveis, que a radiação fóssil
fotografada pelo satélite Cobe registou nos confins do universo, já nos
“primeiros segundos” do seu arrefecimento e expansão, tem que ser relativizado
na sua temporalidade de treze mil e quinhentos milhões de anos. Porque de
acordo com a física quântica para além de um certo valor os conceitos de
temperatura e densidade da matéria perdem o seu sentido convencional. Pelo que,
regressamos à “terra incógnita” e à relatividade do conhecimento, que não
necessariamente a uma explicação teológica sobre a origem do universo e da
vida.
Sobre o nascimento da vida, temos maiores
certezas científicas, que ela surgiu na terra há três mil e quinhentos milhões
de anos. E se o objeto da ciência é de explicar como funciona o mundo, e neste
sentido as leis científicas são amorais, já a resposta ao imperativo categórico
de “como viver no mundo”, pertence ao domínio da filosofia e da ética e é neste
sentido que a ética ambiental interroga o valor da ciência e do desenvolvimento
social da humanidade, não apenas na dimensão antropocêntrica, mas para além
dela e de acordo com a ciência moderna, a Vida antes do Homem e a Terra antes
da Vida.
Por isso, ao contrário da história anterior
da filosofia, cuja problemática tem por centro o homem, a filosofia ambiental
dirige o pensamento para a razão de ser do mundo e da sua fenomenologia, para a
descoberta da unicidade da Substância em todas as suas manifestações ou
“modos”, no vocabulário de Espinosa, sem que se transforme numa filosofia
anti-humanista, pois a Natureza do homem, como de todos os entes e seres do
universo, é a mesma “poeira das estrelas”.
O “não evidente”. E o
“tudo”.
“Primeiro, nada
provém do não ser, de fato, tudo emerge a partir do tudo, sem necessidade de
uma semente. E se aquilo que desaparece fosse destruído e se tornasse no não
ser, todas as coisas haveriam de perecer, pois aquilo em que se iriam dissolver
não existiria.”[19]
A identidade e unidade do ser e do tudo,
corpos que são e se movem no vazio, corpos
compostos e átomos em perpétuo movimento na sua génese de unidade com o vazio, no
pensamento de Epicuro e, no devir cosmológico, seres humanos feitos da mesma
matéria estelar, nuvem de átomos, criadora da complexidade.
Mas como compreender sem a perceção da
distância do botânico à flor, do físico ao microscópio, quando somos parte viva
desse Universo em expansão? Como entender o Universo sem o método da comparação,
num universo que era único e agora admitimos duplo (ou múltiplo) na sua
coexistência com a antimatéria?[20]
O “tudo” e o “mundo”
“Mas também, os
mundos são em número ilimitado, tanto os que são semelhantes a este, como
outros diferentes. Com efeito, como os átomos são ilimitados…os átomos que
podem criar um mundo…não se esgotam num só mundo ou num número limitado de
mundos…”[21]
Libertos (ou dominados?) do medo da morte
ficámos nas mãos de Deus, na sua mão direita, um Deus criado por nós e não
criador, que emergiu da Humanidade como um recém-nascido. Nós somos, assim, a
infância de Deus, Deus Substância, Deus Natureza e Cosmos e dele nos afastámos
com a invenção da Modernidade. A Idade do Homem no Universo foi a primeira
Idade de Deus, moribundo em Hiroxima e Nagasáqui e renascido na Filosofia
Ambiental. Nós somos a última esperança de Deus, da sua grandeza cosmológica,
gerador e criador da complexidade.
Nós somos também o anticristo, ao pormos em
causa a Vida, toda a vida humana e não humana, nascida antes do homem e ao
colocarmos o homem antes de todas as magníficas criaturas. Vida, berço de
moléculas da vida, das pequenas criaturas que melhor que o homem se adaptaram à
vida extreme, penumbra da nossa Humana morte, miríade de insetos, entes
decompositores e cianobactérias alimentando-se de cianeto e mercúrio…
Mas onde está o sentido da vida? Nesse devir
da matéria para a consciência de si e do outro, criadora da nossa alteralidade
na relação com todos os seres e entes. Porque nasceu então a angústia da morte?
Como a sentiriam os primeiros seres humanos? Porque emergiu na nossa
consciência o desejo de imortalidade, de viver para sempre? E não nasceria logo
ali a mesma angústia da eternidade? Talvez comece aqui o sentimento do sem
sentido da vida. E a sua superação.
A vida, vivida em plenitude, dos caçadores
felizes com a abundância da fauna primitiva, dos recolectores, saciados com
bagas e frutos, a vida com sexo, ser amado. (Quando começámos a amar? E a
sonhar?) A vida humana primitiva, difícil e heroica, dolorosa e curta, poderá
ter feito nascer nos seres humanos o mesmo apelo oposto, à continuidade da vida
e ao alívio da morte sem o sono povoado pelo pesadelo da dor.
A vida vivida, entre a angústia da
imortalidade e da eternidade. Angústia resolvida na morte (?). Na morte física,
que não é a morte das nossas moléculas e átomos.
“Por outro lado, não
podemos admitir que nos corpos finitos se encontrem um número ilimitado de
corpúsculos de qualquer tamanho. Por conseguinte, não só devemos excluir a
divisão até ao infinito em partes cada vez mais ínfimas, para não exaurir todas
as coisas e, quando tratamos dos corpos densos, vermo-nos constrangidos a
comprimir os seres até os consumir no não-ser, mas também, não se pode crer que
o percurso, nos corpos finitos, nos conduza ao infinito, nem para o
infinitamente pequeno.”[22]
De acordo com o pensamento premonitório de
Epicuro e com a abertura à ciência experimental do mundo dos quanta,
descobriríamos a composição do átomo em eletrões e núcleo atómico, e este em
protões em neutrões, compostos por partículas ainda mais finas e diversas, os
quarks, unificando o simples e o complexo, interagindo com outras partículas
elementares da matéria, primeiro o bosão W e o bosão Z, e, já em pleno século
XXI, o “bosão de Higgs”, a denominada
“partícula de Deus”.
A
origem da vida: darwinistas e
geneticistas
Segundo Antero e ao contrário da opinião
generalizada, a teoria geral da evolução não surge como uma descoberta das
ciências naturais do seu século, mas, pelo contrário como resultado da
especulação filosófica:
"Esta ideia não
saiu das ciências naturais, mas penetrou nelas pela influência (obscura, é
certo, e indireta, mas muito real) das noções de metafísica lentamente
elaboradas, a partir da Renascença, dentro da ideia fundamental de natureza. A maneira dinâmica,
autonómica, realista, de conceber a natureza é o que mais radicalmente
distingue o pensamento moderno do antigo…”[23]
Perante a crescente angústia ética e os
conflitos morais desencadeados por este “Admirável Mundo Novo,“ cientistas
eminentes, da escola anglo-saxónica, como Carl Sagan e James Lovelock,
preocupados com os direitos da Gaia, traçam-nos um quadro problemático, mas de
fundo otimista, acerca da evolução da vida. Partindo do imaginário Darwinista,
do pequeno mar tépido que teria servido de caldo de cultura para as primeiras
moléculas orgânicas, especulam sobre a
existência no universo de vida e sobre a possibilidade de a recriar graças ao
progresso científico-tecnológico, em novos planetas, destino provável da
nossa espécie depois de esgotada a Terra-Mater. Enquanto, em paralelo,
professam uma fé absoluta no renascimento da vida, para além do holocausto da nossa própria espécie.
Em crítica a esta perspetiva de nascimento da
vida, os geneticistas da escola francesa, invocando Pasteur, afirmam que o
caldo pré-biótico sonhado por Darwin seria indefinidamente estéril e orientam o nascimento da vida para a
superfície das rochas, numa química das superfícies favorável à seleção de um
pequeno número de espécies moleculares, à sua interconversão (metabolismo) e à
sua reprodução, donde se terão gerado os quatro processos fundamentais à
vida: metabolismo e compartimentação, nas pequenas moléculas, a memória.
Os defensores da Teoria Sintética da
Evolução, partidários de um gradualismo filético que entende a evolução das
espécies como resultado da convergência de mutações biológicas e mudanças
ambientais, também chamados de neodarwinistas. Ou os seus contraditores, mais
inclinados para as doutrinas do Equilíbrio intermitente, que enfatizam o facto
de a paleontologia, em regra, não evidenciar modificações graduais e para os
quais as espécies podem surgir num estado avançado, permanecer longamente com existência
estável e depois perecer para dar origem a outras, contribuíram igualmente para
compreendermos hoje a complexidade dos problemas da evolução e da extinção das
espécies. Propostas por N. Elredge e S. Gould. [24]
A razão
ambiental
A “razão ambiental” moderna formula um novo
imperativo categórico para a ação do homem, mais além da máxima kantiana de
conformação dos atos individuais com o princípio de uma lei universal, um novo
quadro ético, o qual resulta da necessidade de configurar a conduta humana nos
limites que salvaguardem a continuidade da vida e a sua diversidade (Hans
Jonas).
A razão ambiental constrói a sua própria
ética, como ética de princípios e ética aplicada, com base na crítica ao
antropocentrismo e ao etnocentrismo.
Com base nestes dois axiomas ela incorpora
novos conceitos morais, da Ética da Terra e da Ética Animal, que alargam o
conceito de comunidade a todos os entes da natureza e ampliam o conceito de
pessoa, ao menos aos animais que possuem capacidade de sentir e sofrer, em
particular dos que nos estão mais próximos na cadeia evolutiva.
A razão ambiental incorpora também uma
Bioética Global, que reposiciona o Homem dentro da Natureza, mas sem estatuto
de privilégio e atribui à sua espécie um estatuto superior de valia moral, pela
sua paradoxal capacidade de criar e destruir a biodiversidade, mas também um
estatuto de igualdade moral entre os seus múltiplos indivíduos, filhos
primogénitos da mesma mãe mitocondrial e do mesmo pai cromossomático. E coloca
o homem antes da Vida e a Vida antes da Terra, sem sombra de anti-humanismo.
A razão ambiental integra ainda uma nova
Ética Política, e uma nova visão crítica da alienação dos cidadãos, que aqui
não discutiremos, por razões metodológicas, uma nova Ética Política que
elaborou o princípio da Casa Comum, o homem tem duas casas, a sua e o planeta, base
dos princípios da sustentabilidade, da solidariedade e da equidade e se
enriquece com dois novos imperativos categóricos, o imperativo da dignidade e o
imperativo da paz perpétua, que vai muito para além da consigna kantiana.
Desenvolvamos então o conceito de razão
ambiental.
Do
paradigma conservacionista da natureza à Ética da Terra e Ética Animal
A obra de referência da Ética da Terra
pertence a Aldo Leopold (depois de Walth Whitman, e do transcendentalismo de
David Thoreau e Waldo Emerson, a John Muir e G. Pinchot, pioneiros da gestão
racional da floresta e do ambiente ou George Perkins Marsh, ), que a retira dos
estudos de Darwin e dos avanços científicos da Ecologia:
”The land ethic simply enlarges the boundaries of co the community to include soils, water, plants, and animals, or, collectively: the land .”[25]
O sentimento da necessidade de ajuda e defesa
comum, desenvolvido ao longo do processo de selecção natural,
gerou o conceito de comunidade,
fundamento da ética.
Mas é uma nova conceção da natureza que emerge, agora entendida
como uma sociedade de plantas, animais, minerais, fluidos e gases,
estreitamente ligados e interdependentes.
Todas as éticas assentam sobre uma premissa:
que o indivíduo é membro de uma comunidade interdependente… O biocentrismo (d’Earth first !, Greenpeace, Wilderness Society (...)
atribui um valor intrínseco a toda a entidade viva e o ecocentrismo (Aldo Leopoll) focaliza-se nos deveres que temos face
à comunidade biótica de que fazemos parte. Não se trata, em qualquer dos casos,
de aplicar a novos objectos, como a natureza, as teorias
morais pré-existentes. A natureza passa a estar incluída no nosso campo de
reflexão moral, os nossos deveres,
antes limitados aos seres humanos, passam a ser extensivos aos outros entes naturais.
E citemos diretamente Aldo Leopold:
Mas o reconhecimento do valor económico do
uso da biodiversidade pode
ser ainda uma forma de recusar os valores autónomos da Ética da Terra.
“…no ethical obligation toward land. “[27]
Conduz geralmente a confinar a conservação da
natureza aos parques e reservas, às espécies potencialmente úteis ao ser humano
e à acção
do estado, deixando inteira liberdade à iniciativa privada.
Parte da premissa, cientificamente falsa, de
que os elementos com valor económico do biótopo podem existir na natureza sem a presença de outros elementos.
Caberia ao australiano Peter Singer e ao
americano T. Regan enfatizar os sentimentos e os direitos dos animais face à
brutalidade dos processos produtivos modernos: clonagem genética, jaulas
prisão, rações baseadas na carne triturada de animais mortos e saturadas de
hormonas, violação sistemática dos ritmos naturais e das necessidades da vida
animal, tudo
isto em função do lucro máximo.
Em nome do princípio da igualdade, os dois
autores referidos recusam o conceito da superioridade da espécie humana, que
comparam ao racismo, por violar aquele princípio, censurando à maioria dos
humanos o não reconhecimento da capacidade de sentir e sofrer dos animais. Nas
suas obras afirmam que os animais são sujeitos de interesse em não sofrer e
também, acrescenta Regan, são sujeitos de direito, por que são sujeitos de uma
experiência de vida que possui valor intrínseco
Partindo da tese de que “…alguns animais não
humanos parecem ser racionais e conscientes de si, concebendo-se como seres
distintos que possuem um passado e um futuro…”, propõe-nos uma ética
gradualista contra o assassinato de animais, que no seu patamar superior
estende aos chimpanzés, gorilas e orangotangos a mesma proteção devida aos
seres humanos. Propõe-se alargar o conceito o uso de “pessoa”, no sentido de um
ser racional e auto consciente, para incorporar os elementos do sentido popular
de “ser humano” que não são abrangidos por “membro da espécie Homo Sapiens”.[28]
A diversidade da Vida, como
valor ético superior e um novo lugar do humanismo na ética ambiental
A defesa da Vida: princípio filosófico de
valor, superior ao da comunidade humana, elo singular da Cadeia da Vida. As descobertas
científicas permitem-nos ter a certeza apenas de que o equilíbrio dos
ecossistemas favoráveis à vida depende de uma infinidade de relações
geológicas, biológicas e físicas e reconhecem que quanto mais alta é a posição
ocupada pelos organismos na cadeia alimentar, maior é a sua vulnerabilidade,
podendo a destruição de algumas espécies afetar drasticamente todo o sistema.
Houve sempre
extinções ao longo das várias épocas da história da vida e o património
biogenético recuperou a sua riqueza e diversidade_ foi assim nos finais do
Pérmico (com o desaparecimento das Trilobites), do Cretácico Terminal (o fim
dos dinossáurios não-avianos), do Plistocénico superior (quando sucumbem os
mamíferos oriundos da América do Sul) e do Quaternário (extermínio e morte de
espécies contemporâneas do homem, como o tigre
dente-de-sabre e o mamute). O que hoje é dramático, conhecida a lei de
bronze da Paleontologia, que postula a Irreversibilidade da Evolução, é o ritmo
a que se processa a perda da biodiversidade, a destruição dos recursos naturais
energéticos e a multiplicação dos efeitos poluidores que atingem não só o
conjunto do planeta _a litosfera, a hidrosfera, a criosfera, a atmosfera e a
biosfera, mas também e, com consequências imprevisíveis, o material genético
fundamental, o ADN que conserva e reproduz os códigos da vida. E, assim, como não podemos afirmar que o seu humano é o
zénite final de evolução da vida, ninguém pode imaginar hoje qual é o elo da
cadeia onde o salto evolutivo se poderá produzir de novo, como ninguém sonhou
antes que o tetravô da nossa condição de quadrúmanos fosse um insignificante
roedor, que sobreviveu à extinção generalizada das espécies dominantes no final
da Era Mesozóica. 251 milhões e 65 milhões e 500 mil. Neste axioma científico se
fundamenta o imperativo ético da
preservação da Vida, antes do Homem e da Terra antes da Vida.
Conhecida a lei de bronze da Paleontologia, que postula a
“irreversibilidade da evolução”, a extinção do homo sapiens sapiens e das espécies associadas à nossa evolução, um
mundo imaginário de vegetais, micróbios e insetos, improvavelmente daria de
novo origem à espécie humana ou mesmo aos mamíferos. Assim, o humanismo
regressa ao centro das preocupações da ética ambiental, mas com a espécie
humana sem nenhum estatuto, natural ou divino,
de domínio ou privilégio sobre a restante natureza e os seus entes.
O imperativo ético da dignidade e da paz, de Jorge de Sena
O imperativo ético da dignidade e da paz, de Jorge de Sena
Antero de Quental anunciava o advento de uma
nova arte, mais universal, tendo a musica como paradigma; natural é pois que a
poética literária alimentasse também a nova Filosofia.
“Acreditai que nenhum mundo, que nada nem
ninguém
vale mais que uma vida ou a alegria de tê-la.
É isto o que mais importa - essa alegria.
Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto
não é senão essa alegria que vem
de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez alguém
está menos vivo ou sofre ou morre
para que um só de vós resista um pouco mais
à morte que é de todos e virá. “[29]
vale mais que uma vida ou a alegria de tê-la.
É isto o que mais importa - essa alegria.
Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto
não é senão essa alegria que vem
de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez alguém
está menos vivo ou sofre ou morre
para que um só de vós resista um pouco mais
à morte que é de todos e virá. “[29]
E ao “imperativo ético da dignidade”, que
questiona a exploração do homem pelo homem,
Jorge de Sena, poeta e filósofo, junta um novo imperativo categórico da
“paz perpétua”:
“Na insólita fortuna
da desgraça,
[...]
nesta insólita fortuna, à luz que vem
oh só em poeiras
inofensivas, rezo
a mim mesmo para não
perder a memória,
por vós, para que
saibais sempre lembrar-vos
de que tudo se perde
onde se perde a paz,
e primeiro que tudo
se perde a liberdade.” [30]
Depois de escritos estes pensamentos, que
questionam a legitimidade moral da exploração do homem pelo homem e da guerra,
cem obras de filosofia política, tornaram-se como que desnecessárias e
prolixas.
O estado de guerra, que nas suas causas tem
sempre a apropriação da riqueza dos povos e das nações, fruto do trabalho
social, à luz dos ensinamentos da história das democracias liberais e das
democracias socialistas, é incompatível com a conservação e aprofundamento da
democracia e contribui para criar as condições para a sua limitação e
degeneração. Se recusarmos o imperativo ético da destruição de todo o arsenal
atómico, de guerra química e biológica e de construção da sustentabilidade do
nosso modo de produção económica e financeira, então, acharemos a paz maldita e
eterna no holocausto dos filhos dos nossos filhos. O respeito pela dignidade do
homem cidadão e pela paz perpétua, assim reunidos pelo mesmo juízo moral,
constituem um primordial e unificado corolário político das Éticas Ambientais.
Paradoxo e superação
ética do conceito de família, cultura e
nação
A “Eva mitocondrial”
terá surgido na África Oriental há 200.000 anos e o “Adão cromossómico” na
África subsariana há 140.000 anos. Tal significa que todos os seres humanos são
descendentes, pela via mitocondrial, da mesma mãe ancestral, sendo que das
outras mulheres desse tempo remoto, em algum lugar da genealogia se interrompeu
a descendência feminina, substituída por uma nova geração masculina: neste
caso, se não se manteve o ADN mitocondrial, conservou-se o ADN cromossomático. A mensagem moral, comum a muitas religiões e
filosofias, que todos os seres humanos são irmãos na mesma família humana, fica
fundamentada na ciência moderna.
Assim como as
mitocôndrias são herdadas pela via maternal, os cromossomos são herdadas por
meio do pai. Portanto, é válido para aplicar os mesmos princípios com estes. O
ancestral comum mais próximo, apelidado de Adam cromossômico, viveu num período
estimado entre 60.000 e 142.000 anos. Então, todos os seres humanos
contemporâneos, tiveram a sua origem em África, num período entre 100.000 e 200.000
anos atrás. Durante a última glaciação, os descendentes dos primitivos Homo
Sapiens terão atravessado o estreito de Bering, penetrando na Europa e na Ásia
e, seguindo caminho, por vales, rios e oceanos, atingiram todos os continentes.
Enfim, em sentido ético, as fronteiras que
configuraram as nações primitivas e modernas, e permitiram lançar novos ramos
da cultura humana, organizar o progresso económico e os exércitos nacionais,
devem ser progressivamente abatidas por um imperativo moral, pois, tal como o
racismo não tem fundamento científico e a cor da pele resulta da adaptação do
ser humano aos diferentes ambientes da Terra, sabemos hoje que qualquer guerra,
por mais legítima ou defensiva, será sempre travada entre membros da mesma
família, descendentes de antiquíssimos progenitores. E com a queda daquelas
fronteiras inhumanas, deverá progressivamente ser superado o estatuto de poder
e exploração do homem pelo homem, do homem sobre a mulher, da nova sobre a
geração envelhecida, que o estado e os seus corpos repressivos, leis e
costumes, historicamente garantiram, porque no plano moral será o mesmo que
subjugar pelo capital ou por outro poder
os mais fracos do nosso círculo familiar planetário.
Se, como Antero, considerarmos que “A ideia
da Morte é a base da vida moral”, a consciência da finitude do eu pessoal faz
nascer o imperativo metafísico de viver “para algo eterno”[31];
então, um novo destino se coloca à Humanidade, por imperativo da ética e da
ciência, perpetuar a Vida no espaço sideral, pois a vida complexa na Terra está
condenada a perecer com a morte do nosso sol, destino traçado pela ciência para
uma existência estelar de 10.000 milhões de anos, que já consumiu em hidrogénio
metade da sua vida.
Não somos pois uma aberração da natureza ou
condenados a uma existência sem sentido, como pensaram os filósofos
existencialistas, somos antes o despertar da consciência do Universo e nessa
medida, entranhados no Universo, dele somos um dos seus entes mais complexos,
da sua física relativista e quântica, que se interroga: “para onde vai a nossa consciência” (Unamuno)? E deixa nos versos, o
derradeiro apelo:
“…deve haver um caminho
para regressar da morte.”[32]
para regressar da morte.”[32]
- Referências
Épicure (1994). Sentences Vaticanes, In
Lettres et Maximes, Tradução,
Introdução e Notas de Jean-François Balaudé. Paris. Librairie Générale
Française.
Espinosa, B. (1960).
Ética (Ethica Ordine Geometrico Demonstrata I. DE DEO. Part I. Acerca de
Deus. Trad. Introd.
e Notas de Joaquim Carvalho. Coimbra. Atlântida Editora.
Isaacson, Walter (2008). Einstein, a sua vida e universo. Portugal, Alfragide: Casa das
Letras.
Leopold, A. (1947). A Sand County Almanac. New York. Oxford University Press.
Queirós, A. (2014). «A Ética
Ambiental e a Moral no século XXI», in
A. Barbosa e J.M. Silva (ed.), Confluências Bioéticas. Lisboa. edição
conjunta de CFCUL_Centro de Filosofia das Ciências da Universidade de Lisboa,
Centro de Bioética da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa e
BioFIG_ Centro de Biodiversidade,
Genómica Integrativa e Funcional da Faculdade de Ciências da Universidade de
Lisboa.
Queirós, E.(1988) Prosas Bárbaras, Os
Mortos, Obras completas de Eça de Queiroz, vol. X. Mem Martins Resomnia
Editores.
Queirós, E. (1999), Os Maias: episódios da vida romântica, anot. de Helena Cidade
Moura. Lisboa. Ed. Livros do Brasil.
Quental, A. (1991). A Filosofia da Natureza dos Naturalistas. In Obras Completas de Antero de Quental, Filosofia,
organização, introdução e notas de Joel Serrão. Universidade dos Açores.
Lisboa. Edit. Comunicação.
Sena, J. (1988). A Morte, o Espaço e a Eternidade. In Metamorfoses. Lisboa. Poesia II. Edições 70.
Sena, J. (1988). Carta a meus filhos, sobre os fuzilamentos de Goya. Lisboa. Poesia II. Edições 70.
Sena, J. (1988). A Paz. Lisboa. Poesia II. Edições 70.
Singer, P. (1999). Ética Prática, do capítulo Tirar a Vida de Animais.
São Paulo. Editora Martins Fontes.
Reeves, H. (2002).
Dernières nouvelles du cosmos. Paris.
Éditions du Seuil.
[2] Queirós, E. 1988. 68. Ob. Cit.
[12]
Hippocrates
[13] Isaacson, 2008:27
[14] Sena 1988:175. Ob.
Cit..
[18] Ver, sobre o tema da
Cosmologia Científica, de Reeves, H. 2002: Dernières
nouvelles du cosmos, p.27.
[20] A cada tipo de partícula
que constitui a matéria de que somos feitos e que predomina no Universo,
corresponde uma partícula de antimatéria, ao eletrão o positrão, nascendo juntos
e aniquilando-se no caos primordial; porém, com exceção dos aceleradores de
partículas e dos feixes de raios cósmicos provenientes da nossa galáxia, as
partículas de antimatéria não existem na Terra, e estão presentes no nosso
Universo como relíquias fósseis do Big Bang e posterior arrefecimento do
Cosmos; mas para além do horizonte cosmológico conhecido nenhuma lei científica
nos impede de admitir a existência de um Universo de antimatéria.
[22] Épicure 1994: 156. Lettre à
Hérodote, cf. 56.
[24]
Consultar, Eldredge, N. y Gould,
S,J. 1972: Punctuated equilibria: an alternative to phyletic gradualism. En:
Schopf, Th.J.M. (Ed.) Models in paleobiology. Freeman Cooper and Co.:
82-115
[31] Quental 1991: 79.
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