LITERATURA E AMBIENTE III Parte – A crise ambiental na Literatura



2001/2017
Autor
© António dos Santos Queirós
ISBN 978-972-8659-41-7
Conteúdo

©ANTÓNIO DOS SANTOS QUEIRÓS
Centro de Filosofia. Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
Alameda da Universidade 1600-214, Lisboa  Portugal
adsqueiros@gmail.com

T. 910506370

A emergência da questão ambiental no mundo contemporâneo é indissociável do nascimento da sociedade de consumo e da poluição generalizada, que corresponde à expansão económica do pós-guerra no mundo ocidental e nas metrópoles da Ásia, Pacífico e da América Latina, mas também nos países socialistas de Leste.
O volume de produção das mercadorias atinge uma dimensão paroxística. Todas as lógicas tradicionais da vida social e da identidade nacional são subvertidas pelo determinismo da produção mercantil estandardizada que exige produzir cada vez mais e mais barato o mesmo tipo de voláteis mercadorias em qualquer parte do globo, representando valores de gastos energéticos e de recursos naturais que ameaçam exaurir o planeta, suportados por níveis de consumo brutalmente desiguais no interior de cada nação e entre os países ricos do Norte e os países dependentes do Sul.
A cultura desta civilização insustentável é de matriz urbana, mas agora ao nível das megacidades, isto é, são os valores e produtos gerados na grande metrópole que prevalecem, sendo a cultura cosmopolita e, neste sentido, tendencialmente hegemonizadora e unificadora da conduta e do pensamento. A cidade é uma mancha urbana cujo perímetro de influência chega à base das montanhas e ao limiar das charnecas, ali encontra os velhos que resistem ou o deserto humano. A “massa crítica” das sociedades contemporâneas concentra-se na urbe e o retorno ao campo não é acompanhado por um processo global de desconcentração económica ou administrativa, antes resulta de atos singulares, significativos do mal estar do cidadão e do seu desejo de sacudir o ambiente sufocante das grandes urbes. Surgem cidades de dimensão média, capitais regionais que se expandem aos concelhos vizinhos, mas a aldeia, com a sua base agrícola autónoma e a sua identidade cultural, falece lentamente e, com esta perda, o “bicho-homem” perde o seu território e a sua diversidade, fontes primordiais da natureza humana, que lhe permitiu triunfar da extinção e perpetuar a sua espécie e as suas culturas.
A generalização de centros urbanos macrocéfalos, a desumanização da paisagem rural, a metamorfose das cidades em labirínticas metrópoles, o consumo alucinante, produziram os seus reflexos não apenas na biosfera mas também na esfera cultural e no domínio literário, contribuindo para a crítica do Modernismo e o nascimento do Pós-Modernismo, em paralelo com a continuidade de outros códigos literários mais antigos, que se transmudaram nas neo propostas realistas, expressionistas, barrocas, etc., acompanhados pela multiplicação de inovações artísticas mais restritas e de incontáveis idioletos.
Neste contexto evolutivo, ocorre o salto no pensamento ambientalista, de forma clara e universal a partir da década de sessenta, quando diversas obras e autores se tornam referência internacional, como veremos mais adiante e são revalorizados os textos premonitórios de outros, bem anteriores.
Os anos oitenta conhecerão uma outra etapa no desenvolvimento de reflexão ambientalista, que se caracteriza pela coexistência de um arco-íris de conceções que emergem nas expressões culturais das elites mas também das camadas sociais ditas “de massas”, com particular acento na juventude. Como as nossas “lameiras” ou “prados de lima” é um rio que brota, não se sabe bem de onde, e cria um leito de bacia para onde convergem diversas nascentes, reparte-se finamente para se cruzar de novo em múltiplos sentidos, tomando sempre novas qualidades e regressando a um outro leito comum que continua a correr e a procurar a foz de outras correntes e o grande mar onde se mistura hoje a informação, a ciência, a propaganda e a publicidade, o apelo dos indivíduos, o pensamento cosmopolita e a multiculturalidade.
 Admiráveis anacronismos, escrita de filósofos mas também de cidadãos comuns, que parece desagregar-se nas suas múltiplas cambiantes apocalípticas ou redentoras, vivificadoras de velhas e novas utopias, do pequeno como ideal do equilíbrio ambiental, do equilíbrio como símbolo do belo, isto é, da pureza moral, dos mitos regeneradores da tecnociência ou do regresso à natureza e ao primitivo, por vezes radical e anti-humanista, paradoxalmente próxima da profecia e do limiar de um novo paradigma científico, que já não funda o progresso técnico e científico na base das disciplinas tradicionais mas no emergir do conhecimentos científico integrador, mas capaz de empolgar renovadamente massas humanas de milhões, a generosidade proverbial da juventude, a sensibilidade das mulheres, depositárias de todos os mitos órficos.
Admiráveis anacronismos, formas de luta que pareciam ultrapassadas regressando às praças, terríveis visões e moderníssimos recursos tecnológicos, antiquíssimas procissões e  rituais, tudo posto ao serviço da nova causa, enquanto, no terreno da epistemologia, a relatividade das leis científicas é sedimentada  em torno de um eixo aberto de conhecimentos interdisciplinares que, mutuamente, se suportam, justificam, ampliam e aprofundam, a física dos seres e das coisas ligados pela relatividade geral e a visão quântica. Admiráveis anacronismos, como se a espuma dos dias cristalizasse repentinamente, na peneira empunhada por mil mãos, hábeis, frágeis, maduras e rudes e ali depositasse o que, afinal, permanece de valioso nas nossas culturas comuns, depois de longos anos de milenário afastamento.
O paradigma da especialização científica e tecnológica, que fundamentava o mito do crescimento irrestrito, sofreu sucessivos abalos e abriu brechas, por onde irrompem novas abordagens das relações entre o ambiente e o progresso, de onde emergiu o conceito da sustentabilidade, com um valor científico interdisciplinar mas também uma dimensão de ética social.
 Mas ao dizê-lo, não afirmamos que a razão ambientalista moderna representa o triunfo da consciência comunitária e da ética da vida sobre o indiferentismo e a barbárie dos tempos, dizemos apenas que é contra o vazio ético, a selvajaria e a indolência sociais que ela se manifesta, recusa a morte, o sem sentido e a noite da nossa civilização, e, ao fazê-lo, penetra todas as esferas do pensamento humano e da(s) cultura(s), obriga mesmo à reinterpretação dos textos mais conservadores, os livros sagrados de todas as religiões e o modo de entender as suas doutrinas, enfim, questiona os principais paradigmas político-ideológicos novecentistas que o marxismo e o pensamento  demoliberal ofereceram ao nosso século.
A literatura foi instrumento e objeto desta formidável mudança, ainda em pleno curso.

1.2 Panorâmica

Indizível e invisível foi a crise ambiental, encarada globalmente, durante quase todo o período contemporâneo que temos vindo a analisar, não merecendo então, dos sistemas científico e educativo e dos principais órgãos de comunicação social, o relevo que hoje tem.
O pensamento etnocêntrico, que predomina na filosofia política, consegui mesmo justificar moralmente as guerras de agressão e conquista, em nome da prática de uma ética  individualizada e utilitarista.
A visão trágica e intemporal do Menino de Sua Mãe, de Fernando Pessoa, surge no nosso panorama literário como um lamento singular contra as desgraças da guerra.
          “... No plaino abandonado
          Que a morna brisa aquece,
          De balas trespassado,
          _Duas, de lado a lado_,
          Jaz morto e arrefece...
          O menino de sua mãe.”[1]
A 1ª guerra mundial, apesar da sua trágica mortandade, que sangrou até à inacção os Corpos Expedicionários Portugueses na Flandres e em África, não gerou, na época, nenhuma expressão significativa de protesto por parte dos artistas  e escritores portugueses, senão no manifesto pessoano contra os senhores da Europa, que lhe é posterior. Ao contrário e comungando do momento de emoção nacionalista, o próprio Jaime Cortesão, que participou como militar no conflito, escreveu  exaltados  versos ao soldado desconhecido!
Mais tarde, a consciência da tragédia ecológica da guerra surge nos nossos escritores não apenas entendida no massacre da vida humana, mas premonitoriamente associada à perceção da gravidade dos problemas da poluição que a conflagração engendra. José Gomes Ferreira é autor de um notável conjunto de poemas, contemporâneos da guerra civil espanhola e que, como ela, visionaram o holocausto do conflito moderno, retrato metamorfizado de um mundo onde campeiam os fantasmas das suas vítimas e as violências da opressão social.
          “ Terra seca
em que só o drama dos homens
povoa as árvores e as pedras
de imaginação de cinzas,
e transforma o mundo num planeta podre
da carne de todos os mortos...”[2]
          A poesia de Carlos de Oliveira transporta-nos para um cenário onde jazem montanhas de cadáveres deixados pela confrontação, pressentidos no sinistro trabalho dos vermes que os consomem. E poluições invisíveis, como “o caruncho“, sinais de um mundo alucinado pelas indústrias da guerra (“Vulcanos temíveis”) e pelos financeiros de…“Wall Street”.[3] Uma realidade oculta que lança para o futuro sementes corrompidas, que não permitirão que a vida se renove, semeando o desespero, a loucura e a esterilidade…No Pesadelo visionado de uma terra nua e morta pela poluição e a guerra total:“…Terra, vista dos astros, morta e nua:/Na luz de azebre flutua…”Imagens sinestésicas e tragicamente premonitórias, que um satélite atual registaria, das manchas de poluição atmosférica e da devastação das florestas…
“ … E a nuvem cor de verdura apodrecida,
forma de névoa sufocante,
vai, gradual, tornando dúbia e hesitante
a hipótese da vida”. [4]
A consciência clara de que a crise ambiental atravessa todas as fronteiras e é universal, ameaçando “sujar“ todo o planeta e condenar todas as comunidades humanas à impotência face ao holocausto da guerra e da poluição.
“ Lá onde é possível, mais
que em qualquer outro chão do espaço sujo,
erguer sobre alicerces excecionais
a Pátria do Refúgio!”[5]
          E o esforço dos poetas para não perdermos a memória do holocausto nuclear [6]
“…Na insólita fortuna da desgraça,
à luz do cogumelo cor de fogo
que vitrifica areias do deserto
…à luz que vem
oh só em poeiras inofensivas, rezo
a mim mesmo para não perder a memória,
por vós, para que saibais sempre lembrar-vos
de que tudo se perde onde se perde a paz,
e primeiro que tudo se perde a liberdade…”[7]
          Interessa-nos sublinhar os versos finais pelo que eles contêm de lúcida compreensão da natureza extrema da guerra, já que o “estado de guerra” permite suspender as mais democráticas constituições e anular os seus direitos e liberdades fundamentais, enunciando um novo imperativo categórico mais além do significado político do imperativo kantiano da “paz perpétua”, como um dos fundamentos da nova “razão ambiental”.
          Na linha de denúncia das novas tecnologias nucleares e de condenação dos efeitos da guerra foi escrito o poema emocionado de Egito Gonçalves, a indignação contida em patéticas metáforas, perante o horror e martírio da condição humana em Hiroxima e Nagasáqui …”durante alguns segundos correu o esqueleto./Mas a rua já não estava, estava toda no ar…”[8]
          Tal como os versos de António Gedeão“...As rubras flores vermelhas não são papoilas, não./ É o sangue dos soldados que está vertido no chão…”[9] Na poesia de Casimiro de Brito encontramos o questionar do progresso científico antinatural e da sua expressão mais brutal, a guerra tecnológica: “Terra viva”, rosto constelado de frutos deformados, sacrificada ao deus ex-máquina, as máquinas perfeitas de fazer guerra; ”… lâminas de brasa viva, abrasando o rio, as casam, as searas e o rosto anónimo de Miko Taka, cidadão de Hiroxima”!...“Terra ensanguentada, devastada…”...mas não morta! [10]
Num tempo que vivia já a guerra colonial, a censura obrigava os poetas a falar como se de outras guerras se tratasse e a deitar a mão a todas as figuras de estilo, no caso, a metonímia da resistência dos homens transfigurada na resistência simbólica da terra ao impacte ambiental das mais modernas armas tecnológicas e o labor contínuo e silencioso da vida vegetal como imagem-semente da paz que germinará.
 “…As sementes no entanto prosseguem
         em seu ofício
de liberdade. Indiferentes
aos mecanismos
da usura e da guerra. Operários
         da paz
         no centro da terra.”[11]
E a condenação das guerras de conquista (onde é identificável a guerra colonial) e da ideologia belicista, corporizada no mito da  glória, do poema com o mesmo nome e simbolicamente referenciado à propaganda hitleriana. A censura e a repressão policial mostraram-se intransigentes no que respeita à guerra em África.[12] Mas não deixa de ser motivo de interrogação, mesmo depois de conquistada a paz e a liberdade política, o doloroso e lento aparecimento de obras literárias sobre esta temática, até que, no final de década de 70, a catarse se desencadeia avassaladora; factos históricos a merecerem uma reflexão mais profunda que mergulhe na “consciência nacional”, e nos seus fantasmas coloniais, que parecem atravessar, obliquamente, todo o leque ideológico da direita à esquerda. Neste contexto se destacou a trilogia de António Lobo Antunes, Memória de Elefante, (1979), Os Cus de Judas, (1979) e o Conhecimento do Inferno, (1980). E surgiria, já em 1995, o romance Nó Cego, de Carlos Vale Ferraz, pseudónimo de Carlos Matos Gomes.
Foi à margem do panteão dos escritores consagrados, mas também dos que então protagonizavam a renovação cultural das letras portuguesas, que emergiram, para o grande público, clandestinas ou não, as obras dos poetas-militantes Manuel Alegre e José Afonso.[13] Recordemos, de entre outros, os versos panfletários. “Já lá vai Pedro soldado…”[14] e “…Lá no Xepangara…”[15]
Mas os primeiros romances e novelas, críticos da guerra, foram escritos e publicados antes da revolução democrática iniciada em 25 de Abril de 1974. Álvaro Guerra escreve, sucessivamente, O Disfarce, 1969; Memória, 1971; O Capitão Nemo E Eu, 1973.  Fernando Assis Pacheco, Cuidar dos Vivos, 1963; Câu Kie : Um Resumo, 1972. Os contos de José Correia Tavares, Três Natais, datam de 1967; os de Mesquita Brehm, Despertar da Consciência, em 1962; e o poeta, morto na guerra, em 1965, José Bação Leal, autor de Poesias e Cartas, publicadas em 1971.
Do outro lado, na apologia da guerra, destacaram-se Fernanda de Castro, Homem de Mello e Couto Viana.

1.3 Uma nova condição humana. A razão ambiental

No período em análise, o formidável desenvolvimento da ciência e da técnica, sob a base da revolução tecnocientífica e o progresso da democracia política e social, criaram uma expectativa generalizada de advento de um mundo de bem-estar e paz, logo ameaçada pela guerra fria mas renovada continuadamente pelo estado de equilíbrio relativo entre as grandes potências e o desenvolvimento da atividade diplomática e das instâncias de cooperação e decisão internacionais.
Neste contexto sociopolítico emergiu, em paralelo com os biólogos, geógrafos, físicos e agrários empenhados na proteção da natureza, uma nova classe de cientistas e técnicos capazes de entender toda a complexidade e importância do mundo rural e da sua paisagem humanizada, sob a designação comum de paisagistas. Recordemos o pensamento de um dos seus mais ilustres representantes:
“É tempo de afirmar que se a cidade é indispensável à organização da sociedade e ao progresso da humanidade, se a indústria muito tem contribuído para facilitar a vida e lhe dar conforto, é da paisagem rural que depende a sobrevivência da humanidade, porque é ela com o mar, a única fonte de alimentos, a única fonte de água potável, e o último suporte de atividade biológica autónoma e equilibrada, indispensável à continuação da vida na terra. Por isso a atividade da Sociedade Rural é a única que continua a ser obrigatória, sendo todas as outras facultativas, quer a sociedade urbana-industrial se aperceba ou não desse facto.”[16]
A revalorização do mundo rural surge assim depurada de qualquer sentimento atávico e enquadrada pela preocupação de introduzir no campo, de forma harmoniosa, toda a mais-valia científica da época. Encontramos na literatura uma forma particular dessa cosmovisão, a do reencontro com a terra e o homem do campo, como em Irene Lisboa e Miguel Torga; a par da crença nas potencialidades do desenvolvimento técnico científico, entendida como capacidade de realizar os mais velhos sonhos humanos e triunfar da morte, que atravessa os versos de A. Gedeão e Jorge de Sena.

A condição humana: filhos da terra (e do mar) e da sua agricultura

Tomemos os versos de Irene Lisboa.
Quem não sai da sua casa,
Não atravessa povos, montes, vales,
Não vê as cenas bíblicas das eiras,
…Cria mil olhos para nada...” [17]
São os mil-olhos do Poeta e é nesta linha que evoluiu a ficção neorrealista, mas o seu fio condutor, a Terra e o Homem, não é exclusivo dessa corrente literária, antes constitui um dos arquétipos que percorre as obras mais representativas da nossa literatura contemporânea. Vejamos como se manifesta essa constante, através da diversidade dos autores e textos.
A propósito do Diário escrito por Torga, a professora Maria Lúcia Lepecki assinala o “…encontro eucarístico, também ele nutricial e energético…do escritor… com a Terra Mater”.[18] E enfatiza:
 “Vendo e dizendo a Terra Mater, Torga escreve a sua peculiaridade de português, continente e conteúdo da sua peculiaridade de pessoa. Faz a ponte da comunhão com o sofrimento do seu povo, com o que ele foi, é e poderá vir a ser”.
Num contexto político em que se desfazia o desacreditado sonho republicano, penetrado já pela atmosfera repressiva do salazarismo, Rodrigues Miguéis revela-nos um país…sempre inconformado com a sua estreita tira sufocante, a parvónia terna e triste, dominada por um ambiente de loucura contagiosa e de pulsão suicidária, uma das vias possíveis para escapar a esse universo concentracionário e onde o exílio e a emigração são a outra saída, na 3ª classe dos expressos e dos porões dos navios. [19]
Mas aquele estado de alma é também um reflexo do sentimento de exílio interior, da angústia filosófica do indivíduo solitariamente colocado perante o cosmos e que procura encontrar um sentido para a sua existência, Rodrigues Miguéis, antigo leitor de Schopenhaur e Espinosa, intelectual solidário com essa  raça de corações partidos pelo mundo, que nunca regressou nas caravelas dos Lusíadas e peregrinava pelos orientes na pele de Fernão Mendes Pinto.
O personagem principal das suas aventuras e desventuras, emanação autobiográfica do próprio autor exilado, é o anti-herói dostoevskiano, é o kafkiano inocente-culpado de Uma Aventura Inquietante, o estrangeiro, o métèque de quem a ordem burguesa desconfia sempre, ciosa da sua tranquila prosperidade ou o herói-absurdo, culpado-inocente que se evade pelo crime sem sentido, em Páscoa Feliz.
A experiência estética da natureza, como temos vindo a assinalar, é permanentemente vivida em duas dimensões: a ecologia da paisagem e a metafísica do ambiente. E a natureza humana numa dupla metamorfose, órfica e proteica.
Eis o homem português que se revê no percurso individual do romancista, criatura solitária no caos universal, duplo exilado que procura o seu destino metafísico nas quatro partidas do mundo e nelas sofre a outra ausência, da paisagem da sua pátria e da infância de Lisboa, a que regressam sempre, mesmo no burburinho cosmopolita de Nova Iorque, em Um homem enfrenta a morte com meia cara.
O exilado, confortado com a vida tranquila e próspera que transpira das pequenas metrópoles belgas, enriquecidas pelos negócios e pela cultura, procura sair da sua condição pela porta do amor em Léah , mas recua, no último momento, com medo de se perder quando se entregava totalmente. E é pelo sonho, que ainda em terra estranha se evade, regressa a Lisboa e à natureza, aos ares do cimo da Pena e à adolescência em Sintra. No dizer de Eduardo Lourenço, o passado sufocante, a aventura exaltada e amarga do exílio, confundem-se e anulam-se numa reconciliação suprema, através do regresso à cúpula da Pena, êxtase vivencial que é o oposto do crime e da loucura, sublimação derradeira do destino do expatriado. Rodrigues Migueis,“…morto de solidão às portas do Paraíso, que sempre buscou para fugir a ela  e se encontrar consigo.” [20]
Subamos à Penha, com Rodrigues Migueis, para exorcizar as tristezas do exílio … a ouvir suspirar esta brisa do Atlântico, cheia de longes, de Índias, de ilusões, de apelos,  quimeras, sereias e mundos.”[21]
E é o humanismo pessimista de Afonso Lopes Vieira que nas Écloga de Agora nos remete para a diáspora nacional, o Mar, por oposição à terra madrasta, caminho de exílio e de regresso das vidas frustradas dos emigrantes.[22]
“... Olha os rebanhos trágicos que emigram
para campos longínquos,
abandonado aos mares,
…até que o desamparo e a fome nova
os torne a remeter à fome antiga…”[23]
Casais Monteiro resume no seu percurso poético a passagem de uma relação solitária e nocturna com a terra, em que “…nem mesmo o apocalipse concentracionário e arrasante da guerra 39-45 conseguiu arrancar-lhe mais do que apóstrofes às vítimas...”, para a consciência da relação universal com todos os seres, elemento fundamental, no plano filosófico e ético, para o despontar de uma consciência ambientalista.[24] A conceção, expressa em Considerações Pessoais, de que a poesia é a “…transcrição em vozes da terra, imprecisas e incertas, duma sublimidade que transcende o poeta…”[25]. Arquétipo platónico matizado com uma reminiscência goethiana:”…a de que o cume da vida atinge-o aquele que percorre o desespero e lhe sobrevive.[26]E de “…saber-se que se está com toda a gente mesmo quando (e às vezes, sobretudo) se está só.”[27]
Finalmente, como testemunho e apelo, a confissão direta do próprio poeta.“… AH! Só quem veio das trevas e das noites escuras/pode amar assim o imenso mundo do sol”![28]
Essa noite que para Páscoas significava a Noite Primitiva, a Noite virgem-mãe do Criador”…Aquela Noite universal de outrora/Donde tudo descende.”[29]
Com Aquilino…
“É o mesmo povo, que vive em terras onde... nunca Cristo ali rompeu as sandálias, passou el-rei a caçar, ou os apóstolos da Igualdade em propaganda. Bárbaras e agrestes, mercê apenas do seu individualismo se têm mantido, sem perdas nem lucros, à margem da civilização…”[30] Celebradas na sua biodiversidade, são as Terras do Demo, em que...”Quando se ergue uma lancha em terra húmida de lameira, acontece fervilhar aos nossos olhos toda uma fauna prodigiosa multicor.”[31]
Personagens e ambientes que se erguem nas páginas de Ferreira de Castro como  “pão levedado” entre o contraste da paisagem e as  almas que as povoam.“... Apanhei o contraste da paisagem e procurei surpreender a atmosfera das almas...”[32]
“...O Minho do emigrante e da religião pagã...” e os cidadãos das Beiras,  forja da raça; algarvios de sangue mouro, cidadãos do Porto... na obra de Cortesão. E sempre, a relação homem-natureza.“... Trás-os-Montes e o Marão, espécie de província poética-fragosa e titânica, cujas Fisgas são «estranha panóplia de longas lanças de xisto» - têm dois génios tutelares... (...) Camilo e Teixeira de Pascoaes….”[33]
A epopeia torguiana do Homem do Douro:“... Ser nesse chão árido e hostil um novo criador de vida...”[34]Dos ceifeiros de Redol na Lezíria e no Alentejo:“...Vai para o sol-posto, mas nos seus corpos já o dia morreu...”[35] Como no Cerro Maior, de Manuel da Fonseca:
“... O manajeiro olhou o relógio…A labareda do sol derramava-se sobre as espigas amarelas e era uma brasa viva nas costas dos ceifeiros... Muito devagar, o manajeiro guardou o relógio…E, ao darem com os olhos no raso da seara, entrou-lhes pela vista aquele amarelo de lava derretida. Ficara, por momentos, cego, de cara enrugada, dentes à mostra...”[36]
Epopeia e tragédia, da nação e do homem português, na terra e no mar, com Os Pescadores de Raul Brandão:
...O arrais é encontrado ao outro dia morto no cabedelo. O mar partiu o barco pela quilha, enterrando na areia a carcaça intacta da ré, e torceu-lhe o braço como quem torce uma corda. Mas nem o mar nem a morte conseguiram arrancar-lhe o leme das mãos crispadas…”[37]
A condição humana: triunfar da morte.
Prossigamos agora para a outra dimensão do encontro com a paisagem humanizada, a celebração do engenho humano no respeito pela sua inserção harmoniosa na natureza, numa metafísica que procura elevar a condição humana para além da precariedade da obra humana e do destino individual, numa perspectiva heroica e estoica da existência, quando o poeta António Gedeão proclama, “o sonho comanda a vida  e é ..ouro, canela, marfim florete de espadachim…… cisão do átomo, radar, ultra som, televisão… desembarque em foguetão  na superfície lunar…”[38]
E Jorge de Sena, no poema  A Morte , o Espaço e a Eternidade, exorciza a morte, dizendo que “… não foi para morrer que nós nascemos…”
…desde que anfíbios viemos a uma praia
e quadrúmanos nos erguemos. Não.
Não foi para morrermos que falámos,
que descobrimos a ternura e o fogo,
e a pintura, a escrita, a doce música.
Não foi para morrer que nós sonhámos
ser imortais, ter alma, reviver,
ou que sonhámos deuses que por nós
fossem mais imortais que sonharíamos…”[39]
Justificam o remate épico de ambos os versos. “O Mundo Pula e Avança “ e “ Não há limites para a Vida”! Cada qual a seu modo, um professor de Ciências da Natureza, o outro, engenheiro-poeta, apesar do testemunho crítico sobre a época contemporânea e os seus valores, partilham da esperança que a cultura e a civilização humana, várias vezes milenárias, depois de na nossa época terem criado as condições tecnocientíficas para um mundo de progresso e abundância, possam também encontrar um projeto de sociedade e ética social que torne realidade o advento desse futuro comum, hoje tão desigual e distante.
Este princípio, de restabelecer o equilíbrio entre a condição social do homem e o seu quadro natural humanizado pelo trabalho e a atividade científica, surge noutros autores como um autêntico plano de reforma do modo de produção social, de filosofia política e da sua ética.
Obras premonitórias
Raul Brandão, no final do seu livro Os Pescadores, escreveu um detalhado programa da proteção dos recursos marinhos e de modernização e democratização do sector, que permanece atual: “Proteger eficazmente o planalto…Regulamentos severos… Proibir…a pesca…durante a desova…Vapores de arrasto poucos…Aperfeiçoamentos técnicos…”[40] E estávamos ainda em … 1923!
Ao mesmo tempo, Afonso Lopes Vieira questionava os responsáveis municipais sobre a evolução contemporânea do urbanismo, produzindo reflexões de uma prodigiosa lucidez e dramaticamente atuais.[41] Dirigindo-se aos autarcas de Coimbra, em particular, recomendava- lhes”…que tivessem cuidado em que a alma da cidade, que guarda a sua expressão no conjunto panorâmico e arqueológico, se não embaciasse pouco a pouco, até ficar muito menos expressiva…”[42] Para concluir com uma surpreendente e radical advertência. De que seria preferível que “…as indústrias de Coimbra se extinguissem, a que secassem os choupos das margens do Mondego.”[43]
Mais adiante e em defesa do modesto mas precioso Arco de Almedina, relíquia das portas medievais da muralha, denunciava a confraria dos especuladores urbanos“…Mestres destruidores de Coimbra… delirantemente inspirados no imitar do ideal da civilização hodierna - A Baixa de Lisboa …”, verberando a  “…miséria da educação que não permite perceber…como todos nós, os Europeus, de há tanto sabemos, que mesmo acima do seu valor arqueológico, um monumento nos é caro pela sua adaptação no aspeto em que se emoldura. Pode ser pobre e ser precioso. Precioso pela integração do seu vulto na paisagem”.[44] O seu “pessimismo de inteligência“, expresso no libelo acusatório contra o economicismo e o nepotismo, surge-nos hoje trágica e universalmente premonitório, bastando escrever em vez da cidade do Mondego o nome de qualquer das grandes e pequenas metrópoles que concentram a população contemporânea.
A apóstrofe do poeta surgiu nove anos antes das conclusões da Conferência Internacional de Atenas sobre a Restauração dos Monumentos, vulgarmente conhecida como Carta de Atenas. Publicada em 1931.[45] A transcrição de alguns dos seus princípios e sobretudo do capítulo dedicado à Valorização dos Monumentos permite - nos evidenciar a oportunidade das preposições do poeta.
“ A Conferência recomenda respeitar, na construção dos edifícios, o carácter e a fisionomia das cidades, sobretudo na vizinhança de monumentos antigos cuja envolvente deve ser objeto de cuidados particulares.
Mesmo em alguns conjuntos certas perspectivas particulares pitorescas devem ser preservadas.
Há também lugar para estudar as plantações e ornamentações vegetais convenientes a certos monumentos ou conjunto de monumentos para lhes conservar o carácter antigo. Ela recomenda sobretudo a supressão de toda a publicidade, de toda a presença abusiva de postes ou fios telegráficos, de toda a indústria ruidosa, mesmo as altas chaminés, na vizinhança dos monumentos de arte ou históricos.”
A Conferência constata mais adiante as ameaças constituídas pelos “agentes atmosféricos”, no quadro da vida moderna e prescreve um trabalho interdisciplinar e de cooperação internacional, para evitar a degradação dos monumentos e proceder ao seu restauro e conservação com materiais adequados, aplicados com sensatez, e enfatiza o papel da educação das populações.
Tal é o programa do Guia de Portugal, obra com a qual iniciámos este trabalho e de que extraímos a próxima reflexão crítica de Raul Proença.[46] Depois de reconhecer a pobreza monumental de Lisboa e a frieza da geometria jesuítica ou pombalina, pontuada embora pelos rendilhados de pedra manuelina dos Jerónimos e da Torre de Belém, ou pela magnificência do Terreiro do Paços e do portal de S. Vicente, é o enquadramento natural da cidade no estuário do Tejo que o autor valoriza. E deste contexto extrai todo um programa de reabilitação da cidade, que antecipa os princípios da Carta de Atenas e os projectos dos arquitetos paisagistas contemporâneos.[47]
O protesto de Ruben A. contra a destruição da Alta de Coimbra, pelo camartelo municipal do “estado novo“.
“…De uma cajadada matavam a casa do Eugénio de Castro, a velha Associação Académica na Bastilha, o Pirata, as ruas pitorescas como mais não havia na Europa. Os aselhas e os pataratas de Lisboa, aliados aos colaboracionistas traidores, avançavam metodicamente na destruição da coisa mais bela do nosso património - o musgo quente de nomes que por ali viveram e sentiram[48]
Mas se fosse preciso identificar um poeta da causa ambientalista, no sentido que atualmente este conceito comporta, de crítica ao modelo de desenvolvimento dominante, de projeto de mudança profunda da sociedade humana no sentido da democracia participada e da solidariedade entre os homens e destes para com a terra e todos os seres da natureza, de defesa do património natural e cultural, a escolha recairia seguramente sobra a escrita e os versos do poeta timorense Ruy Cinatti.
Recorremos de novo ao seu livro Paisagens Timorenses com Vultos , para a documentar, na linha do que anteriormente ficou expresso a propósito dos versos Parâmetro Ecológico, agora com referência ao património cultural.
“ Um Património Sonegado
São braços cruzados
de Cristo na cruz
o que em Timor fica.
As pernas, a face,
o tronco esculpido,
remoçam as salas
de várias famílias
metropolitanas
ou saldam as dívidas
por engano havidas
nos antiquários
de países vários…”[49]
Cabe aqui uma referência a Alberto Osório de Castro e ao seu livro A Ilha Verde e Vermelha de Timor, descoberto por Cinatti, que nele reconhece um primeiro e valioso contributo para a conservação da floresta timorense e da sua biodiversidade.[50] Esta obra, além de abundante informação científica e histórica sobre aquela ilha, contém uma visão geral acerca das Índias Orientais, nesses mesmos domínios. Também o problema da captura excessiva e da ameaça de extinção de algumas espécies com valor industrial, provocados pelo uso brutal das tecnologias modernas, surge com grande antecipação na obra de Raul Brandão, emblematicamente representada pela Pesca da Baleia.
A descrição dramática desta atividade, justificada como elemento vital para a sobrevivência dos pescadores do Pico e das Lajes, surge no primeiro quadro do texto.
“…Deixam um casamento ou um enterro em meio, um contrato ou uma penhora, as testemunhas e a justiça e correm desesperados a arrear à baleia...”[51]
Vale a pena alongar a citação do texto de Raul Brandão sobre as baleias, porque ele é demonstrativo de um profundo conhecimento científico do seu ciclo natural, mas sobretudo pelas reflexões de carácter ambiental e valor ético que o acompanham, no que respeita aos conceitos do humano e animal.
Sublinhamos, também, certos passos da reflexão do autor, pelo que eles contêm de irrecusável preocupação ética, para passarmos, depois, á sua crítica ao massacre industrial da espécie pelos baleeiros sem pátria que ostentam a bandeira dos EUA, retrato-tipo dos barcos-fábrica e das companhias multinacionais que ameaçam extinguir a fauna e a flora marinhas.
“…A baleia é um bicho muito tímido…Viajam em grupos de vinte e trinta. É um espetáculo majestoso reencontrar pela manhã um bando de baleias, resfolgando pela ventas _ é um espetáculo do princípio do mundo…Pastam… Contam que a mãe acompanhada pelo filho…é mais fácil de subjugar, chegando o ambaque (baleia preta) a deixar-se matar…Quer dizer: esta coisa monstruosa e zincada, com óleo na cabeça, não só come e digere, não só dorme e digere- é capaz de ternura e sacrifício”... [52]
Creio que hoje só os barcos dos Açores a caçam pelo processo primitivo, que é muito mais perigoso. Os americanos usam um canhão…A baleia é apanhada, suspensa, cortada e derretida em grandes caldeirões que fumegam a bordo. Essa aventesma besuntada, fedorenta e resumando óleo, todo o dia navega, vomita fumo e cheira que tolhe, e mais parece um açougue ambulante que um barco…E isto nunca mais cessa: o navio enche o mar de fedor e de sangue e lá dentro a caterva derrete sem cessar…”[53]
Triunfar da morte
Prossigamos, até encontrar, num sábado de Aleluia de 1961, Os Sinais de Fogo, do poeta Jorge de Sena, mas agora como heroica odisseia humana sobre a terra.[54] A síntese admirável da nossa relação original com as cadeias evolutivas da vida e com os antepassados comuns, habitantes do mar e das florestas pantanosas, e do nascimento da condição humana como produto combinado do trabalho, da comunicação e da expressão simbólicas, que a linguagem e a arte representam.
“... A MORTE , O ESPAÇO , A ETERNIDADE
          ao José Blanc de Portugal , em memória de
          um seu ente querido que eu muito estimava…

“De morte natural nunca ninguém morreu…
... Não.
Não foi para morrermos que falámos,
que descobrimos a ternura e o fogo,
e a pintura , a escrita , a doce música.
Não foi para morrer que nós sonhámos
ser imortais, ter alma , reviver ,
ou que sonhámos deuses que por nós
fossem mais imortais que sonharíamos…
Reflexão primordial acerca da natureza humana, do carácter peculiar da espécie humana, gerada pela mesma matriz cósmica que fez nascer as estrelas e delas emergir a Terra, mas a única que sonhou ultrapassar, a nível da consciência individual, a lei de bronze da sobrevivência de todas os outras espécies: os indivíduos têm de morrer para que a sua descendência específica prossiga e evolua. Por isso, ousámos negar a própria natureza! A referência à ligação cósmica do homem com o universo.
“…Para emergirmos livres foi que a morte
nos deu um medo que é o nosso destino…”
Essa consciência, da morte inevitável, que se interroga até ao fim acerca do destino inexorável, é a face terrível da nossa própria liberdade.
“…Não há limites para a Vida. Não
aquela que de um salto se formou
lá onde um dia alguns cristais comeram…”
O retorno aparente do antropocentrismo, em Jorge de Sena, não significa o assumir do reinado místico ou racionalista do homem sobre a Terra. Esta condição humana está, na sua poesia, contida pelos traços da animalidade próprios da existência do ser humano e pelo respeito supremo por todas as formas de vida, semelhantes e diversas.[55]
…A Vida Humana , sim, a respirada ,
suada , segregada , circulada ,
a que é excremento e sangue , a que é semente
e é gozo e é dor e pele que palpita
ligeiramente fria sob ardentes dedos.
Não há limites para ela…
À espécie humana, dotada de sentimentos e ideias, da capacidade de trabalho e da faculdade de se interrogar a si própria, pertence a epopeia de semear a vida através do Universo. E nessa obra comum, preparada laboriosamente desde os primórdios da humanidade e que hoje dá apenas os primeiros e balbuciantes passos no caminho das estrelas, reside a libertação da lei da morte, que já Luís de Camões celebrou.
“…O Sol , a Via Láctea , as Nebulosas ,
teremos e veremos , até que
a Vida seja de imortais que somos…”
A perspectiva científica dos bioquímicos, da ecologia global, a que fizemos anteriormente referência a propósito do seu desconhecido criador, o soviético Vladimir Vernandsky, contida nos versos 
“…Fechados sobre a terra, ela nos sendo e sendo ela nós todos”
A morte de Deus sem Apocalipse nem desespero metafísico, o destino humano, pavor configurado no limite da existência de cada ser, mas também epopeia nesse singular contributo para que a Vida prossiga e alcance novos Mundos.
…Para emergir nascemos. O pavor nos traça,
esse destino claramente visto :
podem os mundos acabar, que a Vida
voando nos espaços, outros mundos
há-de encontrar em que se continue…”[56]
E a crença final na Vida, que transportamos na nossa humana condição, mas que não se resume ao Homem e nos ultrapassa, por ser como uma espécie de ária de fuga, quase impercetível, que emergiu do silêncio gelado do Universo em expansão; a vida como capacidade de sentir, desejar, amar, há-de preencher por si só o lugar dos Deuses e, brotando do nada universal, ocupar esse espaço e o da Eternidade.

1.4 A magnificação do indivíduo e do seu corpo.

A globalização, na sua dualidade trágica e épica (porque aprofunda a crise ambiental ao mesmo tempo que atinge o cume da revolução tecnocientífica), conduziu os poetas contemporâneos ao reencontro, quer disso tenham consciência ou não, com os temas clássicos do fluir da vida e da morte, à reflexão sobre os seus múltiplos significados e à renovada tentativa de instaurar uma qualquer esperança ou alegria breve. E, neste ponto, se diferenciam outra vez os destinos estéticos: cada círculo poético que é hoje a obra individual do seu autor original, abriu-se mais (evoque-se aqui a obra de José Saramago) ou menos, aos novos e velhos problemas sociais, através das alegorias e das metáforas tradicionais ou dos novíssimos valores simbólicos da imagem e das suas conquistas formais e estruturais. Ou, então, a opacidade da imagem e o sem sentido do discurso estético cerrou-se fortemente, tornou-se hermético e iniciático, quando não proclamou a precaridade e o fim da arte e da própria possibilidade de comunicar.
Talvez que uma parte substancial da obra mais recente dos nossos escritores e poetas, a partir da década de 60, cujo final serve de baliza ao nosso trabalho, se possa interpretar, neste contexto, como um desafio permanente ao finito destino individual de cada ser, através do amor pessoal (e da sua dimensão  erótica) e do esforço de recriação literária tendente a  abarcar toda a paisagem natural e humanizada, objetiva e interior, onde o poeta se transmuda nos elementos naturalizados que compõem a própria matéria poética: leia-se, por exemplo, As Mãos e Os Frutos, de Eugénio de Andrade, ou Sobre o Rosto da Terra, de António Ramos Rosa. Vejamos, deste última obra, alguns versos, datados de 1961, do poema Um Caminho de Palavras.[57]
“…Sem dizer o fogo _ vou para ele. Sem enunciar as pedras_ sei que as piso duramente, são pedras e não são ervas. O vento é fresco; sei que é vento, mas sabe-me a fresco ao mesmo tempo que a vento. Tudo o que sei, já lá está, mas não estão os meus passos nem os meus braços. Por isso caminho, caminho, porque há um intervalo entre tudo e eu, e nesse intervalo caminho e descubro o meu caminho.”
Encontramos em Fernando Pessoa e nos seus heterónimos o elo moderno deste fio condutor. Escutemos Ricardo Reis.
“ Coroai-me em verdade
De rosas _
Rosas que se apagam
Em fronte a apagar-se
           Tão cedo !
Coroai-me de rosas
E de folhas breves
 E basta “!.. [58]
…E Alberto Caeiro:
“…E quando se vai morrer, lembrar-se que o dia morre,
E que o poente é belo e é  bela a noite que fica…
Assim é e assim seja…” [59]
Atente-se agora na continuidade temática presente nos versos de dois poetas, escolhidos entre os seus pares a título de exemplo, os quais corporizaram a transição entre as décadas de 50/60 e as de 70/80, respetivamente, António José Maldonado e Gastão Cruz.
Do primeiro, a poesia  Êxodo :
“ Para onde partiram os camponeses, as aves e os peixes ?
Deixaram os rios e as muralhas das flores desertas,
deixaram os sulcos e os destinos da Terra…“( 1960 ) [60]
Do segundo, a poesia retirada da obra  Teoria da Fala:
“…Não penses nas canções da primavera que
duraram o tempo que deviam é do outono o som destas planícies
destes corpos talvez demasiado
consumidos…                          
…A beleza que deve então
morrer
dentro da alegria escolherá
ruína terra som melancolia…”(1969) [61]
Ao referir-se aos grupos de poetas organizados em torno da revista Árvore, que apareceu em 1951, e da publicação coletiva Poesia 61, o crítico literário e seu companheiro poético, Fernando Guimarães, demarcava assim o seu lugar histórico-cultural:
“Recusava-se, pois, não só a imaginação em excesso da poesia surrealista, mas também uma outra espécie de expansão verbal que resulta do apego a uma construção de natureza alegórica capaz de provocar, de acordo com as intenções dos neorrealistas, a segunda leitura de um sentido político ou ideológico.”[62]
Façamos um curto percurso na obra de alguns dos novos poetas da época, utilizando para esse fim a coletânea de ensaios de um deles, António Ramos Rosa, denominada Incisões Oblíquas, com data de 1987 .
A poesia de João Rui de Sousa emerge da “noite”, arquétipo do vazio, do sem sentido e da morte, para celebrar as mais singelas manifestações da vida e da experiência estética da relação entre o homem e a natureza, mas aqui sem o bálsamo místico que certas poesias de Sebastião da Gama evocam.[63] Procuremos os versos de Rui de Sousa“…de recordar as terras orvalhadas/é que se esquecem mortes tão diárias…”[64] Em Albino Martins, poeta da Árvore, encontramos a unidade ontológica do ser e das coisas, como produto do seu próprio percurso existencial de relacionamento e metamorfose.“…E tudo permanece. E tudo é teu./Tu és o sangue, o verão e a pedra…”[65]
Na poesia de Fernando Guimarães, o movimento cósmico de celebração da vida perante a face da morte. De novo crescem as rosas pelo interior da sua forma/ e as pétalas da morte vêm ornamentar o centro de cada rosto…”[66] Mesmo na poesia de pendor negativo de José Augusto Seabra se abrem espaços para escassos momentos de harmonia cósmica.“…Viria o tempo de alongar os remos /Cais desmaiando, proa aguda, vento/dócil aos braços e ao desejo... “[67]
A unidade cósmica realiza-se em Fernando Echevarria com a abolição dos conceitos mecânicos de espaço-tempo, o poema como lugar relativo dessa nova reflexão poética.   “Anoitecia/Como nos foi antiga a luz de agora…”[68] E a opacidade e o sem sentido irredutíveis da poesia de Pedro Tamen constituem, por vezes, um paradoxo para o real, de súbito transparente na sua sensualidade.“…E agora: a tua pele./Revejo: é manso o mar...”[69] Em Alberto de Lacerda o esplendor da vida e da terra irrompe do próprio amor físico.“…Quem até ao fundo se perdeu/nos teus olhos de mar e de recusa/viu através da carne o cântico do mundo...” [70] Mas a sua poesia conhece também “a porcaria e o caos” do mundo e a violência que campeia entre a espécie humana“…A curva das garras, a força dos dentes.”[71]
Anote-se, finalmente, que, mesmo os surrealistas, cujas imagens poéticas são marcadas pelo distanciamento do referencial realidade e por uma maior opacidade, também eles procuraram esse indizível universal comum a todos os seres e falar a temática do amor. Vejamos os versos de Mário Cesariny:
          “Amor
                     amor humano
          amor que nos devolve tudo o que perdêssemos
          amor da grande solidão povoada de pequenas figuras
                                                                     ( cintilantes...”[72]
A Magnificação do Corpo
Um particular aspeto dessa descida às profundezas do ser e da natureza humana foi a revelação do erotismo, assumido com a desenvoltura que Eduardo Lourenço assinala. No contexto da crítica às conceções filosóficas judaico-cristãs, acusadas hoje de serem as responsáveis pelo antropocentrismo e pelo ego e etnocêntrico modo de estar no mundo (objeto, mais adiante, da nossa reflexão), importa acentuar, no plano da sexualidade, que a voz dos poetas se ergueu contra o pudor religioso e a repressão que, na nossa tradição cultural, lhe está associada.
Basta seguir agora a linha de leitura que Eugénio de Andrade nos sugere, na última edição da sua coletânea Eros de Passagem.[73]
À descoberta do corpo, ou como afirma o autor, ao espírito de magnificar o corpo e as suas pulsões, permaneceu fiel todo um escol de poetas, desde os simbolistas, como Camilo Pessanha: Sem vil pudor! De que há que ter vergonha”? Ou Eugénio de Castro…“Num doido frenesi, entrar parecem qu’rer/Ela - no corpo dele, ele - no corpo dela! ”Afonso Duarte, companheiro de Pascoaes no grupo da “ Renascença Portuguesa”: “Seu corpo era uma púbere mendiga,/E ele é que estava pedindo,/Lindo,/O meu sexo.” O erotismo casto de Fernando Pessoa, poeta do Orpheu: “Apetece como um barco./Tem qualquer coisa de gomo./Meu Deus, quando é que eu embarco?/Ó fome, quando é que eu como”? Para a transgressão de Álvaro de Campos, na Ode Marítima: “Ó meus peludos e rudes heróis da aventura e do crime!/Minhas marítimas feras, maridos da minha imaginação!/Amantes casuais da obliquidade das minhas sensações!/Queria ser Aquela que vos esperasse nos portos”. Ou de António Botto…“Venham ver a maravilha/Do seu corpo juvenil!…/Anda nu- saltando e rindo”. O mais famoso dos autores da “Presença“, nas páginas de Régio menos conhecidas: “E em duas bocas uma língua…,- unidos,/ Nós trocaremos beijos e gemidos,/ Sentindo o nosso sangue misturar-se”. Ao neo-realismo do poeta-militante José Gomes Ferreira, que começa um poema dedicado ao desejo, com a frase irónica: “(Finjo que não vejo as mulheres que passam, mas vejo)”…escritores presencistas e neorrealistas onde a alusão erótica é contida e recatada:  “…o maduro pomo…”, na metáfora de Carlos Queirós e o  “seio de ouro e outro de prata” em José Gomes Ferreira, são para Torga, afinal, “tetas de donzela”.
É Jorge de Sena, na sua admirável prodigalidade estilística, que reúne e desdobra os discursos alegórico e direto: “...da crepitante música tangida, /húmida e tersa, na sangrenta lida/que a inflada ponta penetrante trila”. Que em David Mourão Ferreira assume a mistura do requinte intelectual e físico: “ Entre as duas nádegas/o pávido sulco /tem aroma de áfrica/e de uvas de outubro.“ E atinge em Natália Correia a desenvoltura: “…abro-te as coxas e deixo-te crescer/duro e cheiroso como o aloendro. ”Tal como em Maria Teresa Horta... (Maria Velho da Costa e Isabel Barreno): “...e tu dentro de mim/vais descobrindo vales. Nuno Júdice: “Abre as pernas, ao negro triângulo /acrescentando o húmido risco entre/ os secretos lábios…”Al Berto: “…sorri ao enumerar os restos que a manhã encontraria pelo chão/manchas de esperma, ténis esburacados, calças sujíssimas.”
E reafirme-se, finalmente, que, mesmo os surrealistas, cujo universo onírico parece substituir a realidade, também eles procuraram esse indizível universal comum a todos os seres e falar a temática do amor. Vejamos os versos de Cesariny:Amor /amor humano / amor que nos devolve tudo o que perdêssemos”.[74]
E, nesta última nota, afirmamos que nos limitámos a selecionar, sem nenhuma intenção de estabelecer qualquer escala de mérito, apenas alguns poetas, deixando de lado outros excelentes escritos, suscetíveis de nos fornecerem um testemunho de igual valia.[75] É o caso do “arquipélago de ensaios” de Vasco da Graça Moura, no dizer de Eduardo Lourenço, cuja obra poética herda e recrie os grandes temas da fugacidade da vida, do amor (do erotismo) e da morte (que já habita tudo o que é refulgência de vida).  [76]
Regressemos agora a outro referencial da Nova Literatura, anunciada pelo livro Rumor Branco, de Almeida Faria. Interessa-nos analisar aqui esta obra e a Trilogia que lhe é posterior e desemboca no romance Cavaleiro Andante como paradigma da presença (ou será imanência?) da questão ambiental e da crise geral da cultura do ocidente, na obra dos nossos escritores, na sua expressão mais moderna ou pós-moderna. [77]
Recorramos de novo a Eduardo Lourenço.
 “O mundo dos personagens dispersos, mais do que errantes, do romance de Almeida Faria, não é o dos Gerais de Guimarães Rosa, é o mundo-deserto da cultura ocidental procurando às cegas uma saída para o sem-sentido com que se vive enquanto História e Destino”.[78]
“Cavaleiro Andante que foge da Europa e da sua ilusão cultural, foge de Lisboa que o enjeita”, para encontrar em África e no amor a sua redenção espiritual. Símbolo de uma família e de um país, que foi de latifundiários, viveu a mais tardia revolução democrática da Europa deste século e, como ela, viu perecer os melhores e mais exaltantes sonhos de emancipação social.
Paixão que Óscar Lopes interpreta como reinvenção da filosofia pascaliana, na linha dos mitos de Prometeu ou de Lúcifer, onde o homem transcende a sua precária e finita condição e transcende-a sobretudo quando aceita sofrer por mais do que ele próprio, pela plenitude humana a que todas as revoluções modernas aspiram através da consumação do seu programa vitorioso.[79] A relação com o pensamento pascaliano surge no romance através da metáfora de uma Páscoa anunciada pelo sacrifício do corpo de Cristo, símbolo do humano sacrifício de todos os que, ao longo da História, não hesitaram em “crucificar” o seu individual e mortal destino, em prole da Humanidade.
Derrotadas embora (as revoluções) e os seus autores ou simples protagonistas, o que importa afinal é essa procura eterna de um Graal que nos liberta “do labirinto da morte onde a vida nos depôs sem pedir licença.”[80] É a demanda que conta, como o que dignifica a condição humana, é “...o Pecado Original...de desobediência à Ordem pretensamente Natural.”[81]
A crise multilateral do nosso modo de produção, que é nacional, europeia e ocidental, avaliada na sua dimensão ambiental, surge nesta Tetralogia de Almeida Faria enquanto revelação e ausência, quando, numa das cartas da personagem Marta esta exalta os artigos de Pasolini, lidos religiosamente no “Corriere de La Serra “, onde “Pela 1ª vez alguém associa, por exemplo, o problema do aborto ao da ecologia.”[82]
Na Lusitânia dos anos 60 e 70, de que nos fala Almeida Faria, a questão ambiental era sobretudo uma visão dos “estrangeirados”.
Que significado tem, para o desenvolvimento do nosso tema, a poesia de Herberto Hélder, poeta órfico (da terra), nesses aparentes passos em volta, construídos como signo de uma civilização labiríntica (que se confunde hoje com a própria condição humana), que fragilizou e confundiu a condição do indivíduo, ao mesmo tempo que elevou o homem, pelo amor, até à morada dos Deuses    ( “... e em ti principiam o mar e o mundo…”)?[83]                     
(“ ...e eu me transmude na zona de uma idade
                                      antiga e Deus
                                      fale de em mim no mais puro alto da carne...”)[84]
Há na poesia de Herberto Hélder um ritual de passagem para uma nova e muito antiga (porque evoca os mitos órficos) cosmovisão:[85] “…a maneira como tudo se enreda em tudo”.[86]Onde, a face animal (lorenziana) da natureza humana é”… limpa como a luz”. [87] E o amor a sua mais natural expressão: “...precisamos amar, e não temer e desrespeitar.[88] Nesta poesia, a criança é o símbolo iniciático que renova a esperança de glorificar a vida:”…Nelas se festeja a imensidade/ dos meses, a melancolia, a silenciosa/ pureza do mundo”.[89] E a mulher, a amante que realiza os atos mais sublimes do amor e mais próxima aparece dessa natureza que é geradora da vida: “…Beijarei em ti a vida enorme, e em cada espasmo/eu morrerei contigo.”[90]  Enfim, o amor como expressão, no ciclo da vida, da ligação de cada ser com a Terra- Mãe, lugar órfico onde estamos destinados a viver: “E através da mãe o filho pensa/ que nenhuma morte é possível e as águas/ estão ligadas entre si…”[91]
 Tarefa dos poetas, como foi do herói clássico, parece ser a de, através desta espécie de música que são os seus versos, nos iniciarem na sublime e terrível visão onde tudo se liga com tudo e cada um dos nossos atos ganha um peso ético universal.
Para que, como Orfeu, não tenhamos medo de olhar de frente o Inferno em que o nosso mundo se transformou.[92] E, por amor a essa Mãe-Terra e às novas gerações que avançam para o futuro, ousemos “desrespeitar” a ordem aparente das coisas: “Porque não haverá paz para aquele que ama.”[93]A eterna busca da causa primeira, da unidade cósmica entre a matéria e o espírito, apaziguará então a angústia da nossa existência e conferir-lhe-á um sentido. Não podemos exigir- lhes (a eles, os poetas) que também escrevam o programa social dessa mudança.

Seguindo a asserção de Eduardo Lourenço, que evidenciava a náusea dos escritores do fim do século na transição para o século XX, face ao surgimento de uma sociedade de massas laicizada e destruidora do indivíduo e sabiamente a situa na geografia social, conotando-a com o “espírito da época” típico dos intelectuais das metrópoles capitalistas de Paris, Berlim e Londres, julgamos reconhecer na literatura contemporânea, como marcas distintivas deste nosso fim de século, as imagens da vertigem alucinante do consumismo e do símbolo do labirinto, típicas das megacidades e da interdependência internacional e transmudadas em arquétipos estéticos omnipresentes.
Reconhecemos as marcas deste espírito de fim do século XX/XXI, na expressão semântica, mas também inscritas na estrutura sintática e compositiva do texto literário: a junção plural dos géneros na mesma obra artística, o predomínio da descrição sobre a interpretação da realidade, que sugere opacidade, incapacidade ou desinteresse na sua interpretação; ou o desmontar das suas imagens, ideológica e finalisticamente construídas, reconstruídas sob um novo olhar;  a consciência acronológica, o aparente ou intencional sem sentido, a duplicação, a multiplicação, a sobreposição e o palimpsesto, a integração das artes e o papel saliente dos multimédia; enquanto, no panorama nacional, prevalece ainda e sempre a presença ou a ausência-presente do destino trágico do ser humano. O nosso tempo volta a ser um tempo de tragédia para a condição humana, não como fatídico destino que a crise ambiental prenuncia mas sobretudo enquanto esforço do homem moderno para procurar, como Nietzsche, o sentido da terra e nela ocupar, definitivamente, o lugar dos Deuses.
De facto, a fugacidade das imagens que têm o condão televisivo de nos mostrar, em tempo real, as desgraças do mundo, não se interrogam, em regra, sobre “o como ultrapassá-las” e o “porquê aconteceu,” não questionam eticamente o contexto político, social e moral que as gerou e não interpelam e perturbam a nossa própria consciência. Funcionam como espetáculo alienante, num comprazer trágico que nos evoca a asserção de Schiller, contudo sem a compaixão espiritual do homem culto, cuja atitude e conduta obedece à sua consciência ética.[94] Mas o homem já não está prisioneiro de vagos deuses e não precisa de transferir para o Olimpo o advento da beleza como mediadora de um mundo novo. Nunca como então a Humanidade foi chamada a desafiar o seu próprio fado, mas agora o pessimismo estético também pode ser o ponto de arrancada para a realização dos mais velhos sonhos do ser humano. Frederico Nietzsche já não blasfema sozinho contra os céus:[95] Muito longe do seu pensamento filosófico, multidões imensas sacrificarão tudo para forjar, neste mundo, o carro de Apolo. O resplendor trágico da sua luta, o retrocesso brutal das sociedades prometidas à emancipação do Homem, reconduziram depois a natureza humana à sua condição trágica, num eterno retorno. Mas o caminho ficou aberto e o ser humano toma definitivamente consciência da sua grandeza e finitude, já não apenas como uma questão filosófica, mas também e universalmente, como um problema pragmático. Veremos adiante, neste trabalho, como a literatura de Miguel Torga, invocando Os Bichos, a alegoria do corvo na Arca de Noé face a face com o Criador, nos transporta à mesma encruzilhada onde os tempos modernos colocaram a Humanidade.










[1] Fernando Pessoa, Poemas Escolhidos, de Jorge Fazenda Lourenço, do Cancioneiro, O Menino da Sua Mãe, 1926.
[2]  José Gomes Ferreira, Heroicas , poema XXXV, pps. 148, 1936, 1937,1938.
[3] Carlos de Oliveira, do livro Colheita Perdida, o poema  Pesadelo, pps. 72,73,74, 1948.
[4] Ibid.
[5] Ibid.
[6] Nos anos 50, a Agência atómica norte americana desdobrou-se em múltiplas campanhas de branqueamento dos efeitos nocivos do nuclear, anunciando a chegada de uma nova era de energia limpa e inesgotável, de origem atómica, que a ironia de Jorge de Sena fustiga nos versos ..à luz que vem /oh só em poeiras inofensivas, rezo…
[7] Jorge de Sena, do livro Fidelidade, poema A Paz, pág. 133, 1958.
[8] Egito Gonçalves, Antologia Poética, o poema A Bomba, pág. 46,1952.
[9] António Gedeão, do livro Linhas de Força,  o  Poema da Terra Adubada, pps. 289 e 290, 1967.
[10] Casimiro de Brito, do livro Jardins de Guerra, poemas escritos entre 1961/64, os versos As Sementes, publicados em  Ode e Ceia, pps. 122 a 124 .
[11] Casimiro de Brito, do livro Solidão Imperfeita, poemas escritos entre 1955/58, publicados em Ode e Ceia, pág. 35.
[12] Leia-se, por exemplo, o prefácio de Alexandre Pinheiro Torres à  Nau de Quixibá, obra escrita em 1957, mas que o autor só conseguiu publicar no pós 25 de Abril.
[13] Rui de Azevedo Teixeira, na obra A Guerra Colonial e o Romance Português, trabalho de Tese publicado em 1997, refere que, o tema da guerra,…até ao início da década de sessenta, não dá à Literatura Portuguesa sequer uma dezena de grandes, definitivas obras…, contabilizando depois, face à Guerra Colonial, os trabalhos de cerca de 150 escritores e críticos nacionais!
[14] Manuel Alegre escreveu as suas obras maiores de poesia em 1963, Praça da Canção  e em 1967, O Canto e as Armas.
[15]  Cantar de Novo, Lá no Xepangara, 1970, pps 100 e 101.
[16] Intervenção do Prof. Francisco Caldeira Cabral no Congresso da Federação Internacional de Arquitetos Paisagistas, organizado em Tóquio no ano de 1964, no tempo em que era Presidente da Federação. Contém, ela própria, uma visão prospetiva das modernas ciências ambientais. E ilustra magnificamente a tradição de “humanismo ecologista“ e uma superior visão ética, que emerge na cultura contemporânea nacional  pela obra, insuficientemente reconhecida e divulgada, de um escol de homens sábios e literatos. Recolhida junto do seu filho e continuador, o engenheiro e professor João Caldeira Cabral. Vamos encontrar Francisco Caldeira Cabral, dezasseis anos antes, entre os fundadores da Liga de Proteção da Natureza.
[17] Irene Lisboa - Pequenos Poemas Mentais, in Revista Portugal, nº 3, 1938.
[18] Maria Lúcia Lepecki,  Sobreimpressões, pág. 144.
[19] A obra de Rodrigues Miguéis não aparece normalmente nas recensões críticas sobre o Modernismo, embora pareça aceitável  que lhe cabe um lugar único e por isso à parte, na charneira dos modernistas da primeira  (Cesário, Pessoa, Sá Carneiro, Almada Negreiros)  e segunda gerações (a da Presença). Talvez porque a sua obra ficou inédita, dispersa por jornais e revistas, reduzida a folhetins, emergindo sob a forma de livro, sobretudo a partir da década de 50.
Contudo a sua escrita, situada nas décadas de 1930 a 1970, abarca a generalidade dos temas e inquietações que atravessam as correntes estéticas e a obra dos autores da Modernidade, isto é, do Modernismo e do Pós-Modernismo, transmitindo-lhe uma feição particular que parece caracterizar todas as sínteses históricas entre a cultura nacional e a influência das culturas internacionais: Desse encontro, em diferentes épocas, resulta sempre um esforço de domesticação das tendências estéticas originais e, no caso vertente, um aportuguesamento do modernismo. Vejamos os sinais de modernidade que marcam a sua obra.
[20] Eduardo Lourenço, O Canto do Signo, Existência e Literatura (1957-1993), obra de referência deste texto, amplamente citada.
[21] José Rodrigues Miguéis,  Léah e Outras Histórias, pps. 131 e 132.
[22] Afonso Lopes Vieira, Éclogas de Agora, 1935. No prefácio desta obra, Cecília Barreira  revela-nos o sentido moderno do texto de Lopes Vieira “... conscientemente repudia o espírito inicial das éclogas- a tradição que remontava a Bernardim e Camões, Sá de Miranda, Rodrigues Lobo- na exaltação duma vida campestre. É o Mar - na dupla significação de renascimento pátrio e de veículo da única saída que se impõe na Porta, o exílio - que consubstancia e povoa esse horizonte existencial, carregando-o, por um lado, de grandiosidade e, por outro, de frustração. E nesse sentimento contraditório inculca Lopes Vieira o confronto entre um passado glorioso e um presente imerso em brumas e inquietação…”
[23] Ibid., pág. 23.
[24]  Óscar Lopes,  Entre Fialho e Nemésio, pág. 709.
[25]  Ibid. pág. 713.
[26]  Ibid. pág. 714.
[27]  Ibid. pág. 712.
[28]  Citado da obra  A Poesia da Presença, de Maria Teresa Arsénio Nunes, pág. 50. Trata-se do poema Desfloramento, publicado na revista Presença, nº 36.
[29]  Citado de Eduardo Lourenço,  O Labirinto da Saudade, pág. 105.
[30]  Aquilino Ribeiro, Terras do Demo, pág. 1 do Prefácio, 1918.
[31]  Ibid., pps. 3 e 4 do Prefácio.
[32]  Ferreira de Castro,  Terra Fria, pág. 3 do Pórtico, 1934.
[33]  Urbano Tavares Rodrigues, Prefácio de  A Terra e o Homem, de Jaime Cortesão, pps. 12 e 13.
[34]  Miguel Torga , Portugal,  pág. 47, 1950.
[35]  Alves Redol, Gaibéus, pág. 128, 1940.
[36]  Manuel da Fonseca, de Cerro Maior, pps. 168 e 169, 1993.
[37]  Raul Brandão, Os Pescadores, pps. 94 e 95, 1923.
[38]  António Gedeão,  Obra Completa, o poema  Pedra Filosofal.
[39]  Jorge de Sena, Trinta Anos de Poesia, do Livro  Metamorfoses, pps. 171 a 175, 1961.
[40]  Raul Brandão , Os Pescadores , pps. 134 e 135 ,1923.
[41] Afonso Lopes Vieira, Em Demanda do Graal, 1922, reeditado na coletânea Memórias da Alegria, organizada por Eugénio de Andrade.
[42]  Ibid., pps. 314 e 315.
[43]  Ibid., pág. 314.
[44]  Ibid., pág. 315.
[45] E ampliado depois pela Carta de Veneza (1966) e a Carta Europeia do Património Arquitenico, adotada em Outubro de 1975 em Amsterdão, sob a iniciativa do Conselho da Europa. Veremos no pós- Fácio, como Fernando Namora  se identificava com os seus princípios e como por eles se bateu com a sua escrita.
[46]  Guia de Portugal, Lisboa e Arredores, Vol. I, Lisboa,  por Raul Proença, 1924.
[47]  Ibid., pág. 183.
[48] A Última Época Civilizada de Coimbra, texto de 1966, da autoria de Ruben A., publicado na coletânea,  Memórias de Alegria, organizada por Eugénio de Andrade.
[49]  Paisagens Timorenses com Vultos, Um Património Sonegado, pps. 65 a 69.
[50] Publicado, pela primeira vez, nas páginas da  Seara Nova, nos anos de 1928 e 1929.
[51] Ob. citada., pág. 112.
[52]  Ibid., pps. 104 a 106.
[53]  Ibid..
[54]  O que Eduardo Lourenço representou nos domínios da cultura e da filosofia heterodoxas, provavelmente cabe a Jorge de Sena no plano literário e, talvez por isso, o destino do nosso engenheiro-poeta tenha sido o de sofrer na sua e nossa terra as andanças do demónio e do exílio.
[55] Veremos adiante, noutro poema de Jorge de Sena, Carta aos meus filhos, sobre Os Fuzilamentos de Goya, como o conceito de Vida defendido pelo poeta está para além do antropocentrismo clássico.
[56]  Jorge de Sena, Trinta Anos de Poesia, do livro Metamorfoses, pps 171 a 175. 1963.
[57]  António Ramos Rosa, Obra Poética I,  Sobre o Rosto da Terra,  Um Caminho de Palavras, pág. 133.
[58]  Ricardo Reis, Odes, pág. 99.
[59]  Alberto Caeiro, Poemas, XXI.
[60]  Fernando Guimarães,  A Poesia Contemporânea Portuguesa e o Fim da Modernidade, pág. 64, 1989.
[61]  Ibid., pág. 75.
[62]  Ibid., pág. 64.
[63]  Ver adiante Poesia depois da chuva.
[64]  António Ramos Rosa,  Incisões Oblíquas,  Estudos Sobre Poesia Portuguesa Contemporânea, pps. 61 e 62, 1987.
[65]  Ibid. pág. 114.
[66]  Ibid. pág. 94.
[67]  Ibid. pág. 103.
[68]  Ibid. pps. 109 e 110.
[69]  Ibid. pág. 89.
[70]  Ibid. pág. 46.
[71]  Ibid., pps. 47 e 48.
[72]  Ibid., pág. 30.
[73]  Eugénio de Andrade,  Eros de Passagem, 1997.

[74] Citado da obra de António Ramos Rosa, Incisões Oblíquas, Estudos Sobre Poesia Portuguesa Contemporânea, pág. 30. 
[75] Eduardo Lourenço escreve, no texto  Uma Literatura Desenvolta ou Os Filhos de Álvaro de Campos, publicado  na revista O Tempo e o Modo, nº 42 _ de Outubro de 1966:Para apreciar como convém e merece a novidade da Nova Literatura basta considerar atentamente o que advém nela o tema central (e obsessão quase única do Ocidente na Poesia e no Romance) do amor, ou mais genericamente da relação erótica.
[76] Ver 366 Poemas Que Falam de Amor. Escolhidos por Vasco Graça Moura, de Vasco Graça Moura, Poemas que nunca se esquecem. Por amor. Última edição da Quetzal, 2009.
[77]  A Trilogia é composta pelos romances  Paixão, 1965, Cortes, 1978 e  Lusitânia, 1980.
[78]   Prefácio a  Cavaleiro Andante, de Almeida Faria, 1983, da edição de 1987.
[79]  Óscar Lopes,  Os Sinais e os Sentidos, texto datado de 1966, pág. 291.
[80]  Ob. Cit , Eduardo Lourenço.
[81]  Ob. Cit., Óscar Lopes.
[82]  Almeida Faria,  Lusitânia, pág. 224.
[83]  Herberto Hélder, Poesia Toda,  pág. 20, 1953-60.
[84]  Ibid., pág. 144, 1961-62.
[85]…E não sabemos escutar o barulho
        nem vemos os roseirais dominados pelo silêncio
        oh nem
        deliramos nos enormes inóspitos campos
        de Deus. “Ibid., pág. 145.
[86]  Herberto Hélder, Um Silêncio de Bronze, de Manuel Frias Martins, citado na pág. 98.
[87]  Ibid. pág. 97.
[88]  Ibid. pág. 98.
[89]  Herberto Hélder,  Poesia Toda, pág. 65, 1953-60.
[90]  Ibid. pág. 25.
[91]  Ibid., pág. 44.
[92]  O Inferno somos nós próprios”, dirão, mais adiante, os cientistas franceses, citando Lévi-Strauss.
[93]  Ibid., pág. 123.     
[94]  “Cada sacrifício de vida é inconveniente, pois a vida é condição de todos os bens; mas sacrificar a vida num propósito moral é conveniente em alto grau, pois a vida nunca é importante por si própria, nunca como um fim, apenas como meio para alcançar a ética. ”Friedrich Schiller, Textos Sobre o Belo, o Sublime e o Trágico, pág. 33.
[95] “Cristianismo foi desde o início, essencial e profundamente, repulsa e saturação por parte da vida em relação à  vida, apenas disfarçada, apenas escondida, apenas adornada sob o manto da fé numa vida «diferente» ou «melhor». O ódio ao «mundo», a maldição dos afetos, o receio da beleza e sensibilidade, um  Além inventado para melhor caluniar o aquém,  no fundo uma demanda do nada, do fim, do repouso, até ao «sabat dos sabats»­...pois perante a moral (em particular a moral cristã, ou seja, a moral incondicional), a vida tem constantemente e inevitavelmente de sofrer uma injustiça, uma vez que a vida é algo de essencialmente imoral,_ a vida tem finalmente, oprimida sob o peso do desespero e do eterno não, de ser sentida como indigna de ser desejável, em si desprovida de valor.” Frederico Nietzsche, O Nascimento  da Tragédia, pps. 15 e 16.

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