Caminhamos, na aurora de uma nova Filosofia da Natureza!

                                       Walking, in the dawn of a new philosophy of nature
                                                                                PPs  281/290 



                               In Pensar para o outro. Desafios Éticos Contemporâneos.
                                                     Homenagem a Cristina Beckert 

                                   Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa


                                                                                                                         
                                                                                                                                                           António dos Santos  Queirós
Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa
Alameda da Universidade
1600-214 Lisboa   Portugal
adsqueiros@gmail.com

In Memoriam de Cristina Beckert 
Resumo

Este artigo procura analisar a dialética de relações entre os conceitos de Ambiente e Natureza e Ambiente e Paisagem, fundamentando a sua diferenciação ontológica e epistemológica, mas reconhecendo também a partilha de um aparelho hermenêutico comum e a sua contribuição para uma nova mundivisão e perspetiva ética.
Nesse percurso discutiremos as aporias levantadas pelo problema da unificação do seu quadro concetual e nele, o estatuto do pensamento filosófico face ao objeto da elaboração científica, em prol de uma dialética colaborativa que aqui se defenderá.
No processo de desenvolvimento e complexificação do referencial filosófico do Ambiente e da Paisagem, a reflexão deste artigo dirigir-se-á progressivamente para a crítica da ilusão antropocêntrica no domínio da filosofia das ciências, partindo dos novos filosofemas de ecologia da paisagem, metafísica da paisagem e paisagem cultural, assim como de novos referenciais científicos concebidos pela física relativista e quântica, que conduzem a uma outra inteligibilidade do mundo material.
Mas, ao fazê-lo, entreabre-se um universo ainda mais complexo e desconhecido da Natureza, que mal vislumbramos entre a sombra absoluta da matéria e da energia negras, na cosmologia do universo e nas ínfimas partículas.
Enquanto, no mesmo movimento de rotura epistemológica e ontológica, se adensa o mistério da dimensão imaterial do ser, num eterno retorno ao sentido da vida e da morte do eu individual, que é o campo irredutível da Filosofia.

Palavras-Chave: Ambiente; Paisagem; Antropocentrismo; Física Relativista; Física Quântica;Ética

Abstract

This article aims to analyze the dialectic relationship between the concepts of Environment and Nature and Environment and Landscape, searching for its ontological and epistemological differentiation, but also recognizing the sharing of a common hermeneutic and its contribution to a new worldview and ethical perspective.
Through that pathway we will discuss the difficulties raised by the problem of unification of their conceptual framework and in it, the status of philosophical thinking in relation to the object of the scientific elaboration, in favor of a collaborative dialectic, here defended.
In the process of development and growing complexity of the philosophical reference concerning the Environment and Landscape concepts, the reflection of this article will be focused progressively on the critique of the anthropocentric illusion in the philosophy of science domain, using the new philosopheme of landscape ecology, metaphysics of landscape and cultural landscape, as well as new scientific benchmark designed by relativistic and quantum physics, leading to another intelligibility of the material world.
But, doing so, a universe even more complex and unknown of Nature opens up, which we can barely glimpse between the absolute shadow of dark matter and dark energy, in Cosmology of the universe and the tiny particles.
While, in the same movement of epistemological and ontological rupture thickens the mystery of the intangible dimension of the human being, in an eternal return to the meaning of life and death of the self, which is the irreducible field of philosophy.

Keywords: Environment; Landscape; Anthropocentrism; Relativistic Physics; Quantum Physics;Ethics


  1. Ambiente e Paisagem

Analisemos primeiro as diferenças concetuais e os filosofemas comuns aos dois conceitos, Ambiente e Paisagem. Situamos a nossa perspetiva crítica no campo da Filosofia Ambiental, mais amplo do que o da Filosofia da Natureza, que, em nossa opinião renovou o pensamento filosófico moderno através da crítica ao antropocentrismo e ao etnocentrismo, princípios que marcaram e limitaram a história da filosofia ocidental, sobretudo no plano ético e da regra moral.
Com efeito, a distinção de Wittgenstein entre ética e moral é comum à generalidade do pensamento filosófico contemporâneo, onde a moral se coloca na ordem das regras e convenções sociais e a ética se situa no campo da experiência pessoal. No entanto, se a ética emerge da subjetividade de cada pessoa individual, como bem nota Cristina Berckert, não tem valor universal. [1]
Na sua génese, a Filosofia Ambiental gerou-se por um amplo e global imperativo ético (uma Bioética Global em construção), enquanto a Filosofia da Paisagem teve a sua genesis na censura moral à desordem urbana e à industrialização agrícola e na crítica do juízo estético dominante. [2]
Estas novas filosofias configuram a razão moderna, que já foi kantiana e se tornou razão ambiental, descobrindo, para além da complexidade do mundo sensível, que a Natureza era outra: tal ficou ainda a dever-se ao advento das ciências do ambiente, mas também da física relativista e quântica, que rompeu as cosmovisões mecanicistas e penetrou no núcleo atómico da matéria, mas também a uma nova perspetiva ética, que estendeu os valores morais a toda a natureza.
A Filosofia preparou e abriu o caminho para essa Terra Ignota da cosmologia relativista e da física das partículas. Mas teve de enfrentar a aporia que, no quadro das relações entre filosofia e ciência, questiona a “causa das coisas”, atribuindo-o ao campo científico e reserva para a filosofia a questão do “ser”. Em tese, colocamo-nos numa posição crítica face a esta dicotomia: O pré-conceito que concede à filosofia o domínio de se questionar sobre “o que significa ser” e atribui à ciência o domínio do estudo das “causas” fenomenológicas, pode reconduzir-nos ao velho mecanicismo e a uma espécie de nova escolástica. Sobretudo no domínio das éticas aplicadas. Questionamo-nos: Onde aquela conceção, assim pré-determinada, encontra sobretudo oposição, não pode existir uma relação dialética?
Tomemos como ferramenta de análise o conceito espinosiano de atributo: “como tudo o que é concebido por si e em si, de sorte que o respetivo conceito não envolva o conceito de outra coisa.”[3]
Adotamo-la aqui não para discutir a filosofia de Bento de Espinosa, mas para que fique claro o que significa elaborar dois conceitos distintos, de ambiente e de paisagem.
Mas a definição espinosiana não pode ser descontextualizada ou aplicada linearmente. Estabelecidos dois conceitos, neles podemos encontrar propriedades comuns, desde que tal não signifique a sua plena sobreposição.
O conceito de ambiente representa uma nova perceção da natureza que deixa de ser exterior ao ser humano, recolocando-o como um dos seus elementos, não apenas como destruidor da sua biodiversidade e geodiversidade, mas também como criador de novos biótopos e paisagens culturais. Com o impacte das sucessivas globalizações, e sobretudo da nossa contemporaneidade que criou a teoria do espaço-tempo e a aplicou à vida social, deixou de haver praticamente natureza selvagem, isto é, sem nenhuma modificação significativa provocada pela presença ou ação do homem, mesmo no remoto Grande Norte ou na Antártida, com o estabelecimento permanente das primeiras comunidades humanas e o efeito perverso dos fenómenos da crise ambiental global.
Já o conceito de paisagem, com a sua física, o património material e a sua metafísica, o património imaterial, constrói-se no campo filosófico com os atributos de ecologia da paisagem e da metafísica da paisagem.
Estes atributos são inerentes à hermenêutica da paisagem: para a sua leitura e interpretação, a ecologia da paisagem recorre a múltiplas ciências; os seus valores estéticos e éticos, e a sua representação artística e da vivência dos homens que a habitam, incluem-se no conceito de metafísica da paisagem.
Mas também a Filosofia Ambiental, quando desenvolve os seus princípios e as suas éticas aplicadas, como a Ética da Terra e a Ética Animal, recorre aos filosofemas da ecologia e da metafísica da paisagem para elaborar os conceitos ampliados de comunidade e de pessoa, os pilares das suas éticas práticas.
Então, podemos comparar a relação entre os dois conceitos, ambiente e paisagem, não como duas torres de marfim isoladas, mas com a metáfora de dois tipos de nuvens que misturam os seus farrapos no seu devir existencial sobre o mesmo céu, mas que o olhar avisado distingue.
A verdadeira aporia reside na possibilidade de estabelecer um consenso teórico sobre o significado destes conceitos, e é acompanhada por outra, muito pouco discutida ou mesmo ignorada, que agora evidenciamos: Na fenomenologia da paisagem predominam as definições lineares ou bidimensionais, pelo que e para familiarizar o leitor com um outro tipo de definição, a que chamaremos circular ou ainda multidimensional, na sua dialética relacional, tomaremos como tema de análise o seu património, e como elemento de demonstração, a sua concetualização elaborada pelo engenheiro Vasco Costa, à época Diretor Geral da DGEMN.

«De uma forma esquemática, procurámos traduzir todas as áreas da atividade humana que se integram no Património, pondo em evidência, as sua relações principais e o mecanismo temporal da sua materialização, que constitui a base do Sistema de Informação Técnica e Científica para o Património Arquitetónico (SIPA), que desenvolvemos na DGEMN.»[4]

2. Paisagem cultural: Ecologia e Metafísica da Paisagem

O conceito de ambiente constitui-se e adquire uma conotação “moderna” quando deixa de significar apenas conservação da natureza e oposição da cidade ao mundo rural, enriquecendo-se desde o século XIX com novas significações que comportam os valores conotativos do despertar social perante os perigos da industrialização e urbanização e a resposta cívica aos problemas da saúde pública e da sobrevivência da humanidade gerados pela poluição generalizada e a destruição dos recursos naturais, ainda numa perspetiva antropocêntrica.
Ele incorpora, progressivamente, uma dimensão científica plural, não só aquela que lhe empresta a Ecologia tradicional, enquanto ciência da relação dos seres com o meio, mas também um vasto leque de outros domínios científicos: a Geografia e a História quando estudam a humanização dos grandes quadros naturais, a Biologia que revela a importância da diversidade dos seres vivos, a Geologia que nos conduz ao reconhecimento das condições paleoambientais geradoras dos ciclos de extinção e expansão da biodiversidade, a Matemática quando cria modelos de avaliação e gestão dos sistemas ecológicos, a Física e a Química que intervêm na análise dos fenómenos de poluição e mudança climática…ao mesmo tempo que remete para a necessidade de avaliar o nosso modo de crescimento nos planos da ética e da moral.
Sobre o conceito de Ecologia, criada pelo biólogo alemão Ernest Haeckel, em 1869, evoquemos algumas passagens de Eugene P. Odum, retiradas da sua obra monumental, Fundamentos da Ecologia, a qual, embora sujeita à crítica científica atual por não ter em conta o equilíbrio dinâmico da natureza, não perdeu valor nos seus conceitos essenciais:
 «A palavra ecologia deriva da palavra grega oikos, que significa «casa» ou «lugar onde se vive». Em sentido literal é o estudo dos organismos «em sua casa». A ecologia define-se usualmente como o estudo das relações dos organismos ou grupos de organismos com o seu ambiente, ou a ciência das inter-relações que ligam os organismos vivos ao seu ambiente. Uma vez que a ecologia se ocupa especialmente da biologia de grupos de organismos e de processos funcionais na terra, no mar e na água doce, está mais de harmonia com a moderna aceção definir a ecologia como o estudo da estrutura e do funcionamento da natureza, considerando que a humanidade é uma parte dela….A longo prazo a melhor definição para o domínio de uma matéria ampla é provavelmente a mais curta e a menos técnica, como por exemplo, biologia do ambiente. Isto no que se refere às definições. Para compreender o domínio e a importância da ecologia, a matéria tem de ser considerada em relação com outros ramos da biologia e com as ciências em geral.»
E, mais adiante:
 «A melhor maneira de delimitar a ecologia moderna talvez seja considerá-la em termos do conceito de níveis de organização, visualizados como uma espécie de «espectro biológico» …A ecologia incide sobre a parte direita do espectro, isto é, sobre os níveis de organização dos organismos nos ecossistemas.»  [5]
Falamos, como Odum, de uma nova visão da paisagem, pluri e interdisciplinar, que é, simultaneamente, um instrumento operativo da sua hermenêutica e uma categoria do domínio da moderna Filosofia da Natureza ou Filosofia Ambiental, designamo-la duplamente por:
-Ecologia da paisagem (humanizada). Que compreende, na nossa definição, uma visão estrutural e sistémica englobando os grandes quadros naturais, caracterizados e diferenciados, seja pelos diversos domínios da ciência – que vão das ciências do ambiente às ciências exatas; quer a presença transformadora do homem no seu esforço de agricultor, pastor e arquiteto da paisagem. E daí, também, o concurso das ciências históricas e humanidades.
De facto, a expansão da espécie humana por todas as regiões do globo e a sua adaptação à diversidade dos habitats mais agrestes, em paralelo com a crescente universalização e globalização da ação antrópica, originou, a partir da Idade Moderna, uma nova relação da Humanidade com a Natureza: doravante, deixarão de existir os grandes quadros naturais puros, toda a paisagem se transformará, direta ou indiretamente, pela atividade humana. 
Então, o conhecimento físico e científico da paisagem humanizada, engloba a ecologia da paisagem. E de ora em diante utilizaremos apenas o conceito de “paisagem”, entendido como quadro natural humanizado pelo esforço (o trabalho) humano.
Recordemos, a propósito a reflexão de Francisco Caldeira Cabral sobre a paisagem humanizada, no âmbito da definição do objetivo e da missão da arquitetura paisagista:
«…o seu objeto próprio é a paisagem humanizada, isto é, aquela que o homem modelou para satisfação das suas necessidades primárias. Quer isto dizer que a sua ação tem por fim o homem em toda a sua complexidade material e espiritual, para o qual procura encontrar a satisfação dos fins materiais, mas sem esquecer nunca os aspetos de ordem, de beleza e equilíbrio. Procura realizar uma síntese das aspirações humanas neste mundo, e por isso é uma arte, uma das belas artes. »
Mais adiante, prossegue Caldeira Cabral:  
«Nos países da Velha Europa nada resta da natureza intacta…Aqui a intervenção do arquiteto paisagista, que defendendo a natureza defende o homem, é não só necessária mas imperativa.»[6]
Após o que desenvolve as suas metodologias de cooperação e trabalho, pluridisciplinares e interdisciplinares, associando arte, ciência e técnica, operários e lavradores, a ecologia e a biologia com as ciências físico-matemáticas, a história e a estética, enfim, citando S.Tomás, «uma arte que coopera com a natureza».
Mas a interpretação da paisagem, na ótica da Filosofia da Natureza e do Ambiente, ficaria incompleta sem o recurso a um outro elemento categorial, que definimos como:
- Metafísica da paisagem, que é do domínio da “espiritualidade”, da “alma” das coisas, das categorias, emoções e sentimentos estéticos da “beleza” e do “belo” ou do “sublime”, do “maravilhoso” e do “misterioso”, do “monumental”, do “épico” e do “trágico.” E que comportam valores éticos. Tal como as categorias negativas do “feio”, do “desagradável”, do “repulsivo”, do “horrível”…
Na procura de um consenso teórico e da sua acessibilidade ao leitor menos familiarizado com estes conceitos, vamos procurar defini-los de forma sintética e ilustrá-los, sem deixar de referir que o seu debate prossegue desde sobretudo o século XVIII, conduzindo, por exemplo, e no que ao belo naturalizado respeita, aos jardins franceses geometricamente projetados ou aos jardins românticos ingleses, onde predomina o arranjo da natureza em recantos, arboretos e tufos dispersos. Pressupondo que o leitor participativo facilmente visualizará os correspondentes conceitos negativos.
Do conceito do belo na paisagem, queremos entender a visão da harmonia de cores e de formas, do seu equilíbrio na diversidade, da ausência de agressões visíveis ao seu património natural e cultural, dos cheiros e perfumes, do movimento das copas e das searas e, portanto, valores que despertam todos os sentidos e apelam para outros valores morais.

Do sublime na paisagem, entendemos a associação do belo com um sentimento de respeito e até de um certo receio, imposto pelo quadro paisagístico natural, ou, predominantemente natural, como seja a imponência de uma montanha coberta de neve ou a largueza da paisagem que dela se avista.

Do maravilhoso na paisagem, entendemos o belo elevado à potência, com todos ou alguns dos sentidos estimulados para uma emoção superior.

Do misterioso na paisagem, queremos representar a surpresa e o fascínio, por formas, cores e sobretudo ambientes, que não compreendemos espontaneamente.

Do monumental na paisagem, o reconhecimento da transformação da paisagem pela sua humanização através do trabalho humano, à escala do belo e com as dimensões do que chamamos monumento.

Do épico na paisagem, quando reconhecemos nesse esforço de humanização da paisagem, da sua transformação em paisagem cultural, um esforço excecional, muitas vezes secular ou milenário do homem, quase sempre associado ao uso de animais e à criação de novos biótopos pela sua ação.

Do trágico ( e do dramático), quando observamos, percorremos, sentimos, as paisagens culturais em processo de abandono ou já de total ermamento, conservando ainda os sinais da presença das comunidades humanas…

Estas categorias podem-se encontrar simultaneamente no mesmo quadro paisagístico.
Remetemos os conceitos para-estéticos da paisagem para um outro artigo, já publicado nesta revista.[7]
E regressamos à visão prospetiva da natureza, neste dealbar do milénio.

  1. Cosmologias

As Cosmologias da criação estão presentes nas grandes religiões da humanidade e emergem na história através de mitos que não procuram fundamentação científica. Essas cosmovisões anunciam a necessidade de construir e preservar a ordem social em oposição ao caos inicial.
Seguindo Hubert Reeves: Nos textos egípcios da antiguidade pode ler-se:«…o céu não existia, a Terra não existia. Os homens também não. Os deuses ainda não tinham nascido. A morte não existia,»
Segundo os textos sagrados indianos (Rig Veda): «No princípio não havia luz. Tudo era água.
E os escritos babilónicos descreviam o seu mundo contemporâneo, ao listar o que não existia: «Nenhuma casa sagrada…nenhuma árvore fora plantada. Nenhuma cidade tinha sido construída…Toda a Terra era mar.»
No Genesis pode ler-se: «A Terra era informe e vazia…A obscuridade estendia-se sobre as profundezas e o espírito de Deus movia-se sobre as águas»[8]
A analogia com o nascimento das aves a partir da substância gelatinosa e aparentemente informe do seu conteúdo, provocou o aparecimento da imagem do «ovo cósmico» na tradição da idade clássica das principais comunidades humanas, na Grécia, China, Egipto, Índia, Japão…
Mas se as cosmologias da criação marcam um princípio para o tempo e a história, já são mais raras as que associam a criação a um cosmos eterno. O taoismo, que não pode ser considerado uma região sobrenatural, antes uma cosmovisão moral sobre a sociedade, traduz essa visão em linguagem filosófica: «Sem nome, representa a origem do universo. Com um nome constitui a Mãe de todos os seres…» No hinduísmo o universo é cíclico, criado e destruído em sequência infinita.[9]
A ciência do século XX, com a Teoria do Big Bang, viria a surpreender mesmo os pensadores mais avançados da ciência, que associavam a visão criacionista a uma perspetiva puramente religiosa, não científica. O nascimento do nosso Universo há 13,5 mil milhões de anos e a sua evolução para a complexidade estava já escrito nas equações com que Einstein vinha explicar as leis científicas do Cosmos.
Mas aqui regressamos à terra incógnita, no que respeita ao conhecimento científico: Como nasceu o universo? Qual a origem das suas leis científicas? Como avaliar o tempo antes deste nascimento? Que significa este conceito, ou o de espaço, temperatura e densidade infinitas, se sabemos hoje, à luz da nova física quântica, que estes conceitos são indeterminados?
Aqui, nestas barreiras que a ciência ainda não ultrapassou, o ser humano procura respostas na religião e na filosofia, ou em ambas, e as caravelas da ciência continuam a navegar para o desconhecido…

  1. Terra incógnita e mar ignoto
A genesis, conceito diferente de criação e a resposta à pergunta o que existia antes do primeiro segundo do Cosmos, pertence ao domínio da terra incógnita. Nunca a ciência penetrou aquela barreira.
Mas neste primeiro segundo de luz intensíssima e imenso calor abriu-se o mar ignoto que a Vida, mais tarde, apenas começou a percorrer e de onde brotou a primeira centelha do pensamento, elaborado pensamento humano e científico.
Nunca a ciência penetrou a barreira da terra incógnita. Mas é aqui que o pensamento humano fez nascer a religião e a filosofia, para procurar uma resposta.

Temporalidade e finitude

Transportamos connosco toda a Humanidade. E todo o tempo do mundo já extinto, desde o luminoso início da sua expansão cósmica. O começo dos tempos, eis um mistério que persiste, ou melhor, um problema filosófico que o nosso pensamento criou e só nesta medida ele existe. O tempo não existe para o tempo, ente criado pelo pensamento humano e não naturado.
Não há pois mistério nenhum por resolver, apenas a nossa sábia inquietação sobre a origem do mundo e a capacidade gerada para medir o tempo de todos os seres e coisas existentes. Também não há vestígios de angústia na formidável explosão de uma supernova. O tempo, conceito da nossa consciência mecanicista, é afinal espaço-tempo. Então não há nenhum mistério na interrogação do que houve antes do nascimento do universo. A resposta é o Nada. Não podemos afirmar que é um nada absoluto; numa explosão de energia-temperatura-densidade incomensuráveis do “átomo primordial” não sabemos como funcionam as leis da física, mas sabemos agora que a matéria cessa o seu decair ( a sua decomposição e morte) molecular, na sua redução à mais ínfima partícula quântica. Mas eis-nos perante essa partícula. De onde nasceu? É eterna? Intemporal? A partícula de Deus, Bosão de Higs? E aqui o mistério (científico) recomeça e com ele a indagação filosófica.

       5. A ilusão antropocêntrica, na filosofia das ciências

O mundo não é afinal como o vemos e pensamos, o mundo é, “em si”.
O infinitamente grande, do universo, é mensurável desde o seu nascimento com o Big Bang e expansão; e o infinitésimo reduz-se ao finito quântico.
A perceção humana de um espaço euclidiano absoluto em que, por exemplo, a soma dos ângulos internos de um triângulo é igual a dois ângulos retos, transforma-se na geometria elíptica numa soma dos ângulos internos de um triângulo que é maior que dois ângulos retos, enquanto na geometria hiperbólica esta soma é menor que dois ângulos retos; formas do espaço que não percecionamos empiricamente.
Pudemos confirmar que a massa do protão provém da energia libertada por quarks e gluões, conforme teorizara Einstein há mais de cem anos, na fórmula E=mc².[10] Nela, E = energia, m = massa e c2 = velocidade da luz elevada ao quadrado. Sendo a velocidade da luz 300.000 Km/s. Ela significa que uma quantidade de matéria se converte em outra quantidade equivalente de energia em proporção direta da velocidade da luz; e que a velocidade da luz é a constante relativista do universo, independentemente do referencial adotado para medi-la.
E saberíamos depois que essa é também a velocidade de uma onda eletromagnética, e a energia, descontínua; mais tarde, com a teoria unificada da matéria que procura a síntese entro o contínuo e o descontínuo, descobriríamos a dualidade ondas-corpúsculos que nos situariam muito perto, mas irredutivelmente perto, do lugar do finito, entes físicos subatômicos que se comportam ou têm propriedades tanto de partículas como de ondas, com novas e ainda mais pequenas partículas interagindo para além da nossa perceção sensorial e mesmo dos nossos laboratórios de vanguarda, ou das mais sofisticadas observações cósmicas, expressas apenas nas complexas e premonitórias equações das matemáticas superiores ou no seu rasto atómico.
Nesse já remoto fim do século XIX, a par de um novo conceito da energia surgiu o conceito de campo, alterando a nossa compreensão da matéria universal. O conceito de campo, em que todo o espaço é cena das leis de estrutura, veio então ocupar o lugar das forças de atração e repulsão newtonianas, determinadas apenas pela massa e a distância. Tomando como referência o conceito atual de matéria, os protões e os neutrões, bem como os núcleos, são obra das forças nucleares (da forte e da fraca). Os átomos e as moléculas são obra das forças eletromagnéticas. As estrelas e as galáxias são obra da força de gravidade, tal como, de resto, o nosso sistema solar.
Estas forças atuam em diversos campos, cuja contiguidade e vizinhança de espaço e tempo nos permitem deduzir a sua história fenomenológica, mas já não determinar em absoluto a posição e velocidade de um simples eletrão.
Espaço e tempo unificam-se num só conceito, cuja variação depende dos chamados eventos, definidos pelas três coordenadas espaciais e uma quarta dimensão ct, onde c é a velocidade da luz e pode ser considerado como a velocidade com que um observador se move no tempo. Isto é, eventos separados por 1 segundo acontecem a 300.000 km um do outro no espaço-tempo. No dia-a-dia, mesmo se formos tripulantes do mais potente foguetão a diferença entre espaço-tempo e um espaço de três dimensões parametrizado pelo tempo não é percetivo. Outrossim acontece no processo evolutivo do universo, e, experimentalmente, nos laboratórios de física de partículas.
E compreenderíamos, que se o Sol continua a brilhar depois de milhares de milhões de anos, é porque na composição da sua massa se encontram as partículas elementares W e Z. De outro modo o Sol já se teria extinguido numa fornalha abrasadora e com ele a vida na Terra. [11]
Mas a massa solar nasce também de outras interações entre diversas partículas, que são como os tijolos da matéria, tal é o caso dos fotões de luz. E sobretudo, graças à interação daquelas partículas com o “bosão de Higgs”, a denominada “partícula de Deus”. [12]
A expressão de Lavoisier «Na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma», ou “Lei da conservação das massas”, laboratorialmente comprovada, «Numa reação química que ocorre num sistema fechado, a massa total antes da reação é igual à massa total após a reação», que parece elevar o empirismo de Locke à condição de fonte inspiradora do método experimental das ciências, ao confiar em absoluto na informação recebida pelos nossos sentidos, representa hoje o grande equívoco da visão antropocêntrica da fenomenologia da natureza e da lógica empírica.
Toda a reação química é uma reorganização da matéria e as moléculas e átomos que surgem num dos lados da equação que as representa, podem ser reencontrados do outro lado dessa equação, associados de forma diversa. Mas no mundo dos quanta essa equação não funciona, a matéria não se conserva. A energia sim. Nas experiências do CERN, que reproduzem laboratorialmente as condições do Big Bang, o choque de dois protões a velocidades colossais gerou duas novas partículas dois fotões de luz; o choque de dois eletrões de carga oposta fez nascer o bosão Z e assim por diante.
E ainda nada sabemos sobre o que são a matéria negra e a energia negra que predominam na vastidão do universo.
Caminhamos pois, na aurora de uma nova Filosofia da Natureza, retomando o diálogo entre filosofia e ciência, redescobrindo os textos científico-filosóficos que fizeram o próprio caminho de encontro e de fecunda partilha entre Ciência e Filosofia.
«Epistemologia, isto é saber que deriva da experiência, Gnoseologia, que parte das ideias e não dos factos, Teoria do conhecimento, em que a própria realidade pode ser posta em causa. No fundo a famosa «questão dos universais» ou relação entre o particular e o geral, que perpassa na filosofia cristã medieval e nunca será provavelmente resolvida.
Como Humboldt, Goethe ou Einstein creio firmemente na «harmonia interna do nosso mundo», lógico como condição da inteligibilidade; com Jacques Monod «no postulado de base do método científico: a saber que a natureza é objectiva e não projectiva». Sem ignorar que, por trás das claridades que a razão faz resplandecer, permanece o mistério que o pensamento filosófico pretende penetrar de maneiras por vezes contraditórias. Contemporâneos de Newton, que coroa um século de investigação sobre a estrutura do Universo inteligível, são o realismo de Locke: «Nihil est in intelectu quod prius non fuerit in sensu» em perfeita concordância com o desenvolvimento científico da época; e o idealismo de Berkeley; «não sendo sujeito cognoscente nem objecto cognoscível não pode atribuir-se à matéria nenhuma espécie de existência»; ele move-se, como em Schopenhauer, em O Mundo Como Vontade e Representação_título expressivo de uma ideia que nenhum cientista (recorde-se a frase de Monod citada acima) pode aceitar. »[13]
Filosofia e Ciência que quando interrogam o Universo, em cada sopro de vida e nascimento, questionam ainda e sempre o sentido pessoal da nossa existência e o destino mortal que a acompanha, alma, espírito, passagem para o ser imaterial? Labor sempre inacabado de filósofos, de crentes de todas as religiões e dos seus ministros, ou de poetas:

«Com que palavras
ou beijos ou lágrimas
se acordam os mortos sem os ferir...?»[14]

In Memoriam de Cristina Beckert


6.     Bibliografia

Andrade, Eugénio (2005). “Pequena Elegia de Setembro”, in Coração do Dia, Lisboa: Iniciativas Editoriais, 1958; “Poesia”, 2.ª edição, org. Arnaldo Saraiva, Porto: Fundação Eugénio de Andrade.
Beckert, (2012) Cristina. Ética. Lisboa: CFUL.
Cabral,  Francisco C. (1993). Fundamentos da Arquitetura Paisagista. Lisboa: Instituto de Conservação da Natureza.
Costa, Vasco (2015), citado pelo autor em “Cultural tourism on a changing paradigm”, International Journal of Scientific Management and Tourism Vol.2. Córdoba (Spain) iManagement and Tourism,
Espinosa, Bento (1960). Ética. Tradução, Introdução e Notas de Joaquim de Carvalho, Coimbra: Atlântica Editora, 2ª Edição.
Oddum, Eugene (2001), Fundamentos da Ecologia, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
Ribeiro, Orlando (1980). “Geographia de Estrabão, Geografia e Reflexão Filosófica”, in Memória da Academia das Ciências de Lisboa, Classe das Ciências, Tomo XXI, Lisboa.
Queirós, António (2013),  “Da impossibilidade de separar a ciência, a ética e a estética na hermenêutica da paisagem”. Philosphica, Lisboa: CFUL, pp. 69-94.
Serrão, Adriana (2011) “A Paisagem como problema da Filosofia”, in Id. (coord.), Filosofia da Paisagem. Uma Antologia, Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa.





[1]  Beckert, Ética, p. 90.
[2] Sobre a problemática da Paisagem consultar o texto de Adriana Veríssimo Serrão, “A Paisagem como problema da Filosofia”, in Id. (coord.), Filosofia da Paisagem. Uma Antologia, Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2011, pp. 13-35.
[3]  Espinosa, Ética. Tradução, Introdução e Notas de Joaquim de Carvalho, Coimbra : Atlântica Editora, 2ª Edição, 1960,  P.XXXVI.
[4] Costa, citado pelo autor em “Cultural tourism on a changing paradigm”, International Journal of Scientific Management and Tourism. Córdoba (Spain) iManagement and Tourism, 2015, p. 202.DGEMN, Direção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais,
[5] Oddum, Fundamentos da Ecologia, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001,  pp. 5-6.
[6]  Cabral , Fundamentos da Arquitetura Paisagista. Lisboa: Instituto de Conservação da Natureza, 1993, pp. 46-47.
[7] Queirós, “Da impossibilidade de separar a ciência, a ética e a estética na hermenêutica da paisagem”.  Philosophica  40 (2013), pp. 69-94.
[8]  Reeves, Dernières nouvelles du cosmos. Lisboa: Éditions du Seuil, 1995, pp.22-24.
[9]  ReevesDernières nouvelles du cosmos, p.25.

[10] O Centro de Física Teórica de Marselha (em 2008), com o auxílio do supercomputador Blue Gene, confirmou-o experimentalmente.
[11] O mundo das partículas subatómicas, da Física Quântica, é muito diferente do Cosmos que observamos e para o conhecer a Europa criou o CERN_ European Organization for Nuclear Research em 1954. O seu acelerador de partículas SPS_ Super Proton Synchrotron, descobriu o bosão W e o bosão Z em 1983.
[12] Em 4 de julho de 2012 o CERN confirmava ao mundo a descoberta experimental do bosão de Higgs.
[13] Orlando Ribeiro, “Geographia de Estrabão, Geografia e Reflexão Filosófica”, in Memória da Academia das Ciências de Lisboa, Classe das Ciências, Tomo XXI, Lisboa, 1980, pp. 200-201.
[14] Eugénio de Andrade, “Pequena Elegia de Setembro”, in Coração do Dia, Lisboa: Iniciativas Editoriais, 1958; “Poesia”, 2.ª edição, org. Arnaldo Saraiva, Porto: Fundação Eugénio de Andrade, 2005,  pp. 92-93.

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