https://www.publico.pt/2024/11/20/opiniao/opiniao/resultados-eleitorais-eua-caverna-saramago-2112672
Nós, os que fomos confinados à caverna, o que conhecemos do
mundo eleitoral dos EUA? O nome de dois candidatos, que são afinal meras
sombras das oligarquias que detêm todos os poderes na grande nação americana. A
democracia americana nunca foi uma democracia económica. A democracia americana
nunca foi uma democracia social. A democracia americana deixou de o ser, guerra
após guerra, privatização em cima de privatização, quando em nome do
liberalismo, abriu a arca de todos os demónios capitalistas/monopolistas e
imperialistas. E encerrou no fundo da caverna o seu próprio povo e os povos do
seu império global.
Nenhum
partido representa a vontade política da maioria dos eleitores dos EUA
O Facebook ajudou decisivamente a derrotar Hilary Clinton e
a tornar a União Europeia numa coligação militar de segunda linha, com o
Brexit e a saída do exército do Reino Unido. Democratas e republicanos
revessaram-se na tarefa de dividir a Europa, entre a Velha Europa do ocidente
liberal e a Nova Europa, do leste autoritário e militarista.
Quase 244 milhões de americanos poderiam votar, segundo o
Bipartisan Policy Center…Numa população de 335 milhões. 70 milhões de votos
recebeu o candidato democrata, o republicano venceu com 74 milhões. Quase 100
milhões de americanos não votaram ou não puderam votar. A candidata dos verdes,
Jill Stein, quando concorreu à Presidência em 2016, obteve 1,4 milhões de
votos. Obteve mais votos no Michigan,
Wisconsin e Pensilvânia do que a diferença pela qual Donald Trump
derrotou Hilllary Clinton em cada um desses estados. Por isso, foi acusada como
a responsável pela primeira vitória de Trump e recebeu agora metade dos
sufrágios, 700.000. Chase Oliver, do Partido Libertário, proclamando-se homossexual
e pró-armas, recebeu 600.000 votos m nome da defesa dos direitos individuais. Cornel West, defendeu uma alternativa ao império, à supremacia
branca, ao capitalismo, ao patriarcado e às limitações do sistema bipartidário,
dominado por corporações. Obteve 500.000 votos. Então, a quase 2 milhões o
sistema eleitoral nega automaticamente
qualquer representação política, no
Congresso e no Senado. O sistema admite uma alternância formal, mas reservada
ao bipólio. Um sistema fossilizado, montado para perpetuar um monopólio de duas
cabeças, incapaz de se renovar em modo
democrático.
Fukyama enganou-se, a democracia americana não era o fim da
história cristalizada num prisma democrático de duas faces: esse regime de
monopólio de duas cabeças decompôs-se numa amálgama onde só reluzem restos da
democracia. A Cortina de Ferro de Churchill escondia afinal a sua própria
duplicidade: enquanto proclamava a unicidade da democracia liberal, escrevia ao
presidente americano, propondo que se usasse o poder exclusivo das bombas
atómicas para tirar do mapa Moscovo e as principais cidades da União Soviética,
como confessou Lord Moran, o médico pessoal e confidente, no seu livro de
memórias
Porque
decaiu o voto democrático: O mito do crescimento como redentor do emprego e da
pobreza e a sua volatilidade
Trump ganhou 1 milhão de votos entre 2020 e 2024; os
democratas perderam 9,4 milhões, mais de 6,5 milhões de votos democratas foram
parar à abstenção. São eleitores que procuram uma nova democracia?
Antes da pandemia, em fevereiro de 2020, havia um total de
159 milhões de pessoas empregadas nos Estados Unidos. No final de abril desse
ano, 26 milhões de empregos tinham desaparecido. Mas a explicação da pandemia
esconde uma outra razão: a estratégia política das grandes empresas e do
governo, foi o incremento da automação, da robotização e da Inteligência
Artificial, que suprimiram milhões de postos de trabalho e esmagaram o valor do
trabalho fabril e especializado. A dimensão dessa perda pode ser exemplificada
por três casos concretos: um soldador podia receber até 50 USD por hora de
trabalho, a robótica reduziu o custo da hora para os 8 USD. A JP Morgan
contratava um exército de advogados para elaborar os contratos imobiliários,
representando centenas de milhares de horas anuais: foram substituídos por
complexos softwares. Call centers que empregavam milhares viram-se reduzidos a
algumas dezenas, substituídos pelos chatboots.
A aristocracia operária e a pequena burguesia, que integravam a classe
média viram a sua condição social ser esmagada. As empresas tecnológicas tombariam
a seguir, despedindo às dezenas de milhar.
Os números baixos do chamado pleno emprego, escondiam outra
realidade preocupante, os novos postos de trabalho já não vêm da grande
indústria e dos novos serviços tecnológicos, mas de micro e pequenas empresas,
subsidiadas e endividadas, voláteis e onde reina a precaridade e o rendimento
mínimo.
Em 2023,
o rendimento médio familiar, decaindo 4%., era de 80.000 USD. Mas…Mais de
metade dos estudantes universitários terminavam o curso com dívidas, 1,7 mil
milhões USD. Um terço da população em
idade escolar não estava matriculada. Abaixo do limiar da pobreza viviam 36,8 milhões
(11,1%). Os mais ricos possuíam 67% da riqueza, apenas 2,5% sobrava para mais
pobres.1% das famílias ricas, possuía 26% da riqueza.
Fechou-se
o sonho americano
As eleições americanas de 2024 foram as mais caras da sua história,
US$ 15,9 milhares de milhões.10,5 milhares de milhões em anúncios, cobrindo presidência,
Congresso e Senado. O candidato presidencial
democrata gastou 1.600 milhões e o republicano 993. Mais 419 milhões gastaram-se publicidade digital,
Kamala Harris captou diretamente US$ mil milhões. Do total,
40% dos valores vieram de pequenos doadores, e outros 586 milhões, foram recolhidos
pelos chamados comitês de ação política (PACs), a capa que esconde a porta
giratória por onde circulam os altos cargos políticos e nas administrações das
grandes empresas.
Donald Trump arrecadou US$ 382 milhões com 28% das doações
vindas de pequenos apoiantes. Os comitês republicanos angariaram US$ 694
milhões dos grandes doadores: Timothy Mellon, doou US$ 197; milhões Richard e
Elizabeth Uihlein, Miriam Adelson, o CEO da Tesla e SpaceX Elon Musk, Kenneth
Griffin, cada um mais de 100 milhões.
No lado democrata, destacaram-se Michael Bloomberg, com 93
milhões de dólares. George Soros 56 milhões.
Os
investidores das indústrias de guerra e dos combustíveis fósseis, são agora os
novos capitães da indústria. Acima deles, pairam os fundos abutre e os bancos
gigantes. Capturaram o estado e canibalizam o estado, apoderaram-se
progressivamente dos principais recursos de comunicação de massas. Fechou-se o
sonho americano.
Os
100 senadores progressistas e os abstencionistas que farão? Haverá ainda tempo
e recursos, para constituir um novo partido, verdadeiramente democrático e
republicano, que resgate a democracia americana?
António
dos Santos Queirós
Professor
e investigador. Universidade de Lisboa
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